Alice Hasters – Por que os brancos gostam de ser iguais

FONTEPor Alice Hasters, no Deutschlandfunk
Alice Hasters (Foto: Tereza Mundilová/ @terezamundilova)

Alice Hasters, escritora afro-alemã, nascida em Colônia, em 1989, é atualmente uma das grandes vozes quando o assunto é racismo na Alemanha. O seu livro O que pessoas brancas não querem ouvir sobre o racismo, mas deveriam saber (Was weiße Menschen nicht über Rassismus hören wollen. Aber wissen sollten), publicado em 2019, causou grande polêmica e desde então é motivo de discussão entre os intelectuais, artistas e ativistas. A leitura desta análise esclare muitos aspectos inerentes ao tema e que surgem em quase todos os debates, independente de nacionalidade. Na série de ensaios sobre Identidades, transmitida no programa de rádio da renomada emissora Deustchlandfunk, Hasters declara o seguinte:

“Mas somos todos iguais!” É assim que as pessoas brancas, em particular, dizem frequentemente quando surge o tema racismo. No momento, em que há referência sobre os brancos e seus privilégios na sociedade, afirma a autora, de repente, parece importante para os brancos ser iguais e não ter importância a cor da pele.

Os brancos são os que se beneficiam da construção da racialização até os dias de hoje. E foram eles que inventaram tudo isso. Mas ter uma conversa sobre o racismo é, muitas vezes, tão desconfortável para eles, que acabam usando uma grande variedade de métodos para contorná-la: por exemplo, referindo-se a outro problema, com um rompante emocional, ou simplesmente com ignorância.

O que tais reações causam naqueles que são afetados pelo racismo? E como você consegue superar isso?

Precisei confirmar que muitas coisas se tornaram diferentes depois de eu escrever um livro sobre racismo. No bate-papo informal, por exemplo – o tema tornou-se ainda mais incômodo do que antes. No ano passado, estive em vários casamentos: onde há oportunidades de conversar com todos os tipos de pessoas. A tia do noivo, o namorado do ex-aluno, o primo que agora vive no outro lado do mundo. Uma das perguntas mais comuns que surgem durante tais conversas é: qual a profissão que eu vou seguir. “Você acabou de publicar seu primeiro livro, isso é excitante! E como se chama?” geralmente segue minha resposta. Este é o ponto de virada da conversa. Quando respondo, chama-se “O que os brancos não querem ouvir sobre o racismo, mas devem saber”, aqui acaba a conversa informal e amigável. Depois disso, muitas vezes, passo a testemunhar como o título deste livro é confirmado. Por exemplo, quando as pessoas mudam de assunto rapidamente.

Meu livro possui este título porque eu notei algo: Os brancos não gostam de falar sobre racismo e fazem muito para manter o assunto longe de si mesmos. Muitos brancos dizem que estão cansados de falar sobre isso (mas se ainda nem começamos realmente!). O que cansa é ignorar o assunto o tempo todo.

Falamos muito pouco de racismo. E quando o fazemos, geralmente, é com o foco errado. Com frequência, discutimos se ele realmente existe ou não, com um forte interesse em poder responder a essa pergunta negativamente. Ao fazer isso, perdemos oportunidades, todos os dias, para entender melhor e combater o racismo.

Não é surpreendente que seja assim, porque a maioria das pessoas já entendeu: não devemos ser racistas. Uma suposição comum é que o racismo é apenas ódio aberto, desprezo e só ocorre em casos isolados, no meio da direita. Isto ficou particularmente claro recentemente quando surgiu um debate, em toda a Alemanha, sobre o pronunciamento do diretor do time de futebol F.C. Schalke, Clemens Tönnies, que tentou ser engraçado, dizendo que o crescimento exagerado da população na África deveria ser evitado através da construção de usinas elétricas – porque, à luz, eles procriariam menos. Depois disso, não se tratava de discutir por que tais estereótipos racistas sobre os africanos ainda existem, mas se Tönnies poderia ser chamado de racista ou não: “Se agora classificarmos tudo como ‘racismo’, tudo que é considerado impensado, antiquado e coisa de homens, então estamos declarando um grande número de pessoas na Alemanha como sendo racistas. E assim, deixamos os limites se mesclarem. Assim você permite que os verdadeiros racistas nojentos e homicidas e pregadores de ódio desapareçam no meio das massas”, lê-se, por exemplo, no comentário do “Tagesthemen” sobre o caso Tönnies.

