O texto da coluna visa discutir as rupturas e continuidades no uso e exploração do espaço urbano em relação à disseminação de uma agenda mundial modernizadora para os portos brasileiros e para o Estado monárquico durante o reinado de Dom Pedro II. Para isso, foi fundamental analisar os embates decorrentes das divergências entre as soluções propostas pela agenda modernizante e as práticas escravistas do modelo portuário vigente.
A construção da região portuária e a organização das companhias de docas do Rio de Janeiro no século XIX foram comparadas com as de Londres, Marselha e, pontualmente, com a de Nova York. Essas transformações na estrutura portuária brasileira aconteceram sob a supervisão de André Rebouças, engenheiro idealizador do maior projeto portuário brasileiro no Segundo Reinado.
A partir de 1852 começou a modernização dos portos brasileiros com a obra da Doca da Alfândega (DA) e, em 1871, com a Doca Dom Pedro II (DDPII). A busca pela introdução de um novo padrão de prestação do serviço portuário na cidade do Rio de Janeiro expôs disputas entre grupos oligárquicos, estabelecidos na capital monárquica, que desejavam lucrar com as novidades tecnológicas sem, no entanto, perder o controle sobre sua gestão.
Os protagonistas naquele cenário, baseados em um ideal liberal, disputaram a distribuição de concessões de serviços básicos, resguardados pelo governo monárquico por meio da garantia de juros. Ao mesmo tempo, associavam-se livremente, através de cotas acionárias, a fim de gerir o novo negócio. Contudo, os mesmos entendimentos liberais, que impulsionaram esses empresários a adotar novas percepções do direito de propriedade e que faziam parte da política emancipatória daquele período, não fomentaram a extinção do uso de mão de obra escravizada na zona portuária.
A partir de 1867, nas proximidades da atual Praça XV de Novembro, o Brasil começou a dar seus primeiros passos em direção ao novo tipo de doca que permitiria o embarque e o desembarque de mercadorias transportadas pelos navios à vapor de grande calado. Todavia, esta doca teve sua vida marcada por restrições técnicas devido à pouca profundidade da baía naquela localidade e pela sua pequena possibilidade de expansão. Em 1876, a DDPII, que iniciou sua construção em 1871, passou a exercer suas atividades como uma alternativa de superação das limitações técnicas da DA.
De maneira geral, os novos portos, também chamados de Portos à Vapor, estabeleceram-se como estruturas industriais concorrentes que, através de cotas acionárias de sociedades anônimas, deveriam dividir os lucros ou prejuízos provenientes da atividade desenvolvida. Entretanto, a despeito dos avanços tecnológicos, essas empresas acabaram por assumir um perfil monopolista, mantendo sua margem de lucro baseada na continuidade do uso da mão de obra escravizada. Ao se inspirar no modelo anglo-francês para renovar sua estrutura portuária, o Brasil passou por experiências semelhantes.
É possível confirmar essa correlação pelo exame das circunstâncias em que se desenvolveram as atividades da Companhia da Índias Ocidentais no porto de Londres. Naquela ocasião, os principais diretores da Companhia, com destaque para George Hibbert, opuseram-se à abolição e ao fim do tráfico, protagonizando intensos debates com o abolicionista inglês William Wilberforce. Anos mais tarde, no Brasil, as circunstâncias do enfrentamento realizado pelos principais sócios das companhias de docas brasileiras contra a promulgação da Lei do Ventre Livre, por meio do Club da Lavoura e Commercio, assumiu um caráter similar ao do episódio inglês.
Essa dinâmica, que se estabeleceu na disputa pelo uso e/ou domínio do espaço portuário urbano, configurou-se hegemonicamente na agenda proposta pela modernização. O curso das transformações sugeridas não se limitou à troca de composição das sociedades e das cotas acionárias. Os comerciantes, engenheiros, negociantes, empresários, políticos e banqueiros, que atuavam naquela conjuntura, mesclavam relações público-privadas, exercendo funções dentro da burocracia governamental e nas companhias privadas. O êxito dessas redes de poder repousava em laços de consanguinidade ou através de vínculos matrimoniais que tinham por finalidade a manutenção do status quo.
Em Londres, a Trinity House, corporação que geria o Tâmisa desde o século XVI, viu seus sócios se transferirem para as novas companhias que surgiram ao longo do rio em direção a seu estuário. No Rio de Janeiro, os comerciantes, que já desenvolviam a atividade antes da chegada da Família Real, ao compor diferentes setores da Associação Comercial do Rio de Janeiro (ACRJ), migraram de sociedade apoiados na força hegemônica do grupo.
Por fim, é possível admitir que o novo modelo portuário monopolista rompeu com o antigo do ponto de vista tecnológico. Mas continuou utilizando a mão de obra escravizada, pois seus financiadores e gestores exploravam o regime escravista, como nos exemplos de George Hibbert, proprietário de plantation na Jamaica, e do Conde de Bonfim, presidente do Club da Lavoura e do Commercio.
Assista ao vídeo do historiador Antonio Carlos Higino da Silva no Acervo Cultne sobre este artigo:
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O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):
Ensino Fundamental: EF09HI03 (9º ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados); Ensino Médio: EM13CHS101 (Identificar, analisar e comparar diferentes fontes e narrativas expressas em diversas linguagens, com vistas à compreensão de ideias filosóficas e de processos e eventos históricos, geográficos, políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais).
Antonio Carlos Higino da Silva
Doutor em História, Universidade Federal do Rio de Janeiro
Pós-doutorando na Universidade Federal do Ceará; E-mail: higinoalleluia@gmail.com; Instagram@Nos_Braços_da_História
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