Ana Maria Gonçalves fala de leituras, escritas e produção literária negra

Em outubro, a Fundação Pedro Calmon/Secretaria de Cultura do Estado da Bahia realizará o Curso de Escritas Criativas, com a escritora Ana Maria Gonçalves, que se unirá a um time de grandes nomes da escrita em suas variadas linguagens. São eles: a escritora, prosadora e dramaturga Cidinha da Silva (MG), o poeta, romancista, roteirista de cinema e televisão e professor, Paulo Lins (RJ), o escritor Marcelino Freire (PE) e a atriz-MC, diretora, diretora musical, pesquisadora, slammer, Roberta Estrela D’Alva (SP).

Do FPC

#FPCEntrevista – Para você, qual a importância de participar de projetos de estímulo à leitura e a produção literária como o Escritas Criativas?

 

Ana Maria Gonçalves – Tenho plena consciência de que tive uma formação privilegiada como leitora. Desde muito cedo tive contato saudável e estimulante com os livros, através da minha mãe, que é leitora compulsiva. Através do exemplo dela, cresci vendo a leitura como algo prazeroso e divertido, e não como obrigação. Tenho certeza de que isto foi fundamental na minha vida, em vários sentidos, mas principalmente ampliando horizontes e conservando características que me são caras, como a curiosidade, o inconformismo, o questionamento, a compreensão das contradições e ambiguidades humanas. A literatura de ficção nos possibilita isso através do contato com outros mundos (exteriores e interiores), com dramas, alegrias e tragédias, com culturas às quais não teríamos acesso de outra maneira. A partir desses locais de alteridade podemos imaginar também novas possibilidades e transformações no mundo ao nosso redor. Para isso, para um mundo em que haja maior representatividade e, consequentemente, mais entendimento e possibilidades, acredito que novas histórias precisam ser contadas. Histórias que fujam à produção hegemônica do mercado editorial brasileiro que é composto, em grande maioria, por homens brancos, héteros, classe média ou média alta, de grandes centros urbanos do sudeste, escrevendo sobre seus próprios universos ou sobre universos e personagens que, sendo-lhes distante física ou emocionalmente, muitas vezes são representados de maneira estereotipada e/ou exótica.

Precisamos formar mais escritoras e escritores que, a partir de experiências e formações distintas, insiram suas próprias histórias na construção desse imaginário que chamamos de Brasil. Desta maneira, um grande público leitor potencial poderia ser formado, pois passaria a se identificar também, ao se ver representado. Conseguindo se transportar para dentro da história, literatura vira prazer, uma grande fonte de sonhos e de universos reais e possíveis. Conhecimento e, principalmente, a sua produção, é poder. Para mim, a importância desse curso está na possibilidade de redistribuição desse poder entre novos leitores e escritores.

 

#FPCEntrevista – Além das aulas com você, o curso trará uma série de workshops temáticos com escritores e poetas convidados. O que o público pode esperar das aulas e dos workshops?

 

AMG – Sobre o curso, não tenho a pretensão de ensinar ninguém a escrever, até porque é um processo muito subjetivo. Acredito, no entanto, que ele vai apresentar ferramentas que facilitam o trabalho da escrita, que exige muito mais estudo e disciplina do que as pessoas imaginam. Coisas que eu adoraria ter sabido quando comecei a escrever. Para quem realmente quer encarar a escrita como profissão, é um passo a partir do qual poderá iniciar seu processo de experimentação e aprendizagem, que é contínuo. Sobre os workshops não tenho muito a dizer, pois deixei os convidados bem à vontade para que decidam o que e como fazer. Mas sei que serão fantásticos, pois são com pessoas que gostam do que fazem e fazem bem feito, que estudam e se aprimoram constantemente, que são reconhecidas em suas áreas de atuação, que são generosas com o conhecimento acumulado e estão animadas com a possibilidade de compartilhar.

 

#FPCEntrevista –Os workshops tratarão de diferentes estilos literários. Qual a importância desse contato com diferentes estilos para o jovem escritor que está começando a se lançar nessa área?

