Amanda Paranaguá Dória, a baronesa “morena” da abolição

FONTEPor Itan Cruz , eviado para o Portal Geledés

Era aniversário da República naquela tarde de 15 de novembro de 1925, quando a senhora Maria Amanda Lustosa da Cunha Paranaguá Dória, baronesa de Loreto, abriu o portão da residência da sua irmã, Maria Argemira, onde morava, em Botafogo, Rio de Janeiro, para o jornalista Mozart Monteiro, que a procurava para saber mais sobre o falecido imperador Pedro II, por ocasião do seu centenário de nascimento. Ter sido amiga íntima da família imperial e dama de companhia da princesa Isabel a tornou uma autoridade largamente conhecida e recomendada no assunto. “Amandinha”, como os íntimos a chamavam, era acostumada a receber muitos interessados sobre os tempos do império e mostrar-lhes as inúmeras fotografias, postais e cartas que colecionava. Sua morada se constituía como um “lugar de memória”, expressão de Pierre Nora, na medida em que privilegiava a recriação de laços entre o tempo presente e o tempo vivido, materializado e perenizado nos objetos guardados.

Ao descrever a anfitriã, Monteiro a notou como “morena”, classificação racial cercada de considerações. Destaca-se, dentre elas, a significativa posição social ocupada pela baronesa e o tom de sua pele muitas vezes percebido como “estigma” por denotar ascendência negra e que a remetia à maioria das pessoas que integravam as camadas mais baixas da sociedade tanto imperial, quanto republicana. Jocélio dos Santos demonstra como as categorias raciais podem ser, em certa medida, maleáveis, a depender das variáveis que envolvam os classificadores e classificados. A tonalidade “morena” da pele de Amanda devia-se à herança africana retintamente impressa na fisionomia do seu pai, o então falecido João Lustosa da Cunha Paranaguá, marquês de Paranaguá, senador do império. Além do pai de Amanda, seu falecido esposo, Franklin Américo de Menezes Dória, barão de Loreto, e um dos últimos ministros da Monarquia, também foi exaustivamente apontado pela imprensa aguerrida da época como “homem de cor”.

Amanda nasceu em Salvador, capital da Bahia, em 12 de junho de 1849 e mudou-se para a Corte aos cinco anos de idade, com toda a sua família, por conta da nomeação do seu avô materno, então barão e depois visconde de Montesserrate, para assumir a presidência do Supremo Tribunal de Justiça. Além de magistrado, Montesserrate passou a servir à imperatriz Teresa Cristina, como empregado da Casa Imperial, posição deveras invejada pelas famílias mais poderosas do país. Foi acompanhando o avô que Amandinha passou a frequentar os palácios de Pedro II para encenar peças e brincar com as princesas Isabel e Leopoldina. Numa destas visitas, em Petrópolis, ao brincarem de jardinagem, Isabel manejou desastrosamente um alvião, instrumento de ferro com um dos lados pontiagudos, tirando uma das vistas de Amanda, que logo foi substituída por um olho de vidro, tudo custeado pelo imperador. Este acidente enredou ainda mais a menina Paranaguá ao trono, estreitando sua relação com a família do monarca.

Sabendo da intimidade da entrevistada com os ex-soberanos, Monteiro perguntou à baronesa se ela esteve presente na assinatura da Lei Áurea. A titular respondeu que sim. Afinal de contas, ela tinha empreendido expressivos esforços na causa da abolição. Ao casar-se com Franklin, em 1868, o casal decidiu libertar progressivamente os onze escravizados que possuíam, adentrando a década de 1880 sem cativo algum. Por não ter tido filhos, tornou-se uma opção para Amanda envolver-se mais profundamente nas questões do seu tempo. Seu palacete, à época, na Praia da Lapa, na Corte, era local de encontro de eminentes abolicionistas negros, a exemplo de André Rebouças e Machado de Assis. Amandinha, que dominava o francês, o inglês, a etiqueta e as teclas do piano, também cultivava forte apreço pela política.

