Após pixações em banheiros, alunas transgênero da Unicamp dizem que transfobia e feminismo andam juntos

Além da discriminação, alunas e alunos transgênero ainda têm problemas para usar nome social na universidade

Por James Cimino , no Lado bi

Semana passada os banheiros femininos da Unicamp se tornaram notícia quando neles apareceram algumas pixações transfóbicas, aparentemente feitas por grupos feministas radicais que consideram a presença de alunas mulheres transgênero uma ameaça a sua integridade física.

Como frases como “vou cortar sua pica”, “não deixe que os machos invadam nossos espaços” e “usar nossos sapatos não te fazem mulher”, as pixações têm revoltado as poucas alunas trans da universidade. Em um fórum da Unicamp, em um tópico de discussão sobre o incidente, as justificativas de algumas feministas radicais para o preconceito contra as alunas trans eram dignos do filme “Minority Report”.

Segundo elas, a presença de mulheres transgênero no banheiro abriria um precedente para que homens passassem a se vestir de mulher para atacá-las e estuprá-las dentro do banheiro. E quando as próprias feministas diziam que isso era mera suposição, já que não havia relatos desse tipo de ato nem na Unicamp nem fora dela, as radicais novamente se armavam do delírio para dizer que “mulheres trans são estupradores em potencial porque têm pinto”.

Todo mundo sabe o quão ofensivo é tentar desqualificar um transgênero por meio de sua identidade de gênero, mas vindo de pessoas que alegam ser ativistas do feminismo, chega a ser duplamente chocante. Aparentemente, tanto o movimento feminista quanto o movimento transgênero não aprovam esse tipo de atitude, em geral associado a um grupo conhecido como radfem (feministas radicias), que entre outras ideias acredita que todo menino é um estuprador em potencial, que o fim de machismo só seria possível com a morte de todos os homens e que meninos deveriam ser castrados no nascimento. Mas, em conversa com alunas transgênero da Unicamp, o grupo é visto mais como “barulhento” que “ameaçador”.

Para entender melhor o que acontece na Unicamp e essa rivalidade entre mulheres feministas cisgênero e mulheres e homens transgênero, o LADO BI resolveu conversar com duas das alunas trans da universidade para tentar entender o quanto essa atitude depõe contra o movimento feminista e contra o movimento LGBT. Uma delas é a doutoranda em teoria literária Amara Moira, 29, que chama esse tipo de feminismo de “nescau” e acha que “travestis e transexuais são na verdade uma resistência a essa cultura [do estupro], uma tentativa de dizer o contrário, que pessoas portadoras de pinto original de fábrica não nascem pra estuprar e vão sentir na pele a dor de se recusar a aceitar passivamente esse adestramento”.

Já a transfeminista Bia Pagliarini Bagagli, que é graduanda em letras na Unicamp e blogueira do site Transfeminismo, diz  que “colocar que o uso do banheiro por mulheres trans (concreto) poderia causar aumento de ataques às mulheres cisgêneras (hipotético) é argumentar em favor da exclusão das já excluídas, além de se eximir do fato de que mulheres trans também poderiam ser assediadas (e pior, assediadas tanto no banheiro masculino como no feminino)”. Leia as entrevistas:

LADO BI – Como foi para vocês se depararem com as inscrições no banheiro?