Ninguém quer ser racista. Realmente ninguém. Até mesmo apoiadores de grupos de direita afirmam repetidamente que não são racistas. “Eu não sou nazista, mas …” é uma frase popular nas discussões alemãs e serve para justificar um comportamento ambivalente: A pessoa quer expressar pensamentos racistas e, ao mesmo tempo, distanciar-se do racismo.

As pessoas que argumentam assim, cometem um erro: não fazem distinção entre racismo e radicalismo de direita. Eles não são sinônimos. Onde o radicalismo de direita é sempre racista, o racismo muitas vezes não é radical. Não é a intenção que qualifica uma ação ou declaração como racista, mas a estrutura de pensamento por trás dela. Para reconhecer isto, é necessário conhecimento sobre a história e as estruturas sociais. Mas o esclarecimento, muitas vezes, não se materializa. Uma razão para isso é a comodidade. Lidar com o racismo é exaustivo. Também para mim, que sou afetada pelo racismo.

Então o que é uma definição adequada de racismo? Ibram X. Kendi, em seu livro “Stamped from the Beginning”, por exemplo, o define como: “Qualquer noção que considera um determinado grupo étnico como inferior ou superior a outro grupo étnico”.

Muitas pessoas assumem que basicamente todas as pessoas podem ser afetadas pelo racismo. Essas pessoas veem o racismo como uma atitude puramente individual. Como um indivíduo ordena o mundo para si mesmo tem, à princípio, poucas conseqüências. Mas em um mundo cheio de desigualdades, o racismo também é exercido de forma desigual. O racismo é um sistema que surgiu com a intenção de estabelecer uma ordem mundial particular. Foi construído ao longo dos séculos e é eficaz até os dias de hoje.

Neste sistema, a hierarquia foi estabelecida com base em raças humanas construídas, ou seja, muito aproximadamente assim: brancos no topo, negros na base. Portanto, se alguém acredita que os negros são inerentemente superiores aos brancos, essa é uma ideia racista em teoria – mas bastante ineficaz na prática. Não há nenhum estímulo de repercussão para isso; esse pensamento não vai remodelar as estruturas sociais de nosso mundo. É diferente quando alguém acredita que os brancos são superiores aos negros. Essa ideia alimenta o sistema que já é vigente. O estímulo de repercussão para isto é enorme. Ele se construiu ao longo de centenas de anos, para legitimar a escravidão do povo negro e justificar a colonização pelas potências europeias.

Os brancos estabeleceram a teoria de que os traços de caráter, as habilidades culturais e sociais estão relacionados a traços biológicos. Este sistema é chamado de White Supremacy (Supremacia Branca).

Quando falo de racismo, refiro-me a este racismo eficaz e sistêmico que é capaz de oprimir as pessoas. Foi muito rápido e maciçamente inserido em nossa história, em nossa cultura e língua, moldou nossa visão de mundo, assim que não podemos deixar de desenvolver padrões racistas de pensamento em nossa realidade atual.

Pode ser, por exemplo, que você se manifeste contra o racismo no seu cotidiano – e ainda se assuste quando um homem negro cruza seu caminho à noite. Ou que você fique brevemente surpreendido quando uma mulher com um hijab fala alemão perfeitamente. Mesmo que aqueles que atravessam para o outro lado da rua ou são momentaneamente surpreendidos não pensem duas vezes, acreditando que este segundo, este ato inofensivo, passaria despercebido e não faria muita diferença, mas ele faz. E o faz para as pessoas envolvidas. Uma mulher alemã com um hijab recebe um monte de olhares de espanto quando ela abre a boca. Um homem negro vê centenas de rostos assustados em sua vida quando anda pelas ruas. Eles notam. Eu noto isso.

Pode ser, por exemplo, que você seja contra o racismo – e ainda assim, esses pequenos gestos são como picadas de mosquito. Dificilmente visíveis, individualmente suportáveis, mas na soma, a dor se torna insuportável. Estas picadas de mosquitos têm um nome: microagressões. Há também diferentes gradações delas. Podem ser ataques ou insultos como o uso da palavra “Nigger”* ou declarações como: “Aqui é a Alemanha”. Elas podem ser ações inconscientes, como quando uma mulher agarra sua bolsa assim que eu me sento ao seu lado no metrô.

