Aliança de parentesco

Foto: Marcus Steinmayer

Um ato político de grande simbolismo marcou a I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres ocorrida de 15 a 17 de julho passado em Brasília por iniciativa da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Foi a criação da Aliança de Parentesco, que resultou da convocação feita por Dirce Veron, presidente do Conselho Nacional das Mulheres Indígenas, das mulheres negras presentes naquela conferência.

por Sueli Carneiro

Uma convocação para uma parceria política fundada na semelhança dos processos históricos, que submeteu igualmente povos indígenas e africanos e seus descendentes. Uma Aliança de Parentesco que decorre da invenção desses gêmeos históricos paridos pelos mesmos mecanismos de opressão e espoliação colonial.

Gêmeos históricos igualmente degradados e lançados à condição de seres humanos inferiores, que se perpetua no presente. Índias e negras, herdeiras do maior ônus desse processo, reconhecem nessas condições históricas de exploração e exclusão de base étnica e racial o alicerce desse parentesco e a identidade dos desafios que enfrentam e decidem, tal como expresso na declaração conjunta por elas proferida durante a Conferência:

‘‘Firmar o nosso parentesco através de uma aliança política na busca conjunta de superação das desigualdades econômicas, políticas, sociais e culturais e de poder;

  • firmar uma aliança estratégica para a conquista da igualdade de oportunidades para mulheres
  • índias e negras na sociedade brasileira;
  • firmar uma aliança estratégica que dê visibilidade a índias e negras como sujeitos de direitos.

Doravante índias e negras consideram-se parentes”.

No contexto de uma conferência para deliberar sobre as políticas de promoção da igualdade para as mulheres, essa Aliança de Parentesco recoloca a dívida histórica que o Estado brasileiro tem com esses dois povos, em especial com suas mulheres; marca a identidade específica que essas mulheres carregam em nossa sociedade; reafirma que raça e etnia são, para além do gênero, elementos produtores de modalidades específicas de opressão sobre as mulheres no Brasil e que, portanto, são variáveis inegociáveis no recorte das políticas públicas para a promoção da igualdade de gênero e entre as mulheres.

As quinze organizações de mulheres índias e negras que subscrevem essa Aliança de Parentesco, e as inúmeras adesões e apoios recebidos a essa iniciativa durante a conferência, reafirmam que nós, mulheres brasileiras, estamos superando a cultura paternalista historicamente construída por brancos em relação a índios e negros.

A nossa experiência histórica nos assegura que os setores solidários às nossas causas o são tão mais verdadeiros quanto mais se recusem a ser nossos porta-vozes. São tão mais verdadeiros quanto mais sejam capazes de apoiar o protagonismo de segmentos historicamente discriminados e alijados da vida pública. São tão mais verdadeiros quanto mais se recusem a ocupar os lugares de representação que cabe legitimamente às lideranças por nós engendradas e que queremos afirmar.

Esse é um dos mais belos legados dos movimentos de mulheres e feministas do Brasil, um espaço de atuação pública em que uma política de reconhecimento mútuo vem construindo nova pedagogia política, em que novos sujeitos políticos podem se afirmar e ofertar sua contribuição ao processo de ampliação e consolidação da democracia no Brasil. Não, não há aqui nenhuma visão idílica das mulheres na política.

A política é entre as mulheres o que sempre foi, um campo de disputa de interesses. Porém, houve um tempo em que as divergências pareciam irreconciliáveis, em que negras e índias não tinham lugar na agenda feminista, em que o conflito racial parecia insolúvel do ponto de vista político traduzindo-se em confronto racial permanente entre as mulheres.

Um longo e difícil aprendizado nos conduziu ao momento em que podemos politicamente negociar a partir dos diferentes interesses, ópticas e perspectivas que atravessam o movimento de mulheres. Algo como uma agenda coletiva de reivindicações ao Estado brasileiro que contemple todas as causas em termos de políticas públicas para as mulheres.

O apoio de diferentes organizações de mulheres ao manifesto de índias e negras sinaliza para a disposição das mulheres organizadas de trair o pacto racial excludente construído pelo racismo e recusar os privilégios raciais decorrentes da discriminação e exclusão social de índias e negras, em prol da construção da efetiva igualdade de oportunidade para todas as mulheres.

Assim essa é uma Aliança de Parentesco à qual aderem as mulheres organizadas que clamam e lutam por igualdade e justiça social, por um novo marco civilizatório em que as diferenças raciais, étnicas e culturais encontrem o seu justo reconhecimento e tratamento igualitário, em termos do acesso aos bens sociais coletivamente construídos. Em que as diferenças étnicas, raciais e culturais não sustentem estratégias de poder destinadas a explorar, excluir, negar ou limitar direitos inerentes a toda pessoa humana e, assim, justificar privilégios de um grupo étnico-racial/cultural sobre outro.

Como sempre, a sociedade civil faz a sua parte. Agora é a vez de o Estado demonstrar a mesma sensibilidade para gestar e implementar políticas públicas para as mulheres em geral, e que romovam também a efetiva inclusão social dessas parentes.

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