Amara – Segunda passada, dia de debate LGBT entre as chapas concorrentes ao DCE da Unicamp, vou com uma amiga trans no banheiro feminino no PB, coração da Unicamp, e, meio distraída, só percebo a pixação por acaso, olhando no espelho (“não deixe os machos ocuparem nossos espaços”). Fico imaginando os sentidos possíveis, se a coisa for transfóbica seria meio quarta série, mas mesmo assim tiro uma foto. Ponho na internet, uma amiga compartilha, surgem relatos de que há frases piores em outro banheiro, a coisa começa a viralizar e preferimos deletar pra evitar alvoroço. Dois dias depois, formamos um grupo de travestis e transexuais (eu, Bia Pagliarini Bagagli, Jéssica Milaré e outros que preferem o anonimato) pra ir falar sobre nome social com a Diretoria Acadêmica da Unicamp (DAC) e, no caminho, descobrimos que um amigo nosso, homem trans, se encontrava hospitalizado, em depressão profunda, um dos motivos sendo a forma tosca com que a Unicamp deslegitima a sua identidade masculina. Ficamos abalados com a notícia e, quando saímos da reunião, fomos direto documentar toda a merda transfóbica que encontrássemos, dispostos a botar a boca no trombone. Foi aí que descobrimos as demais pixações… E o que parecia a princípio quarta série começou a adquirir contornos mais agressivos. Ódio foi o que senti. Ódio porque eu não uso o feminino só por questões de segurança (cansei de homem me olhando torto no masculino, ofendendo, ameaçando ou, ainda, me mostrando o pau como se eu fosse uma boneca inflável), uso também pra referendar a minha pertença ao feminino, razão de eu ser terminantemente contra um terceiro banheiro. Mulheres cis não podem nem de longe fazer o que homens cis são capazes, por isso seguimos usando o banheiro feminino mesmo quado encontramos mulheres que, num olhar, numa palavra, numa pixação, tentam nos fazer acreditar que aquele espaço não é também nosso. Por isso a questão dos homens trans é tão pesada: numa cultura que estimula o estupro, o lugar onde estarão seguros não é o mesmo que referenda a pertença deles ao masculino e isso é motivo de muito sofrimento… Então, a menos que eles consigam plenamente ocultar sua condição trans aos olhos dos outros (a tal da “passabilidade cis”), o banheiro feminino é o único espaço que irá acolhê-los sem risco. É nisso tudo que tenho pensado desde então, nisso e no quanto as pessoas em geral estão se lixando pra onde faremos nossas necessidades básicas.

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Bia – Fiquei sabendo com a Amara das últimas pichações no banheiro do PB. No entanto, já tinham sido feitas outras pichações no IFCH, as quais eu soube através de um post em um grupo feminista da Unicamp. Nelas estavam escritas “usar nossos sapatos não é ser mulher”. Engraçado que, se for por esse critério, eu sou mulher mesmo, visto que eu nunca ou raramente uso sapatos femininos rsrs.

Que tipo de providência vocês tomaram? Falaram com a direção da universidade?

Amara – Mencionamos e mostramos a foto que tínhamos até então na reunião com a DAC. Eles nos pediram pra redigir um documento apontando isso e todos os problemas que a Unicamp nos causa através de sua política de não se preocupar com a integridade física e mental de seus alunos trans e travestis (a DAC nos disse que, de posse desse documento, o reitor poderia escrever uma portaria uniformizando a maneira como nos concedem o nome social e como lidam com as nossas demandas mais gerais). Esse documento está sendo feito.

Bia – Durante a conversa, nós citamos o caso das pichações e mostramos como é urgente que a universidade tome providências em relação à questão trans como um todo. O problema do nome social ainda não foi completamente “solucionado” aqui. Primeiro que existem inúmeros sistemas que atuam de forma independente e com isso o nome social precisa ser atualizado em todos. Segundo que alguns cursos (em especial os de exatas) necessitam que se apresente o RA (registro acadêmico) para poder fazer provas. O problema é que o nome social não é mudado no RA (por ser considerado um documento externo) e apenas as listas de chamada são mudadas. Com isso a pessoa não tem como provar que ela é ela, visto que vai haver uma incongruência dos nomes entre os documentos. Ou seja, uma medida que supostamente foi tomada pra facilitar nossas vidas e evitar constrangimento faz justamente o oposto na prática (imagine ter que se explicar a situação toda vez que tiver que fazer prova… é um calvário).

Como vocês se sentem por não serem tratadas como mulheres por grupos de feministas?

