Argentina, lei sobre o aborto e lições para o Brasil e a América Latina

FONTEPor Emanuela Cardoso Onofre de Alencar, enviado para o Portal Geledés
Ativistas comemoram a discriminalizão do aborto (crédito: Ronaldo Schemidt/AFP)

Agora é lei. Desde o passado dia 30 de dezembro de 2020, a Argentina conta com a Ley de interrupción voluntária del embarazo, uma norma que reconhece o direito das mulheres a interromper uma gravidez de forma voluntaria, gratuita e segura até a 14ª semana de gestação. O projeto de lei, que havia sido proposto pelo governo do atual presidente argentino, logrou a aprovação no Senado por 39 votos a favor, 29 votos em contra e uma abstenção. Esse resultado surpreendeu inclusive os observadores mais positivos. Expressa a mudança na percepção sobre o aborto no Congresso Nacional desse país, que é também um reflexo da mudança na compreensão desse tema na sociedade argentina. Essa lei é uma conquista importante para as mulheres e representa um avanço em termos de justiça reprodutiva. 

O movimento das mulheres argentinas a favor do aborto legal, seguro e gratuito oferece importante lições para os movimentos similares no Brasil e nos demais Estados da região de América Latina. Gostaria de compartilhar com os leitores algumas reflexões sobre o aborto e o que podemos aprender acerca do resultado da votação no Senado argentino do último dia 30 de dezembro

O aborto ainda é tratado como um tabu em diferentes latitudes do continente americano. O resultado disso é a ausência de uma discussão pública séria sobre o tema e de seu tratamento como uma questão de saúde pública e de direitos humanos. 

Não falar sobre o aborto não quer dizer que ele não exista. Dados do Instituto Guttmacher indicam que, no período de 2010-2014, a cada ano ocorreu cerca de 14 milhões de gravidezes não planejadas na região de América Latina e Caribe, das quais quase a metade (46%) foram interrompidas. Cerca 760.000 mulheres foram atendidas anualmente por complicações de saúde decorrentes de abortos inseguros, e calcula-se que 10% do total de mortes maternas derivou dessa prática¹. O aborto é um fato na região. Sua realização de forma clandestina e insegura não só provoca mortalidade materna, senão também danos graves à saúde e sofrimentos que poderiam ser evitados.

A situação de gravidez indesejada e não planificada é uma consequência de índices elevados de violência sexual, de necessidades insatisfeitas de anticoncepção moderna e de um padrão cultural que prioriza o papel da mulher como mãe.

São poucos os Estados da região que reconhecem o direito das mulheres de decidir livremente realizar um aborto nas primeiras semanas de gestação: Cuba, Uruguai, Guiana, Guiana Francesa e, no México, somente na Cidade de México e no estado de Oaxaca.  A legislação na maior parte dos Estados oscila entre a proibição total do aborto e a autorização em algumas circunstancias.  

Os Estados que penalizam a interrupção da gravidez em qualquer circunstância são El Salvador, República Dominicana, Honduras, Nicarágua e Haiti. El Salvador, por exemplo, possui uma das legislações mais duras do mundo, com penas de prisão de até 40 anos, inclusive em casos de emergência obstétrica ou aborto espontâneo². Organizações internacionais já advertiram em diferentes momentos que esse tipo de legislação tem um impacto desproporcional sobre as mulheres mais pobres e suas famílias³. Esta posição é compartilhada pelo Relator especial de Nações Unidas sobre a tortura e outros tratos ou penas cruéis, inumanas e degradantes, que ademais afirma: “A existência de leis muito restritivas, que proíbem os abortos inclusive em casos de incesto, estupro, deficiência fetal ou quando há um risco para a vida ou a saúde da mãe, vulnera o direito das mulheres de não ser submetida a torturas ou mal tratos.”⁴  

A maioria dos Estados da região autorizam o aborto em algumas circunstancias. As mais frequentes são os casos de gravidez decorrente de estupro, quando há um risco para a vida ou a saúde da mulher e quando a vida do não nascido é inviável fora do útero. Que a legislação permita realizar o aborto nesses casos não quer dizer que as mulheres acedem a esse serviço de forma simples. Em diferentes lugares, as mulheres que tem o direito de abortar de forma segura, encontram muitas barreiras para aceder ao serviço, o que provoca em alguns casos a superação do tempo estabelecido pela lei e uma posterior denegação do aborto. Essas práticas, além de vulnerar os direitos das mulheres, podem configurar violência institucional. Alguns Estados já foram responsabilizados internacionalmente por esse tipo de prática (como, por exemplo, o importante caso decidido em 2011 pelo Comitê CEDAW, L.C vs. Peru).⁵

O movimento de mulheres em defesa do aborto legal, seguro e gratuito tem provocado bastante debate na Argentina, e sus vozes se escutam em toda a região. Não se trata de um movimento recente. Há vários anos organizações feministas reivindicam o direito de interromper a gravidez, de forma voluntaria e segura, durante as primeiras semanas. Contudo, nos últimos anos, o movimento das mulheres alcançou um importante nível de mobilização e impacto, tanto na Argentina como em outros Estados. 

Um momento fundamental foram as manifestações a partir de 2015 contra os níveis cada vez mais elevados de violência contra as mulheres por razões de gênero. Com gritos de ni una menos, os protestos das argentinas foram ouvidos em diferentes lugares do mundo. Essa participação amplia de mulheres, com diferentes idades e características socioeconômicas, abriu espaço para a inclusão de novos temas na agenda feminista mais militante. O aborto foi um deles. 