E também faz parte do racismo não acreditar nas pessoas que sofrem racismo. Muitas pessoas duvidam de mim quando digo que as mulheres idosas têm medo de mim e pensam que eu sou uma ladra. É por isso que os argumentos sobre o racismo são, muitas vezes, uma guerra de forças e são desviados. Porque no final, não raro, sou eu quem tem que pedir desculpas por trazer o assunto à tona. Há uma palavra para esta dinâmica: reversão do culpado-vítima – e durante a conversa ela se manifesta em diferentes atitudes, a maioria passivas-agressivas.

Um método popular é o de cortejar. Um exemplo: para poder explicar onde encontro atos racistas na vida cotidiana, sem que eles sejam realizados conscientemente, conto sobre como as pessoas têm tocado nos meus cabelos durante toda a minha vida. Algumas vezes, sem ser solicitado e antes mesmo de saberem meu nome. Este tipo de reação é comum para quase todos os negros com cabelo afro. Eu então lhes digo como é desconfortável e como me sinto imediatamente conduzida para uma posição submissa. Pergunto, então, por que os brancos acreditam que isto não é um problema. Eles obviamente presumem que eu mesmo considero meus próprios cabelos tão incomuns e engraçados quanto eles. Isso acontece porque os brancos se definem como a “norma” e esperam que todos os outros façam o mesmo.

Mas muitos brancos, especialmente aqueles que se sentem atingidos pela descrição desta minha experiência, acreditam ser exagero eu me sentir incomodada. As pessoas que querem tocar no meu cabelo estariam, afinal de contas, fazendo um elogio. Afirmam acontecer isso comigo, porque as pessoas julgam o meu cabelo e eu tão bonitos que eu deveria estar feliz em receber tanta atenção.

Estas pessoas buscam me convencer de se tratar de um puro mal-entendido e toda a minha vida eu não teria vivenciado discriminação, mas sim tratamento preferencial.

Alguns também me dizem adorarem os negros. A aparência, a maneira como dançam e cantam, sua música, toda a cultura, essa alegria de viver e essa despreocupação. Tanto que eles também desejariam ser negros – ou pelo menos ter cabelos como os meus. Então como eles poderiam ser racistas? Por que estou estragando a alegria deles, tirando-lhes a imparcialidade, talvez até sua admiração por mim ou por outros negros?

Eles nem se dão conta de que estão reproduzindo o racismo quando listam quais talentos e traços distinguem os negros dos brancos. Não sou automaticamente mais divertida ou mais descolada porque nasci com a pele marrom. O racismo para eles simplesmente não é racismo, se não for de mau feitio.

Outras pessoas reagem às minhas histórias do cabelo de maneira oposta: em vez de enfatizar que a estranha reação aos meus cabelos é apenas uma forma de admiração, elas afirmam não serem nada especiais essas experiências. Afinal o cabelo de outras pessoas também seria tocado, incluindo mulheres brancas com cabelos cacheados, por exemplo. As ruivas estariam sujeitas a muitos estereótipos por causa de seus cabelos, igualmente as loiras.

As pessoas que usam este argumento, procuram me fazer crer que sou muito egocêntrica, muito focada na minha narrativa de racismo, tentando apenas me tornar especial. Quando na realidade, todos lutam com os mesmos problemas, independentemente da cor da pele.

Os negros que têm seus cabelos tocados, sem autorização, experimentam uma forma de discriminação por causa de seus cabelos afro. Já foi negado aos pretos o acesso a empregos ou escolas por causa de seus cabelos. Não é à toa que o estado americano da Califórnia aprovou uma lei, em 2019, que proíbe a discriminação com base na textura natural do cabelo. Esta lei foi projetada para proteger os negros de não serem contratados por causa dos seus cabelos afros, dreadlocks ou trançados.

Os problemas estruturais são frequentemente jogados uns contra os outros, através do chamado “whataboutism”. Esta é uma tentativa de hierarquizar os problemas sociais e os discursos. Assim, a discussão se afasta do substancial para o organizacional: Não seria mais importante falar primeiro sobre outros problemas estruturais?