Amara – Eu sinceramente me sinto muito mais à vontade em grupos LGBT do que em feministas. Lá as pautas GGGG irão predominar sim, mas ninguém vai deslegitimar a minha pertença ao feminino. E, olha, aqui falando só por mim mesma e não pela classe, não tenho interesse algum em ser considerada “mulher”, em ser tratada como mulher: eu quero, isso sim, ser tratada como uma mulher é tratada, as consequências diretas do fato de ser considerada mulher, o direito de existir no feminino, de ter meu nome Amara respeitado aonde quer que eu vá. O que se passa na cabeça das pessoas é problema só delas (se me veem assim ou assada, p.ex.), minhas exigências estão só no campo do que é verbalizado, feito público, a forma como me tratam vida afora: respeitando-se isso, não me importo que cultivem em segredo os próprios preconceitos. Nisso eu estou com as travestis que dizem não serem nem homens nem mulheres, ainda que não abram mão do tratamento feminino e de exigir respeito ao nome pelo qual são conhecidas. Pois bem, se existem espaços onde esse mínimo não está garantido, como acontece em alguns grupos feministas, esses espaços não me interessam.

Bia – Bom, eu não sinto nada de especial em relação a isso, visto que isso é o que estou acostumada a viver em todas as instâncias do cotidiano, o feminismo não é algo à parte de todo o resto do mundo. Muito embora seja alarmante o fato de que o feminismo não lidou de forma com que a transfobia não reverberasse nos seus discursos. Pelo contrário, transfobia e feminismo se amalgamaram de tal forma a existir um discurso transfóbico que é tipicamente (ou mesmo exclusivamente) feminista. É neste ponto que o transfeminismo é necessário e ponto de resistência a isso.

Li um tópico no Facebook em que feministas radicais alegavam que mulheres trans seriam estupradores em potencial ou que homens heteros cisgêneros se vestiriam de mulher para atacá-las em banheiros. O que vocês acham disso?

Bia – Eu acho uma forma desonesta e transfóbica de argumentação. Aqui se mesclam duas ordens distintas: o campo do hipotético e do concreto. Colocar que o uso do banheiro por mulheres trans (concreto) poderia causar aumento de ataques às mulheres cisgêneras (hipotético) é argumentar em favor da exclusão das já excluídas, além de se eximir do fato de que mulheres trans* também poderiam ser assediadas (e pior, assediadas tanto no banheiro masculino como no feminino). Não se pode barganhar um direito fundamental de uso do banheiro público por mulheres trans* em favor de uma retórica do pânico. Eu escrevi detalhadamente sobre isso no meu último texto no blog do transfeminismo, “O Banheiro e a Ideologia”

Amara – Homens não precisam se vestir de mulher pra ter acesso ao banheiro feminino. Na visão desse feminismo nescau radical, existe o banheiro de vaginas e o de pênis, ou seja, homens trans na visão delas não deveriam usar o feminino também. Oras, o problema é que a testosterona faz milagres na questão da “passabilidade cis” de um homem trans (barba, calvície, engrossa a voz, etc.), ficando então meio complicada a forma de se determinar que tipos de pessoa frequentariam cada banheiro. No fim das contas, quem garantiria que tal pessoa é mesmo trans? A “passabilidade cis” (ferramenta importante para nos proteger da transfobia) faz com que algumas pessoas consigam ocultar sua transexualidade, ao passo que muitas pessoas cis voluntariamente estão cada vez mais buscando um visual andrógino, facilmente confundido com a aparência de uma pessoa que se espera trans… Nesse caso, mulheres que pareçam cis mesmo sendo trans terão seu acesso ao banheiro feminino sem problemas, enquanto mulheres que pareçam trans mesmo sendo cis poderão ter problemas. Percebe a questão? Não há como ter certezas, nossos genitais não estão estampados na cara (e, mesmo que estivessem, poderiam ter sido feitos com bisturi, não sendo originais de fábrica, como as radfems exigem), e se uma pessoa cis tiver que provar que é cis, olha, é facinho fazer com que essa provação se torne inconclusiva. Nosso erro está em acreditar na imediata identificação de corpos trans e corpos cis, quando nada disso está ao alcance dos olhos.

O que vocês acham da afirmação de feministas radicais que acham que os homens têm de morrer ou que dizem que todo menino é um estuprador em potencial ou que “se eu tivesse filho homem mandava castrar”?

