Ana Maria Gonçalves aponta necessidade de se debruçar, com mais força, sobre o passado histórico do país, em debate na Central do Brasil

A escritora Ana Maria Gonçalves Foto- Léo Pinheiro : Divulgação

Autora do fenômeno literário ‘Um defeito de cor’, escritora participa de bate-papo aberto na biblioteca Estação Leitura, um tesouro escondido dentro de estação de metrô no Centro do Rio

por Gustavo Cunha no O Globo

A escritora Ana Maria Gonçalves Foto- Léo Pinheiro : DivulgaçãoA escritora Ana Maria Gonçalves Foto- Léo Pinheiro : Divulgação

Ana Maria Gonçalves é um fenômeno literário em constante redescoberta. Autora do elogiado “Um defeito de cor” — livro que já tem prevista a 19ª edição, ainda neste ano —, a escritora de Ubiá, no interior de Minas Gerais, vê a própria obra ganhar releituras improváveis a cada ano. É algo bastante peculiar, ela mesma admite, lembrando que a saga histórica sobre uma escrava oriunda do Reino do Daomé (atual Benim) foi lançada em 2006.

Nesta quinta-feira, às 19h30m, novos olhares são lançados para a trama contundente, num bate-papo aberto (e gratuito) promovido pela biblioteca Estação Leitura, na estação de metrô Central, no Centro do Rio. Parte do projeto “Encontros com territórios”, o evento, aliás, tem uma programação regular, com debates mensais com escritores brasileiros — no dia 8 de novembro, por exemplo, será a vez de Nei Lopes comentar o romance “Rio negro, 50”.

Nesta entrevista, Ana Maria comenta a adaptação de “Um defeito de cor” para a televisão — o livro se transformará em novela, em breve — e insiste na importância de se voltar, com mais afinco, para o passado do país: “Enquanto não olharmos para trás, nossos piores momentos continuarão nos assombrando”, ela afirma.

Não sei se é apenas uma impressão impulsionada pelas redes sociais, mas vejo cada vez mais compartilhamentos a respeito de “Um defeito de cor” — muitos atores, inclusive, o citam como um livro de referência. Sente também que a obra está sendo redescoberta?

“Um defeito de cor” é um livro que tem uma trajetória bastante peculiar, pois já está indo para a 19ª edição. Ou seja, sempre vendeu bem desde que foi lançado. Mas vejo, sim, um grande aumento na procura depois, principalmente, de ser citado pelo Lázaro Ramos em seu livro “Na minha pele”.

A história de “Um defeito de cor” está sendo adaptada para uma novela das 23h, da TV Globo, como foi adiantado recentemente pela colunista Patrícia Kogut, do jornal O Globo. O que você pode dizer sobre esse trabalho?

Estou me mantendo afastada do projeto, por achar que meu trabalho já está feito e que adaptações são de outra ordem, a partir de uma leitura feita por roteiristas e diretores. Confio na equipe que está tocando o projeto e acredito que vão fazer um ótimo trabalho.

Como você avalia a entrada de escritores negros no mercado de trabalho? O preconceito também se estende à literatura? Se sim, de que forma?

O mercado literário funciona através de apadrinhamento. É bem raro que alguém consiga publicar algo, pelo menos nas maiores editoras, que não seja por indicação de outros escritores e editores. Ou seja: um mercado que já é elitista — majoritariamente composto por homens brancos, héteros, do sudeste — se auto-reproduz a partir das relações estabelecidas por essa elite. Não é racismo direto que mantém os negros fora do grande mercado editorial, mas é o racismo secular que produziu no país fruto da escravidão a divisão racial, econômica e social. Há também um pouco de preconceito que trata como panfletária ou militante a literatura produzida por negros e negras falando de seus próprios universos, enquanto que a mesma situação, quando se trata de um universo vivido por escritores ou escritoras brancas, é tida como produtora de uma literatura de temática universal.

Recentemente, Conceição Evaristo tentou uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Já pensou em se candidatar? Qual a importância de escritores negros ocuparem também esse espaço?

Nem sei se podemos falar em importância quando deveria se tratar de direito. Perdeu a Academia, ao não eleger Conceição Evaristo. Aqui acredito que vale o mesmo em relação ao mercado editorial: a Academia elege aqueles com os quais se identifica. É uma instituição da qual não me interessa fazer parte.

Muitas transformações ocorreram no país desde 2006, quando o livro foi lançado. Este ano, tivemos o assassinato ainda não respondido de Marielle Franco. O que “Um defeito de cor” nos aponta sobre a realidade que vivemos hoje no Brasil?

Millôr Fernandes tem uma frase que sempre gosto de usar: “O Brasil tem um grande passado pela frente”. E eu acho que é isto: nunca quisemos assumir a nossa história que, contaminada pela escravidão e pela ditadura, é violenta, é repressora, e nos faz acreditar que boa parte da população é descartável. Enquanto não olharmos para trás e entendermos o caldo histórico que nos molda como povo, os nossos piores momentos continuarão nos assombrando. Isso nos faz entender porque temos ainda hoje, em pleno século XIX, tanto um candidato a presidente quanto o seu vice, Bolsonaro e Mourão, fazendo declarações abertamente racistas e seus eleitores não dando a mínima importância a isso. Bolsonaro, inclusive, quando perguntado se não ia repudiar o assassinato de Marielle Franco disse que não, porque sua declaração seria polêmica. Puro eufemismo para o que nem ele ousa dizer.

-+=
Sair da versão mobile