Discriminação não é uma competição – e as linhas de discriminação são móveis. Você não pode defender a igualdade de gênero e ignorar o racismo – caso contrário, você não está defendendo todos os afetados pelo sexismo. O mesmo vale para outras formas de discriminação. A palavra-chave aqui é interseccionalidade, o que significa discriminação múltipla.

Só porque as mulheres brancas foram afetadas pelo sexismo e as pessoas ruivas foram sujeitas a discriminação estrutural, ao longo da história, e podem ter acontecido coisas semelhantes a elas, não significa que minhas experiências não sejam ainda uma forma de racismo contra os negros. Ao mesmo tempo, isso também não significa que minhas experiências não tenham nada a ver com sexismo. Para mim, o racismo e o sexismo são duas categorias inseparáveis, especialmente na vida cotidiana. Como mulher negra, sou sempre afetada por ambos. Sinto racismo sexista, sexismo racista. Essa é outra razão pela qual a questão de definir qual é pior – racismo ou sexismo – é um absurdo.

A tentativa de igualar é frequentemente acompanhada pela acusação de que estou dividindo com meu discurso sobre racismo. A definição de preto e branco seria o problema. Fazer do racismo um tema é o que permitiria o surgimento do racismo. Isso tem acontecido com tanta frequência que mesmo quando apresento fatos diferentes sobre o tema aos meus interlocutores, a fim de apoiar minha argumentação, eles acabam balançando a cabeça e afirmando que não compreendem como tudo isso pode ser: “Mas somos todos iguais – não importa a cor da pele”, dizem eles, “Preto, branco, estas são categorias totalmente desnecessárias, não penso assim”.

A afirmação: “Não vejo nenhuma cor de pele” não prova a incapacidade de ser racista, mas a incapacidade de reconhecer o racismo. Se você não vê cores de pele, você não vê racismo. Quem me diz que não vê cores de pele está realmente dizendo: “Eu me recuso a reconhecer sua perspectiva. Recuso-me a reconhecer que séculos de colonização e escravidão moldaram o mundo e criaram a desigualdade estrutural. Eu me recuso a assumir a responsabilidade de abolir essa desigualdade”.

Uma versão ligeiramente diferente desta atitude é a afirmação: “Aos meus olhos, você não é completamente negra”. Isto geralmente é bem intencionado quando se trata de pessoas brancas. Normalmente é para dizer: “Para mim, você é apenas uma pessoa”. Por implicação, no entanto, significa que não posso ser um ser humano enquanto for negro. É como se essas categorias fossem mutuamente exclusivas. Isso também significa que os brancos não querem reconhecer minha identidade e minha autodesignação. Já encontrei muitos brancos que não gostam do termo “preto” (Schwarz). Por exemplo, eles preferem me chamar de “cor”. Mas o termo “de cor” não é uma autodesignação, mas uma designação estrangeira. Preto, por outro lado, é um termo, uma identidade, que eu, como muitos outros negros, escolhi para mim mesmo. É por isso que, ao contrário da cor, eu escrevo Preto em letras maiúsculas.*

Portanto, também se trata de linguagem, é uma luta pela soberania interpretativa. As pessoas privilegiadas estão acostumadas a interpretar o mundo como elas querem e vê-lo alinhado a elas, sem que este estado de coisas seja perturbado. Os grupos discriminados, por outro lado, estão acostumados a caminhar em um mundo que não está alinhado com eles e no qual eles não são centrais. Entretanto, quando grupos discriminados resistem a isso, por exemplo, dando a si mesmos seus próprios nomes e, portanto, alegando poder ajudar a moldar e co-determinar a sociedade, então isto é sentido como um ataque direto à soberania interpretativa dos brancos.

A hipocrisia daqueles que gostam de se imaginar na ignorância inocente é especialmente evidente em debates como aquele sobre a palavra N* na literatura infantil. O fato de nem todos os brancos terem notado a palavra N em Jim Knopf, Pippi Longstocking e A Pequena Bruxa como racista pode ser difícil para mim entender como uma pessoa negra, mas ainda estou disposta a dar um voto de confiança. Mas logo o retiro quando as pessoas se pronunciam ativamente contra a remoção da linguagem racista da literatura infantil. Uma coisa é reproduzir o racismo porque você não o reconhece. Outra coisa é reproduzir o racismo porque não se reconhece a perspectiva de outras pessoas.

Outro método comum de igualação: é quando os brancos se sentem encurralados e não podem deixar de concordar que eu vivencio racismo. Neste caso, eles muitas vezes se recusam a aceitar que não podem ter a mesma experiência.