Joaquim Insley Pacheco. Maria Amanda Paranaguá Dória. Carte de visite. [1866-1883?]. Fonte: BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Arquivo Nacional. Fundo fotografias avulsas, BR_RJANRIO_O2.0.FOT.67.
Assuntos políticos eram temas corriqueiros nas cartas que Amandinha escrevia à sua madrinha, a também baiana Luiza Margarida Portugal de Barros, condessa de Barral, antiga preceptora das princesas e que a boca miúda da Corte dizia ser amante do imperador. A condessa que vivia entre a França e o Brasil era filha de um influente senhor de engenho baiano, Domingos Borges de Barros, visconde da Pedra Branca, a quem os desafetos chamavam de “visconde da Pedra Parda”, por conta de sua cor. Borges de Barros havia sido deputado às Cortes de Lisboa e era simpático à abolição e ao voto feminino. Luiza conviveu com a Corte francesa de Luiz Felipe de Orléans e recebeu uma educação relativamente mais ampla do que as mulheres do seu tempo. Seu gosto pela política era revelado pelas correspondências que trocava com Amandinha. Numa de suas cartas, a condessa incentivava sua afilhada, a quem julgava ter “carinha de se interessar na política do país”, a sugerir aos altos círculos políticos do Brasil, que criassem uma multa para certas artimanhas eleitorais, a ser paga em dinheiro, e que este valor fosse revertido para a libertação de pessoas escravizadas.

Ao identificar a educação como uma importante possibilidade de ascensão social dentro de uma sociedade extremamente escravista e hierarquizada, Amandinha empreendeu uma reconhecida campanha pela alfabetização de crianças pobres, majoritariamente negras e, inclusive, muitas delas ingênuas, isto é, filhos livres de mulheres escravizadas. Ainda que pertencente às mais altas camadas do império, Amanda partilhava certas semelhanças entre outros abolicionistas negros do seu tempo, que fizeram da educação um recurso precioso para o sucesso pessoal e o reivindicava também para a população de cor dos extratos mais desprivilegiados, como demonstram investigações de Ione Celeste Jesus de Sousa e Ana Flávia Magalhães Pinto. Por isso, a senhora Paranaguá Dória assumiu assento no conselho da Associação Promotora da Instrução, além de ter sido importante membro da Associação Mantenedora do Museu Escolar Nacional e da Associação Protetora da Infância Desvalida. Ela também incentivou o desempenho educacional de meninas, doando premiações para as alunas da Escola Normal da Corte. Seus esforços na busca por consideráveis donativos para instituições educacionais lhe renderam o título de “mãe dos analfabetos”. 

Juntamente com as campanhas educacionais das quais participava ativamente, Amandinha ingressou nas campanhas abolicionistas atuando de diferentes formas e nos mais variados espaços. Desfilou em carro aberto por Petrópolis, logo atrás da princesa regente, numa batalha de flores que visava reunir fundos para a libertação de pessoas escravizadas. Foi cúmplice no acoitamento de escravizados fugidos, doou flores de cera, feitas por ela própria, para serem leiloadas, a fim de reunir quantia suficiente para a compra da liberdade para os cativos e participou de confraternizações abertamente abolicionistas, como as que comemoraram o fim da escravidão no Ceará, em 1883. 

Em 1887, o próprio Pedro II a convidou para que o acompanhasse na viagem que faria à Europa para tratar da saúde, no entanto, Isabel solicitou que Amandinha não fosse e permanecesse com ela no Rio de Janeiro. A herdeira do trono sabia das qualidades políticas de Amanda e por isso seria importante tê-la por perto, para ajudá-la com a lida dos negócios públicos. Em maio de 1888, quando a abolição da escravidão entrou na pauta do Parlamento, Amandinha, na qualidade de dama de companhia da princesa regente, assumiu o papel de emissária e representante da herdeira do trono entre os homens do Parlamento. Da Câmara dos Deputados e do Senado, observou, opinou e anotou em cartas os discursos dos políticos e as manifestações do público frente à questão. Em oito de maio daquele ano de 1888, quando da apresentação da proposta de abolição na Câmara, ela escreveu: “nunca vi sessão mais variada. Tivemos palmas, vivas, flores, vivas, gritarias e, finalmente na rua, grande número de pessoas com estandartes e música. Amanhã teremos a discussão da proposta, votada quase por unanimidade”. Era a análise afinada de uma abolicionista bem entendida da dinâmica política do país.

Amanda dominava os códigos patriarcais de sua época de tal modo que sabia se impor politicamente mesmo em um ambiente predominantemente masculino como era o Parlamento. Anos depois, Antonia Tereza Wanderley, filha do barão de Cotegipe, rememorou os acontecimentos do Senado, por ocasião da aprovação da Lei Áurea, para onde foi a contragosto do pai. Antonia disse que Amandinha irrompeu o ambiente apinhado de curiosos, “dizendo: deixe-me ficar na frente porque venho representando, em nome da Princesa”. Tal declaração demonstra que a dama não estava apenas interessada em acompanhar a causa de perto, como também sabia fazer uso do poder que detinha para alcançar seus objetivos.