Bia – Eu acho lamentável se propor isso enquanto pauta feminista. Isso é o mesmo que tirar o debate feminista do campo político e rebaixá-lo num subjetivismo da violência. Agora, outra coisa bem diferente é entender tudo isso enquanto sintoma de uma sociedade machista. É compreensível que mulheres sintam “ódio” aos homens nestas circunstâncias. A questão precisa ser trabalhada enquanto um resíduo sintomático do machismo, o que é bem diferente de defendê-las enquanto pauta política.

Amara – Há sim uma cultura que estimula e relativiza o estupro (“ah, mas com essas roupas vc saiu de casa?”, “ele tava bêbado, bêbado não sabe o que faz”, “mas, tb, você foi ficar bêbada numa festa cheia de homem?”), que diz que a mulher não é dona do próprio corpo (“ela tava quase pelada na festa, pediu pra acontecer”), mas esse adestramento não vale para a maioria das pessoas que se reconhecem como travestis e mulheres transexuais, uma vez que desde muito cedo essas pessoas já são violentadíssimas por não se enquadrarem nesses perfis absurdos de virilidade. Travestis e transexuais, ao meu ver, são na verdade uma resistência a essa cultura, uma tentativa de dizer o contrário, que pessoas portadoras de pinto original de fábrica não nascem pra estuprar e vão sentir na pele a dor de se recusar a aceitar passivamente esse adestramento. Mas devemos também nos ater ao fato de que se a nossa cultura funciona hoje assim, isso não significa que será sempre assim ou, mesmo, que é assim em todos os casos.

Você concorda com a ideia de que os homens devem ser excluídos dos debates sobre feminismo apenas por serem homens?

Bia – Não. Eu não concordo com a ideia segundo a qual a posição política de alguém seja um mero reflexo da posição empírica que ela ocupa na sociedade. Além do que quando falamos em debate político, estaremos falando irremediavelmente de falta de consenso. Não se chega idealmente num consenso, não se apaga as contradições em definitivo de todos os discursos. E não vai ser criando um espaço exclusivamente de mulheres que essa heterogeneidade vai sumir, visto que seria extremamente ingênuo acreditar que todas as mulheres (ou qualquer outro grupo oprimido) tenham exatamente as mesmas opiniões sobre tudo. O que não quero dizer que “tudo vale” quando discutimos feminismo: se pretendemos falar sobre feminismo temos que partir de alguns lugares comuns, como constatar o fato de que existe machismo e opressão e é necessário lutar contra isso. Sobre essa questão, já escrevi um texto “O exterior do feminismo: ‘iuzomi’?”

Amara – O feminismo diz respeito a tudo o que concerce ao feminino, e o feminino não é território exclusivo da mulher, muito menos da mulher cis. Há homens femininos, afeminados, homens gays, passivonas, bichas pintosas e até mesmo ativos, e todos esses também sofrem com o machismo que corrói a nossa sociedade. Fora isso, há toda a questão de que o machismo adestra homens para serem machões, machistas, para não poderem broxar, demonstrar sentimentos, amar outros homens (nem mesmo outras pessoas não-homens, mas portadoras de pênis), ou seja, esse é sim um espaço de homens sim. Como os homens deixarão de ser machistas se não através do feminismo? Mas vejo sim como uma exigência benéfica o silenciamento de homens nesses espaços e até mesmo a sua exclusão, ainda que temporária, até que as mulheres se empoderem a ponto de conseguirem competir de igual pra igual com pessoas adestradas para serem homens. Então, sim, acho que devem haver espaços em que homens discutam o feminismo, mas esses espaço deve ser gerido por mulheres (mulheres aqui numa perspectiva mais ampla, incluindo nós travestis, por exemplo).

Você acha que pessoas cisgênero devem ser excluídas dos debates sobre a causa trans?

Bia – Não, e pelos mesmos motivos da pergunta anterior.

Amara – O debate é incipiente e, repito, não se trata de quem tem as coisas mais inteligentes a dizer (uma nova guerrinha pra quem diz o caminho que deveríamos tomar). Creio que cisgêneros podem sim fazer parte do debate, mas sem roubar o protagonismo que nos é de direito.