Até 2018, haviam sido apresentados sete projetos de lei para permitir o aborto sem restrições nas primeiras semanas; nenhum deles chegou a ser discutido. Esse cenário mudou naquele ano: a proposta superou essa barreira e foi incluída para deliberação na Câmara de Deputados. Esse passo importante provocou uma discussão ainda mais amplia sobre o tema em espaços públicos, políticos e privados: pessoas comuns, políticos, acadêmicos, famosos e professionais de diferentes áreas discutiram diferentes aspectos da questão. E as mulheres se mobilizaram nas ruas levando um lenço verde, símbolo do movimento que ficou conhecido a “maré verde”. 

A lei não foi aprovada em 2018, mas o impulso dado por essas manifestações a favor do aborto legal, seguro e gratuito continuou gerando discussão. E a voz das argentinas, uma vez mais, ecoou na região, dando ainda mais força aos movimentos que já existiam em outros Estados. Além disso, a reivindicação das mulheres foi incluída no programa de governo do atual presidente argentino, que cumpriu sua promessa de campanha e promoveu o projeto de lei que foi aprovado no Senado.

É possível identificar alguns aspectos importantes da “maré verde” argentina a favor da interrupção voluntaria da gravidez, que lançam mensagens para o Brasil e a região de América Latina: 

Visibilidade nacional e internacional. A mobilização das mulheres deu destaque ao tema do aborto, e não só na Argentina. Dentro de suas fronteiras permitiu dar maior visibilidade a essa questão e provocar a discussão em diferentes espaços. Essa visibilidade se estendeu para além de suas fronteiras: chamou a atenção para a atuação dos movimentos de mulheres sobre o aborto e motivou esses movimentos em outros lugares a continuar suas ações. Lograr visibilidade é importante porque permite conquistar apoios em diferentes espaços sociais, que contribuem para fazer pressão. Isso é fundamental.

Saúde pública e direito das mulheres. A discussão trata a possibilidade de interromper uma gravidez de forma voluntaria, gratuita e segura nas primeiras semanas, como uma questão de saúde pública e de direito das mulheres. Desta posição deriva um conjunto de argumentos em defesa dessa prática. Este enfoque está em sintonia com os demais países do mundo que possuem uma lei nesse sentido, e é compartilhada por diferentes órgãos internacionais, como, por exemplo, o sistema de Nações Unidas e a Organização Mundial de Saúde. 

Discussão pública e política. Discutir o tema nas esferas pública e política, de forma séria e respeitosa, permite conhecer os diferentes argumentos a favor e em contra e questioná-los. Permite discutir experiências de outros lugares, conhecer as histórias de mulheres que vivenciaram um aborto – ou que morreram por causa de um aborto inseguro -, e avaliar o possível impacto dessa lei na sociedade. Permite também retirar a capa de tabu que envolve o tema e enfrenta-lo como um fato e uma questão de saúde pública à que se deve dar soluções.  

Ainda que o aborto encontre uma oposição conservadora acirrada e também organizada em diferentes Estados da região, como é o caso do Brasil, a maré verde argentina mostrou que as mudanças que propiciaram a aprovação da Ley de interrupción voluntária del embarazo, ainda que sejam muito lentas e cheias de dificuldades, seguem na direção de reconhecer o direito das mulheres e de proteger sua saúde e suas vidas. 

Falar sobre o aborto, discutir publicamente seus diferentes aspectos e impacto na vida das mulheres, não só gera pressão para incluir esse tema na agenda política. Retira também o manto de tabu que envolve o aborto e permite construir outra percepção social sobre o tema, uma que evite os sentimentos de vergonha e culpa e o silencio sobre a experiencias das mulheres.   


¹ Cfr. Instituto Guttmacher (2018), “Aborto em América Latina y el Caribe”. Disponível em: https://www.guttmacher.org/sites/default/files/factsheet/fs-aww-lac-es.pdf Acesso em 15.12.2020. 

² Ver, p. ex., NÓCHEZ, María Luz; AGUIRRE, Laura (2018), “El privilegio de abortar”, El Faro. Disponível em: https://elfaro.net/es/201801/el_salvador/21427/El-privilegio-de-abortar-%7C-Especial.htm Acesso em 15.12.2020.

 ³ Ver, p. ex., Amnistía Internacional (2016), Familias separadas, abrazos rotos. El salvador: mujeres encarceladas por emergencias obstétricas y el impacto en sus familias. Disponível em: https://www.amnesty.org/download/Documents/AMR2928732015SPANISH.PDF Acesso em 15.12.2020.

⁴ Cfr. NACIONES UNIDAS, Consejo de Derechos Humanos (2016), Informe del Relator Especial contra la tortura y otros tratos o penas crueles, inhumanos y degradantes (A/HRC/31/57), 5 de enero de 2016, pár. 44. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/BDL/2016/10361.pdf Acesso em 15.12.2020.

⁵ Ver Comitê CEDAW, caso L.C. vs. Peru (CEDAW/C/50/D/22/2009), decidido em 25.11.2011. Disponível em https://www.ohchr.org/Documents/HRBodies/CEDAW/Jurisprudence/CEDAW-C-50-D-22-2009_sp.pdf Acesso em 15.12.2020.

 

Emanuela Cardoso Onofre de Alencar

Professora no Instituto Universitario de Estudios de la Mujer, da Universidad Autónoma de Madrid – IUEM-UAM, doutoranda na Faculdade de Direito da Universitat de Barcelona – UB, pesquisadora.

 

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

 

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