Aonde mora a violência contra a mulher?

Foto da Campanha Feminicídio: uma realidade que queremos acabar do Ministério Público da Bahia.

No dia 23 de julho de 2019, a jornalista Cláudia Collucci publicou um artigo no jornal Folha de São Paulo intitulado: Mulher corre mais risco de ser morta em casa do que na rua. No texto, a autora apresenta dados do Atlas da Violência de 2018, em especial a informação sobre o aumento de 17,1% do número de mulheres mortas dentro de casa entre 2012 e 2017, enquanto, no mesmo período, os assassinatos em locais públicos caíram 3,3%.

Por Camila Miranda Sousa Race, enviado para o Portal Geledés 

Foto da Campanha Feminicídio: uma realidade que queremos acabar do Ministério Público da Bahia.

Esses dados trazem um paradoxo: em um país marcado por conflitos urbanos e violência nas ruas, a mulher é mais assassinada em casa. Ademais, outro ponto sensível é o fato da mulher negra ser a maior vítima de feminicídio no país, perfazendo 61% das vítimas segundo o Anuário de Segurança Pública de 2019.

Os referidos índices mostram a peculiar situação da violência contra a mulher no Brasil, a qual se relaciona intimamente com o ambiente doméstico e o racismo. O feminicídio é a morte intencional de mulheres por sua condição de gênero, portanto, faz parte do ciclo de violência contra a mulher. No Brasil, essa cadeia de abusos perpetua-se tanto dentro das famílias como nas nossas relações inter-raciais.  

Explicar os motivos dessa violência a la brasileira contra a mulher é tarefa complexa e exige, entre outras, uma breve análise do nosso contexto histórico. Como exemplo é relevante citar algumas leis do período da escravidão, destacando o tratamento (não)concedido às mulheres negras.

No Brasil colonial, a sociedade era regulada pelas Ordenações Filipinas que previa, entre outras situações, que o marido poderia matar a mulher em caso de adultério. Nesse período, por lei, a mulher era submetida aos mandos e desejos do seu marido, como uma propriedade. Com isso, a sociedade era estruturada através de relações familiares abusivas, sem que houvesse questionamentos sociais em relação à violência contra a mulher. 

Nesse mesmo período o Brasil vivia sob a égide do regime escravocrata, durante o qual a pessoa escravizada era considerada bem móvel, conforme a Consolidação das Leis Civis de 1858. Neste contexto, o escravo não era considerado pessoa, não tinha personalidade jurídica, logo, não tinha direito ao nome, a reputação, ao próprio corpo ou à honra, por exemplo. Então, por lei, a mulher negra era uma propriedade, corpo objeto de desejos e desmandos do seu senhor e quem mais quisesse. 

Posteriormente, houve o advento do Código Penal de 1890, que previa punição para o crime de estupro cometido contra algumas mulheres, as honestas. Este conceito abarcava as mulheres brancas virgens ou viúvas que detinham a chamada moral sexual irrepreensível, ou seja, mulheres consideradas decentes por obedecerem a moral e os bons costumes da época. Essa lei protegia a mulher branca honesta, em nome da integridade da família e não para resguardá-la. 

Entretanto, a mulher negra não fazia parte desse seleto rol, por conta da herança escravocrata esses eram corpos objetificados, insuscetíveis de estupro. O imaginário da mulher negra como lasciva, a mulata da cor do pecado, inviabilizava a compreensão daqueles corpos como honestos e ajustados à moral. Por isso, nem mesmo em nome da manutenção da família, a mulher negra era protegida pela lei.

Esse legado ainda contamina a simbologia do feminino na sociedade patriarcal brasileira e reflete-se nas estatísticas de feminicídios, em especial das mulheres negras. Enquanto a mulher branca, em sua maioria, é alvo da violência no âmbito privado, a mulher negra é vítima tanto no seio das relações íntimas como nas ruas. Portanto, a compreensão dos feminicídios no Brasil perpassa, além do gênero, pelo estudo da raça como outro fator de vulnerabilização das mulheres. 

 

**Camila Miranda Sousa Race é Mestranda em Direito na Universidade Federal da Bahia.


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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