Tenho acompanhado o posicionamento de alguns ativistas feministas, trans, gays, negros em relação a outros grupos oprimidos e percebo que há muita agressividade entre esse grupos. O que vocês acham disso?

Bia – Bom, talvez seja uma resposta paradoxal. Uma coisa é desejar que os oprimidos de fato conseguissem se unir (o que idealmente seria uma coisa ótima) e outra coisa é constatar que isso não foi completamente possível e tentar compreender por que isso acontece. Idealmente, seríamos todxs aliadxs de todxs, mas é fato que isso nem sempre ocorre. Talvez a noção de intersecionalidade possa resolver em parte esse impasse. Isso porque, segundo esta perspectiva, não se pode abordar um vetor de opressão de forma estanque, visto que, em última instância, todas as formas de exploração e opressão se intersecionam em um ponto. Acredito que a intersecionalidade não consegue resolver todas as “agressividades” que você mencionou porque justamente existem pontos em que os vetores aparentemente não se convergem e com isso, entramos em uma certa cegueira ideológica quando julgamos acreditar que a “nossa luta” é prioritária em relação a outra.

Amara – Aliado é quem te respeita. Se a pessoa não te reconhece enquanto um igual na luta, então ela não é aliada. Como eu te disse, me sinto mais à vontade em espaços LGBT do que em espaços feministas, e isso diz muito sobre grupos que eu considero aliados, o que não quer dizer que eles sempre me representam: quando dizem que estão lutando pelo casamento gay, por exemplo, isso me incomoda, porqque não é só casamento gay que está em pauta, mas sim o casamento igualitário… Já temos casamentos gays legalizados (uma mulher trans e uma mulher cis, por exwmplo, podem casar até na igreja), ao passo que alguns héteros não estão permitidos (uma mulher trans e um homem cis, por exemplo — a velha história de “héteros podem participar do movimento LGBT?” Oras, transexuais e travestis são necessariamente homossexuais? Ou seja, essa é uma pauta que não é exclusivamente homossexual, porque me concerne de perto, e o mesmo no caso do PL 122, apelidado de PL da criminalização da homofobia (transexuais e travestis estão plenamente contempladas por esse projeto de lei, fazendo com que o nome correto fosse LGBTfobia, ou algo do gênero). Gosto, então, de lutar para que utilizemos uma nomenclatura que contemple a todos, pois ela é reflexo da nossa prática, das ideias que defendemos e executamos — mas não só de nomenclatura vivem os movimentos e, se eles se recusam a nos contemplar, acolher, o mais certo é que ofereçamos resistência a eles, até que essa situação se altere.

Vocês têm ideia de quem tenha feito as pixações no banheiro e que grupo essas pessoas representam?

Bia – Não. Eu pessoalmente fiquei meio surpresa em ver estas agressões circularem aqui na unicamp na medida em que não vejo nenhum coletivo feminista que reivindique este discurso transfóbico. Ou elas se escondem muito bem e eu fico à completa revelia. (risos)

Amara – Nenhuma e, na verdade, nem me interessa discutir autoria. A pixação é sintoma de algo e é esse algo que está na minha mira, não pessoas específicas. Penalizar a pessoa que cometeu tal ato não vai diminuir em nada a situação calamitosa em que vivem travestis e transexuais no Brasil.

O que é o movimento radfem? Elas têm algo a ver com as pixações?

Bia – Bom, a minha resposta vai no sentido de falar sobre a questão da transfobia, especificamente. Feminismo radical (radfem) é uma discursividade (ou movimento, se preferir) em que foi possível fundar e circular sentidos sobre pessoas trans e em especial, mulheres trans, na direção de expulsá-las do movimento por não as considerar mulheres. Neste aspecto, o feminismo radical tem a ver sim com as pichações, não necessariamente como uma relação determinista (quem escreveu aquilo pertence a necessariamente a um grupo organizado radfem), mas no sentido de que os enunciados do banheiro fazem sentido a partir dessa relação com a memória social, eles ressoam outros dizeres feitos em outros lugares (e com isso garantem sua forma de significar). Sobre o feminismo radical, eu também já escrevi sobre no texto “O Feminismo Radical e o Barão de Munchhausen“.

