Angélica Moreira: A memória da diáspora negra resgatada por meio da comida

A cozinheira de 59 anos resgata a culinária de seus antepassados no Ajeum da Diáspora: “Onde quer que nós negros somos levados, trazemos conosco o nosso jeito de comer”.

Por Clara Rellstab Do Huff post Brasil

JUH ALMEIDA/ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL

Angélica Moreira é a 138ª entrevistada do projeto “Todo Dia Delas”, que celebra 365 Mulheres no HuffPost Brasil.


“O filho perguntou pro pai: ‘Onde é que tá o meu avô? ‘. O pai perguntou pro avô: ‘Onde é que tá meu bisavô? ‘. O avô perguntou pro bisavô: ‘Onde é que tá meu tataravô? ‘”, canta Gilberto Gil na faixa Babá Alapalá, do álbum Refavela. E é mais ou menos essa ausência que a cozinheira Angélica Moreira, de 59 anos, tenta acalentar no seu restaurante Ajeum da Diáspora, dedicado a servir e reinventar pratos africanos.

Em yorubá, a palavra ajeum é formada pela contração dos termos awa e jeun – respectivamente nós e comer, no português. Juntas, representam o ato de realizar uma refeição em comunhão com o outro, em torno de um prato comum. A diáspora, por sua vez, representa a dispersão de um determinado povo, em consequência de preconceito, perseguição política, religiosa ou étnica.

O que eu quero com essa comida? Resgatar e dialogar. É Diáspora por isso.

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Angélica Moreira faz da comida uma ferramenta para resgatar a memória da diáspora negra.


Os escravos, quando chegaram ao Brasil, trouxeram com eles a sua herança cultural que foi disseminada e perpetuada boca a boca, geração a geração. Resistiu. O antropólogo Raul Lody costuma dizer que as religiões tradicionais de matriz africana são verdadeiros memoriais não só dos idiomas, das danças, da música, mas, principalmente, da comida.

Angélica nasceu no interior da Bahia, numa cidadezinha pequena chamada Itaquara – na região sudeste, pertinho de Jaguaquara e Jequié. Ficou lá por pouco tempo. Aos sete anos, após uma forte seca que atingiu a região, ela e seus dois irmãos tiveram de se juntar à mãe, que já morava em Salvador, no bairro da Fazenda Grande. “Morávamos a família toda, umas 14 pessoas, numa casa pequena, de dois cômodos. Quando fechávamos a porta, ninguém mais saía”, conta, aos risos.

Foi uma infância pobre, tinha muita dificuldade, mas foi muito lúdica.

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A consciência sobre o movimento negro e a importância da resistência já eram velhos amigos de Angélica.


Um tempinho depois, se mudaram para o bairro de Pirajá que, à época, ainda tinha cara de fazenda e estava sendo loteado – localizado às margens da BR-324 e do Subúrbio Ferroviário de Salvador, a região hoje é uma das mais industrializadas da capital, com direito a diversos conjuntos habitacionais, estações de transbordo e um porto seco.

A matriarca da família, mãe solteira, trabalhava como empregada doméstica e lavadeira. “Ela se virava. Eu sempre falo dessa arte dela de lavar e passar roupa. Era muita tecnologia. Hoje tem amaciante, tem isso e aquilo. Naquela época não tinha nada. Tinha que ferver, depois botar para quarar, depois colocava patchouli… toda uma tecnologia das africanas: Temos a ciência dentro da gente”.

Estudou, se alfabetizou, fez ginásio, tudo em Pirajá. “Jogava bola de gude, empinava arraia, roubava fruta dos quintais, tomava banho de cachoeira em São Bartolomeu, ia na maré mariscar… Foi uma infância pobre, tinha muita dificuldade, mas foi muito lúdica”. As brincadeiras atreladas ao vício da leitura só alimentaram ainda mais a imaginação e a sede de conhecimento de Angélica.

Os quilombos tinham os terreiros porque eram os lugares onde nós, negros, podíamos manter a nossa fé, exercitá-la.

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Em yorubá, a palavra ajeum é formada pela contração dos termos awa e jeun – respectivamente nós e comer, no português.


Fez supletivo para terminar o segundo grau e começou a trabalhar. Primeiro numa gráfica e depois numa famosa galeria de arte de um casal apaixonado pela coisa. “Comecei a ler uns livros de arte, a me apropriar desse ambiente também. Vendia os quadros de Carybé, obras que valiam uns 10 mil dólares… eu não fazia noção de como um quadro poderia valer isso tudo. Foi um divisor de águas na minha vida, essa coisa de ter bom gosto, de ter noção estética”.

Ela avalia a imersão na arte como um grande divisor de águas na sua vida. Mas o acontecimento que, de fato, mudou tudo, foi o nascimento da primeira filha, Daza. “Quando virei mãe, eu falei: vou fazer o negócio direito, vou ser mãe de verdade”. Coincidência ou não, Angélica é Ekedi de Oxum, a Orixá das águas, aquela que mantém em equilíbrio as emoções, da fecundidade e da natureza. Literalmente, uma mãezona.

Depois de Daza vieram Inaê e Safira, e com essas duas últimas o companheiro Chico, um ourives que se dedica a esculpir joias em homenagem aos orixás. Se mudaram para o Engenho Velho da Federação, local onde o candomblé pulsa nos mais de dez terreiros que lá fazem morada. O local, quando a escravidão era vigente, era uma fazenda com um grande engenho de cana-de-açúcar, destino de muitos negros africanos trazidos forçadamente para cá.