Amanda estava lá, no Paço da Cidade, onde a abolição da escravidão foi assinada pela regente e esteve também na missa campal, realizada em 17 de maio daquele ano de 1888, em ação de graças pelo fim do cativeiro. Dias depois, André Rebouças esteve em sua casa e registrou em seu diário que Amandinha recebeu “uma medalha do Jubileu do Papa para lembrança de seu concurso Abolicionista junto a Isabel I”. Foi graças à amizade com a regente, mas também pelo seu desempenho nas campanhas abolicionistas, que a dama e seu marido receberam o título de baronesa e barão de Loreto, em referência ao lugar de nascimento de Franklin Dória, a fazenda de Nossa Senhora de Loreto, na Ilha dos Frades, nas imediações de Salvador, na Baía de Todos os Santos.

Detalhe da fotografia de Antônio Luiz Ferreira. Missa campal celebrada em ação de graças pela Abolição da Escravatura no Brasil, 1888. São Cristóvão, Rio de Janeiro, 17.05.1888. Abaixo da seta vermelha, Amandinha. Fonte: Coleção Dom João de Orleans e Bragança, sob guarda do Acervo do Instituto Moreira Salles.

Meses depois, em 1889, a princesa comunicou em carta à Amandinha, que Franklin havia sido nomeado ministro do Império no gabinete chefiado pelo visconde de Ouro Preto. Nesta ocasião, referiu-se à sua amiga como “minha ministrinha”, se dirigindo à Amanda por meio de um cargo ocupado exclusivamente por homens, no ápice de suas carreiras políticas. Era o reconhecimento íntimo e político da atuação de Amandinha nos assuntos do país. Em novembro, quando os republicanos deflagraram o golpe, a baronesa de Loreto e seu esposo decidiram acompanhar a família imperial ao exílio, como demonstração de fidelidade aos soberanos depostos. De lá retornaram em 1890, quando a titular passou a selecionar, colecionar e preservar diversos guardados relacionados à história do império e à sua própria história, que atraíam diversos curiosos, a exemplo de Monteiro. Foi na casa da sua irmã, em Botafogo, que a baronesa faleceu no entardecer do dia 15 de agosto de 1931, aos 82 anos de idade. 

A trajetória de Amanda foi objeto da minha dissertação de mestrado, A serviço de Sua Alteza Imperial: Amanda Paranaguá Dória, dama da princesa Isabel (1849-1931), defendida na Universidade Federal Fluminense, sob a orientação da Prof.ª Drª Ana Maria Mauad e que em breve será publicada como livro, pela Editora da Universidade Federal da Bahia.

Assista ao vídeo do historiador Itan Cruz no Acervo Cultne sobre este artigo:

Nossas Histórias na Sala de Aula
O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):

Ensino Fundamental: EF08HI15 (Identificar e analisar o equilíbrio das forças e os sujeitos envolvidos nas disputas políticas durante o Primeiro e o Segundo Reinado); EF09HI04 (Discutir a importância da participação da população negra na formação econômica, política e social do Brasil).

Ensino Médio: EM13CHS101 (Identificar, analisar e comparar diferentes fontes e narrativas expressas em diversas linguagens, com vistas à compreensão de ideias filosóficas e de processos e eventos históricos, geográficos, políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais); EM13CHS502 (Analisar situações da vida cotidiana, estilos de vida, valores, condutas etc., desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade, preconceito, intolerância e discriminação, e identificar ações que promovam os Direitos Humanos, a solidariedade e o respeito às diferenças e às liberdades individuais); EM13CHS601 (Identificar e analisar as demandas e os protagonismos políticos, sociais e culturais dos povos indígenas e das populações afrodescendentes (incluindo as quilombolas) no Brasil contemporâneo considerando a história das Américas e o contexto de exclusão e inclusão precária desses grupos na ordem social e econômica atual, promovendo ações para a redução das desigualdades étnico-raciais no país).

Itan Cruz 

Bacharel interdisciplinar em Humanidades pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Bacharel e Licenciado em História (UFBA), Mestre em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFBA) e doutorando em História Social pela UFBA.

E-mail: itancruz.r@gmail.com; Instagram: @itanncruz

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 
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