Amara – Pode ser que tenha a ver sim com as pixações, por conta da linguagem usada. “Macho” pra se referir a mulheres transexuais é uma palavra típica desse movimento, por exemplo. Sabe oq é mais engraçado? Um dos banheiros onde apareceram essas pixações não é um banheiro frequentado por nenhuma travesti ou transexual que conheço, tornando a mensagem “vou cortar sua pica” ambígua… Ou a pessoa escreveu aquilo pra outras radfems verem e saberem que estão juntas na luta, ou então ela tomou uma das muitas mulheres cis de aparência viril, masculina, ou mesmo algum homem trans que frequente aquele banheiro como sendo uma mulher trans… Mostrando a arbitrariedade dessa ideia de pronta identificação. Curiosamente o banheiro está no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), lugar que se esperaria o mais acolhedor para pessoas, como nós, oprimidas.

Quando vocês são agredidas por uma pessoa que igualmente sofre opressão moral e social, o que você pensa que está errado ou que deveria mudar?

Bia – Bom, o ideal seria que ninguém agredisse ninguém, seja a pessoa mais ou menos privilegiada. Assim como o ideal seria que não existisse nenhuma forma de privilégio. Mas é fato que acontece, não é porque alguém pertence a determinada minoria que ela vai ser naturalmente uma pessoa “esclarecida” ou essencialmente uma pessoa “boa” ou “iluminada pela bondade”. Existem vários tipos de agressão… Mas acredito que nós estejamos falando em especial das agressões que envolvem a questão das opressões. Neste sentido, acho que a questão da intersecionalidade que mencionei acima “explique” um pouco essa dinâmica.

Amara – Todas as pessoas são transfóbicas na nossa sociedade cissexista, eu mesma com toda a certeza. Isso me tranquiliza. Não é inteiramente por maldade, mas por conta de um adestramento muito eficaz. Nessa lógica, grupos de pessoas oprimidas não se identificam enquanto iguais e muitas vezes se veem disputando os mesmos espaços para se desoprimir. A lógica é cruel e é por isso que mulheres atacam mulheres o tempo todo: o patriarcado faz isso com a gente. Como não esperar da relação entre grupos?

Dia desses um amigo gay cis da USP foi de saia pra FFLCH e chegou lá tinha uma pixação assim: “homens que usam saia roubam a visibilidade trans”. O que você acha dessa afirmação?

Bia – Eu discordo completamente. Usar roupa – seja ela qual for – não deveria determinar a priori um gênero. Neste sentido acho muito relevante que homens usem saia e que no geral as pessoas possam dessacralizar as roupas. Por isso não vejo de que maneira um homem usar saia seria roubar a visibilidade trans. Acho que vai justamente ao contrário: se desvincularmos esses sentidos tão marcados em relação ao gênero das roupas, nós pessoas trans só temos a ganhar com isso.

Amara – Isso é algo bem curioso e diz mto do protagonismo. No dia em que, lá na USP, um homem cis de saia foi hostilizado pelo Facebook (olha o drama!) ano passado, prontamente a comunidade de homens cisgêneros se organizou Brasil afora para afrontar essa afronta e garantir que homens cis tivessem o direito de usar saias (esse povo nunca se preocupou com as tantas mulheres, trans, que foram mortas por usar saia, nem com as tantas mulheres, cis, que foram estupradas por usar saia). Se a dor de um homem cis xingado no Facebook vale mais do que o de uma travesti violentada, morta, ou a de uma mulher cis estuprada, morta, o que dizer desse movimento? Homens quererem o direito de usar saia é algo fenomenal, pois pode ser o começo de um movimento que problematize a generificação das nossas vestimentas, diminuindo a opressão que nós mesmas vivemos… Mas isso tudo deve andar junto, senão vira mais uma vez a dor dos homens cis como a mais dolorosa do mundo.

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