Eles me contam sobre suas experiências de férias em países que não são majoritariamente brancos. Como eles eram encarados, como as pessoas tocavam seus cabelos e queriam tirar fotos com eles. Estas anedotas servem como prova de que os brancos também podem ser vítimas de racismo. Ou que o medo ou a curiosidade diante do desconhecido era algo normal. Todas as pessoas teriam as mesmas experiências assim que deixassem de se parecer com a maioria.

Acredito que essas pessoas se sentiram desconfortáveis e que essas experiências podem ajudá-las a compreender um pouco melhor como é ser “diferente”. Mas as denominadas “experiências de racismo” dos brancos não são as mesmas que eu tenho.

Pois a construção da supremacia branca, devido à colonização, existe lá também onde a maioria das pessoas não-brancas vive. Os brancos, no entanto, não experimentam o racismo, mas seus privilégios. Eles continuam a ser os poderosos, os superiores. Isto não quer dizer que todos os encontros sejam positivos. Mas a diferença fundamental é: em ralção aos brancos pode-se presumir que são ricos, ou podem ser vistos como particularmente atraentes. Talvez até a um ponto que possa ser desconfortável ou mesmo ameaçador. Mas ninguém geralmente os considera como criminosos ou perigosos devido à cor de sua pele. Os atributos conferidos a mim como negra não me confiam uma posição de poder. Portanto, os brancos nunca são vítimas de racismo.

É incrivelmente cansativo e trabalhoso ter todas essas informações sobre o racismo estrutural à mão e ter que transmiti-las para que as pessoas acreditem em mim. Além de ser capaz e ter que reconhecer e nomear a distinção exata entre diferentes formas e experiências de discriminação. Eu não conheço automaticamente a lei na Califórnia ou as greves escolares em Pretória só porque sou negra. Nem sempre soube o que é a interseccionalidade ou fui capaz de articular a razão pela qual os brancos não são afetados pelo racismo. Sei disso, porque fiz uma pesquisa. Os brancos podem fazer exatamente o mesmo. Mas uma das maiores e mais violentas formas de privilégio branco é poder ignorar o racismo.

Não deveria ser meu trabalho exercer uma tarefa educacional na minha vida cotidiana ao lado de outras tarefas, especialmente porque já tenho que lutar contra a discriminação em si. Mas eu tenho que fazer isso para me defender. Fazer com que reconheçam a minha perspectiva não é algo garantido, trata-se de uma luta.

Não possuo esta discussão apenas com a sociedade de maioria branca, mas também comigo mesmo. Porque eu também fui moldada por estruturas racistas e cresci com a visão de que o racismo era apenas radicalismo de direita. Para todas as outras coisas, para as ferradas de mosquitos na vida cotidiana, eu não tinha uma palavra. Mas como eu ouvia constantemente que eu não devia ou não podia ficar com raiva das declarações ofensivas, generalizantes sobre pessoas negras ou adotar um comportamento agressivo, isso teve consequências sobre minha auto-imagem. Eu me via como um desvio da norma e aprendi a resolver as coisas comigo mesmo. Tive que me treinar para ouvir meus próprios sentimentos.

Mas fica ainda mais complicado quando as próprias pessoas que são afetadas pela discriminação saltam para o lado dos discriminadores. Por exemplo, quando uma mulher diz que o feminismo é estúpido ou quando negros consideram o racismo uma fantasia. Essas pessoas frequentemente afirmam que nunca sofreram discriminação e muitas vezes concluem que você mesmo cria os conflitos, porque precisa de atenção ou é hipersensível. Essas pessoas pensam que sabem melhor como combater as desvantagens estruturais: você pode evitar tudo isso se você simplesmente se comportar “corretamente”.

Dizem, por exemplo, que não considerariam a palavra “N” ofensiva. Como a estrela pop Roberto Blanco, por exemplo, que pronunciou-se em defesa do Ministro do Interior da Baviera, Joachim Herrmann, quando este último usou a palavra N para descrevê-lo – afirmando que isso seria um elogio. Por trás de tais defesas está a suposição de que o mundo é simplesmente do jeito que é, e em vez de mudá-lo, é melhor mudar a si mesmo. Você deve se adaptar! Essas pessoas se tornam cúmplices de uma forma de pensar que funciona contra elas. E se você ouve certas coisas com frequência suficiente, elas funcionam.