O racismo faz isso com a gente, faz a gente não se aceitar.

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“Eu ia muito para todas as festas de candomblé. Cada ruazinha do Engenho Velho tem um terreiro porque era um quilombo, né? Então não mudou muito. Os quilombos tinham os terreiros porque eram os lugares onde nós, negros podíamos manter a nossa fé, exercitá-la”. A consciência sobre o movimento negro e a importância da resistência, que foi ainda mais reforçada com o novo lar, já eram velhos amigos de Angélica.

Foi do movimento negro desde o início, quando ele ainda estava engatinhando em Salvador. Em 1978, apanhou da mãe porque raspou o cabelo para começar a cultivar um penteado Black Power. “Quando eu raspei o meu cabelo porque não aguentava mais espichar. Minha família toda me chamou de doida. O racismo faz isso com a gente, faz a gente não se aceitar. Meu ex-marido, que é negro de pele clara, falava que assistir televisão comigo era um porre, que em tudo eu via racismo. Mas realmente existe racismo em tudo”.

Para ficar mais perto do colégio das meninas e da boêmia da qual sempre foi fã, se mudaram para o bairro do Tororó, onde vive até hoje. Como trabalho, fazia pesquisa de mercado para uma empresa especializada e se responsabilizava por vender as jóias confeccionadas pelo marido. As filhas estudaram, se formaram… e ela resolveu fazer o mesmo.

Eu ficava pensando: Um dia vai ter uma coisa que eu vou poder fazer, eu quero minha independência, uma coisa que eu faça, que eu domine.

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“Eu tinha vontade de me formar. Pensava, ‘pô, não vou passar a minha vida sem ter o nível superior’. Quero responder superior completo quando perguntarem: ‘Qual a escolaridade? ‘. Com 49 anos, eu entrei na Uneb [Universidade Federal da Bahia] eu fiz pedagogia. Me formei em 2013. Paguei essa dívida que tinha comigo”, conta.

Com canudo na mão, veio o divórcio. Continuou vendendo as joias, mas pensou: “Eu sempre vendia o trabalho dele. Só que eu não fazia, né? Então eu ficava pensando: Um dia vai ter uma coisa que eu vou poder fazer, eu quero minha independência, uma coisa que eu faça, que eu domine”.

Recebeu em casa, durante o carnaval, um amigo que é chef. Decidiram cozinhar juntos no sábado, de ressaca da folia momesca. “Chamei alguns amigos e no outro dia o pessoal tava ligando perguntando: ‘e aí, hoje tem mais?’ Aí eu falei: Vou continuar.”

Pensou em fazer feijoada – mas todo mundo faz. Cogitou, então, fazer moqueca – só que, com a herança africana, a iguaria não é coisa rara por aqui. Seu de conta que, além do óbvio, existia muitos, mas muitos pratos oriundos da África que eram pouco conhecidos. Decidiu meter a cara nos livros e no Google, e pesquisar.

Eu me desloquei das joias para a comida e os meus clientes são praticamente os mesmos, porque eles acreditam em tudo o que eu faço.

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Entre os convidados ilustres que já recebeu no restaurante, está a


“Comecei a pesquisar prato aqui, prato ali, dou um toque meu, boto meu jeito, meu tempero, crio, copio, reinvento e estamos aí. O que eu quero com essa comida? Resgatar e dialogar. É Diáspora por isso: Onde quer que nós negros somos levados, trazemos conosco o nosso jeito de comer”.

Definiu o cardápio, que varia a cada edição com a seguinte formação: três entradinhas e um prato principal. Há ainda a opção de pedir uma sobremesa e três batidas criadas por Angélica – uma de coco, gengibre e cachaça, outra de tamarindo e calda de açúcar e a última de maracujá. “Eu não posso encontrar um africano que eu já tô anotando uma sugestão (risos). Pesquiso muito mesmo, dou uma modificada, quando o ingrediente não tem aqui, diminuo a pimenta algumas vezes… não que eu não faça o comum, mas eu procuro sempre inovar”.

Acredita que não é só uma comida por comer, é uma comida que tem uma bagagem, um conteúdo, um outro olhar.

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Ela já foi entrevistada para um programa de televisão do Japão, e tem na lista de clientes nomes como o chef Anthony Bourdain.


O segredo para que o negócio dê certo, ela conta, é o acolhimento. A comida, por exemplo, é servida sempre numa gamela, para que os convidados reaprendam a compartilhar. “O Ajeum só tem me trazido felicidades. Desafios também, claro, para nós, mulheres negras, as coisas nunca são fáceis. Ganho dinheiro? Não, pago as minhas contas. Um mês no vermelho, um mês normal e vou levando”.

A fama tem se espalhado mundo afora. Já foi entrevistada para um programa de televisão do Japão, e tem na lista de clientes ilustres nomes como o chef Anthony Bourdain e a ativista Angela Davis – “receber a Pantera Negra foi uma das maiores honrarias da minha vida”. Sobre o futuro, dispensa previsões, e afirma que quer “continuar vivendo”: “Eu acho que esse é o melhor sonho que a gente pode ter na vida”.

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