Algumas Palavras Tinham que Aposentar a Boca dos Homens

FONTEPor Viviane Pistache, enviado ao Portal Geledés
Foto: Divulgação

A bíblia é um grande manual de roteiro. Não faz acepção de gêneros: tem conflito suficiente para drama épicos, uma profusão de roadmovies nas fábulas de êxodo, o terror do genocídio, Western com duelos históricos, biografias heróicas, realismo fantástico na abundância de milagres, até uma insuspeita verve soft porn no livro Cantares de Salomão e a mais explícita escatologia em Apocalipse. Além disso, a ideia de jornada de herói passa obrigatoriamente pela saga de Jonas que sobreviveu ao ventre da baleia.  Os evangelhos do novo testamento tem intérpretes monumentais, como Pasolini e José Saramago. Fundamentado nessas referências, o premiado curta-metragem Último Domingo de Renan Barbosa e Joana Claude, é um filme absolutamente necessário num Brasil que afoga num fundamentalismo religioso. A sessão realizada sob o estrelado céu de Tiradentes na 26a. Mostra honrou a tradição de cinema na praça, levando o sagrado e o sublime ao povo. 

Último Domingo nos lembra que Maria é mãe de Jesus por ser amorosa e corajosa no enfrentamento de preconceitos de classe e gênero. Se a fotografia em preto e branco é um deleite na tradução de uma estética de filme de época, o roteiro traz uma narrativa de vanguarda, com magia e poesia política, sem sermão da montanha. Maria é encarnada por Jéssica Ellen, prenha de talento, beleza, empatia e força para enfrentar o patriarcado, seja na figura de José vivido por Edilson Silva,  do conselho de anciãos, dentre os quais de destaca o grande Tonico Pereira ou de fariseus como o Zaquias bem defendido por Ravel Andrade. 

Sutilmente, Maria nos diz que o patriarcado é como o gigante Nabucodonosor, que tem a cabeça de ouro, braços de prata, pernas de bronze e pés de barros, mas passível de derrota como qualquer Golias, além de ter alma suína. Assim, belo, singelo, muito bem executado, ainda que despretensioso, Último Domingo é um filme que honra a tradição da bíblia como seminal fonte de parábolas. 


Viviane Pistache é preta das Minas Gerais, pesquisadora, roteirista e, de vez em quando, crítica de cinema. 

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