AMG – São gêneros diferentes que exigem abordagens e técnicas diferentes. No curso abordarei conceitos mais gerais, e os workshops serão específicos. Escrever um poema, por exemplo, exige abordagem e postura completamente diferentes das necessárias para escrever um romance. Acho importante que os alunos tenham contato com os diversos gêneros e possam escolher o que funciona ou flui melhor para eles, dedicando-se mais ao seu domínio. O que não quer dizer que tenha que ser apenas um, mas que a produção de cada gênero possui características que lhe são próprias.

amg

#FPCEntrevista -50% das vagas do Escritas Criativas são destinadas aos inscritos que se declararem negros. Como isso pode contribuir para o incentivo de jovens leitores e escritores de classes menos favorecidas?

 

AMG – Além do que já citei, sobre a representatividade atrair leitores, é gritante a falta de negros e negras em destaque na produção de conteúdo para o que podemos chamar de grande mercado editorial, televisivo, teatral, jornalístico, cinematográfico. Ou seja, entre os formadores de opinião. Como somos uma sociedade baseada no compadrio, os lugares de destaque e de poder tendem a ser ocupados por iguais àqueles que sempre estiveram lá, dificultando a inserção de quem nunca teve acesso a tais espaços. Temos excelentes artistas negros cujas produções, por falta de oportunidade e/ou apadrinhamento, com raríssimas exceções, ficam restritas a círculos específicos formados geralmente por outros artistas, militantes e acadêmicos negros que vão atrás dessa produção. Com os escritores não é diferente, e quase ninguém consegue viver do que faz.

A literatura brasileira geralmente é produzida por e para uma elite. Isso acontece há séculos, e faz parte de um processo de dominação e descriminação. A literatura produzida por negros é tão ignorada por essa elite que tivemos o poeta Ferreira Gullar escrevendo que “os negros, que para cá vieram na condição de escravos, não tinham literatura, já que essa manifestação não fazia parte de sua cultura. Consequentemente, foi aqui que tomaram conhecimento dela e, com os anos, passaram a cultivá-la”. Ou seja, segundo Ferreira Gullar, literatura é coisa de branco europeu, ou o que o branco diz que é, ignorando saberes e fazeres diferentes dos seus. O que Gullar não consegue admitir é a oralidade como literatura, visto que o domínio da escrita foi usado, durante a escravidão, como método de distinção, pois escravos eram proibidos de estudar. Ironicamente, muitos escravos malês eram comprados para servirem de tutores e professores de filhos de donos de escravos, pois dominavam a escrita e as ciências mais exatas que seus donos desconheciam E o que Gullar ignora completamente, porque nunca se interessou em ir atrás, é que há registros de literatura – aquela única que ele consegue conceber como tal, a escrita – na costa oriental da África ainda no século X.

Esse domínio da produção literária pela elite branca, a meu ver, leva agora a uma saturação. Pega-se boa parte dos livros publicados pelas grandes editoras brasileiras e as histórias se parecem: os mesmos locais, as mesmas personagens, os mesmos conflitos etc. Acredito de verdade que a longa e rica tradição literária herdada dos africanos, aliada a temas que são muito mais sensíveis e caros aos seus descendentes, depois de séculos de represamento, censura, preconceito e negação por parte de um país que se beneficiou mas que nunca quis assumir as consequências da escravidão, tem tudo para nos tirar desse marasmo que atinge também os canais de notícia (apenas 6 dos 555 colunistas fixos dos 8 maiores jornais, revistas e portais de notícias brasileiros são negros), a TV de entretenimento, o teatro, o cinema e por aí vai. Alguns veículos ou mercados já se atentaram para o esgotamento das velhas fórmulas e perceberam que, pela sobrevivência, precisam se reinventar. Temos que qualificar profissionais para atender à potente e crescente demanda por histórias que nunca foram contadas e por temas que nunca foram tratados com profundidade; não apenas porque o mercado começa a enxergar nela uma possibilidade de renovação, junto a um público mais atendo, crítico e exigente, mas porque já passou da hora de contarmos mais e melhor as nossas próprias histórias.

#FPCEntrevista – Você já tem publicados os livros “Ao lado e à margem do que sentes por mim”, que foi a sua primeira obra, e o “Um defeito de cor”, que recebeu o Prêmio Casa de Las Américas de 2007. Atualmente você está trabalhando em algum livro novo? O que o público pode aguardar de novas publicações?

 

AMG – Finalmente consegui terminar mais um livro, que se encontra no meu eterno processo de reescrita, mas deve sair em breve. Chama-se “Quem é Josenildo?” e é um livro juvenil, policial e de ficção científica. Estou também estudando muito e escrevendo para teatro e para cinema.

 

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