Em razão dos brancos relativizarem as suas próprias declarações e reagirem de forma afetada, sou, muitas vezes, impelida a não dizer nada quando me deparo com o racismo na vida cotidiana. Em vez disso, engulo a raiva, a tristeza e a frustração causadas pelas grandes e pequenas picadas de mosquitos. Mas isto é insalubre! O racismo te deixa doente! Estudos mostram isso e psicólogos o confirmam. O acúmulo dessas pequenas picadas de mosquito pode levar à exaustão e até mesmo à depressão.

„Your silence will not protect you“ – Seu silêncio não o protege. Foi o que escreveu o poeta e ativista negro Audre Lorde. Quebrar o silêncio é assustador, precisamente porque existe o risco de ser mal compreendido ou ferido. Mas as coisas ainda precisam ser ditas, diz Lorde.

Em minha realidade atual parece mais claro do que nunca que este silêncio não protege. O silêncio não faz desaparecer o racismo. Bastava um certo contexto, o humor certo e a concatenação de eventos – e o racismo não dá mais frutos apenas no meio da direita, mas prolifera em todos os lugares. Uma piada estúpida, um pensamento sorrateiro, um preconceito irrefletido – tudo isso vem da mesma história, da mesma raiz histórica, e neste momento está à tona. Coisas que há alguns anos atrás pareciam não ser bem vistas, há muito tempo se tornaram novamente respeitáveis.

Hoje estamos discutindo se é ou não necessário salvar vidas humanas no Mediterrâneo. Não nos opomos mais quando pessoas não-brancas são colocadas sob suspeita geral, como depois dos ataques na noite do Ano Novo 2015/2016, na Estação Central de Colônia*. Neste estado de espírito, comecei a me perguntar por quanto tempo mais tive que rir, ficar em silêncio, falar de um bom jogo. Quantas picadas de mosquito mais eu teria que suportar. Quanto pesado deve ser o fardo, até que eu possa começar a reclamar? Mas eu percebi ser uma atitude errada. Eu poderia ter esperado muito tempo por isso. A pergunta certa é: por que eu tenho que carregar todo aborrecimento? Por que não posso deixar minha raiva extravasar?

Hoje, penso que as pessoas que causam essa raiva deveriam saber disso. No final, é preciso menos energia emocional para enfrentar o conflito abertamente do que para carregá-lo sozinho. Mesmo que seja esperado que os brancos, muitas vezes, duvidem de mim. O que é necessário é coragem. Coragem para ser vulnerável e permitir que outros se sintam tão desconfortáveis quanto você.

Notas de rodapé:

*Nigger – palavra de origem norte-americana, termo racista e extremamente depreciativo para os negros. É usado para fazer uma degradação social e para expressar uma relação hierárquica. A ortografia é semelhante à palavra Neger, em alemão, que também é um termo racista. Em alemão, o termo para designar as pessoas negras é a palavra Schwarz, preto.

*Para diferenciar o substantivo do adjetivo referente à palavra preto (schwarz). Os substantivos em alemão são escritos em letra maiúsculas (Schwarz).

*Suspeitos de violência na comemoração do Ano Novo, ao ar livre, em Colônia eram estrangeiros negros.

Tradução: Viviane de Santana Paulo

Viviane de Santana Paulo (São Paulo-Berlim), poeta, tradutora e ensaísta, autora dos livros, Viver em outra língua (romance, Solid Earth – Berlim 2017), Depois do canto do gurinhatã, (poesia, editora Multifoco, Rio de Janeiro, 2011), Estrangeiro de Mim (contos, editora Gardez! Verlag, Alemanha, 2005) e Passeio ao Longo do Reno (poesia, editora Gardez! Verlag, Alemanha, 2002). Em parceria com Floriano Martins, Em silêncio (Fortaleza, CE: ARC Edições, 2014) e Abismanto (poemas, Sol Negro Edições, Natal/RN, 2012). Participa das antologias Roteiro de Poesia Brasileira – Poetas da década de 2000 (Global Editora, São Paulo, 2009) e da Antología de poesía brasileña (Huerga Y Fierro, Madri, 2007).

Texto publicado originalmente no site Deutschlandfunk, por Alice Hasters
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