A arte brasileira ainda não sabe lidar com o negro, diz a escritora Ana Maria Gonçalves

Autora de “Um defeito de cor” fala de racismo, das dificuldades para o negro ser aceito como produtor de cultura e da predominância branca na literatura nacional

Por Carlos André Moreira Do ZH

A escritora Ana Maria Gonçalves é autora de um dos grandes épicos contemporâneos da escravidão no Brasil, o romance monumental Um defeito de cor (2006), história de uma mulher escravizada no Daomé aos oito anos e mandada para o Brasil. Ana Maria tem sido também uma das vozes mais atuantes a levantar questões problemáticas na relação entre negros e brancos no Brasil. Convidada da Festa Literária Internacional de Paraty, ela participou da programação paralela em uma das mesas que apontaram a ausência de negros na programação oficial do evento. Na entrevista ao lado, ela fala dos motivos que, em sua opinião, mantêm a arte nacional afastada do cidadão negro do país.

A senhora apresentou em Paraty uma oficina sobre “seis temas para o Brasil tratar em sua literatura”. Que temas são esses?

São temas relacionados ao racismo. Mais especificamente: escravidão, racismo, o corpo negro, a representatividade e a sexualidade da mulher negra, a violência, o genocídio da população negra… É um curso que eu dei lá no Itaú Cultural de São Paulo. Para Paraty, levei uma versão pocket. A arte brasileira ainda não sabe lidar com o negro, não sabe representá-lo.

Por quê?


A gente não tem, como se vê em outros países, Inglaterra e Estados Unidos, por exemplo, roteiristas negros, diretores negros. A maioria dos escritores negros não encontra lugar no mercado mainstream, então é um retrato da sociedade que a gente vive, de quão restrita a sociedade se tornou para determinados artistas, e ao mesmo tempo é um fruto do racismo que continua reproduzindo os mesmos estereótipos em relação ao negro, à mulher. Veja por exemplo na TV e no cinema, no teatro.

A senhora foi uma das pessoas a se manifestar há alguns anos, quando um comercial de TV apresentava Machado de Assis representado por um ator branco. Mesmo as manifestações por sua morte se dividiram entre os que apontaram o fato de ser negro como algo que ele “transcendeu” ou os que, como Nabuco, acharam que chamá-lo de negro o ofendia. Machado é um autor em disputa?

Essa é uma polêmica que ainda se espalha, muitas vezes pelas mãos de quem não lê exatamente Machado. Há um trabalho do professor Eduardo de Assis Duarte, da UFMG, que se chama Machado de Assis, afro-descendente (Editora Crisálida, 2007). Uma das grandes acusações a Machado de Assis é que ele nunca tratou da questão racial na sua obra. Realmente, na ficção você tem pouca coisa. Mas as crônicas do Machado, que Eduardo recupera, estão cheias de alusões, de críticas à escravidão, o Machado realmente assumindo ali seu lado negro. Há em tudo isso uma coisa que vem começando a ser falada, já: o lugar do negro como intelectual no Brasil. É um lugar difícil de te aceitarem.

Durante a Flip, a escritora Conceição Evaristo comentou isso, que o negro de destaque no esporte e na música é lugar-comum, mas que não é visto como um pensador.


Há um episódio exemplar de como é tratada a intelectualidade negra no Brasil, que remonta a estudos que a Unesco patrocinou no Brasil nos anos 1950. Eles queriam ali comprovar, basicamente, a tão falada democracia racial brasileira. E o Abdias do Nascimento apresentou um trabalho no 1º Congresso Nacional do Negro: entrevistou pessoas, colheu dados, chegando à conclusão de que o Brasil é racista, sim. E um intelectual branco, Luiz Aguiar de Costa Pinto, pegou emprestados esses dados do Abdias do Nascimento, distorceu e publicou como se fosse uma pesquisa original dele. O Abdias foi para o jornal reclamar. E aí Costa Pinto respondeu que aquilo era impensável, era como se os micróbios que você estuda no microscópio se rebelassem e contestassem os dados do seu estudo. Isso nos jornais brasileiros do fim da década de 1950. Essa é uma das questões, a gente serve como objeto de estudo, não como produtor de conhecimento.

A professora Regina Dalcastagné divulgou, há alguns anos, uma pesquisa que mostrava que não apenas o escritor brasileiro, em geral, é um homem branco de classe média, mas também os personagens. Como a senhora vê isso?

A gente escreve a partir de um lugar e dos temas que nos interessam. E acho que a literatura é uma das áreas mais elitistas da cultura. Há um livro muito interessante chamado Diploma de brancura (de Jerry Dávila, Unesp, 2006), que conta realmente o processo de implantação da escola pública brasileira e como ele foi dirigido para tirar os negros da educação. Havia muitos professores negros e mulatos, e com a abertura da escola das normalistas, no Rio, o professor, que era muitas vezes o mulato treinado pelos padres para exercer a profissão, foi sendo substituído pela moça branca de classe média ou média alta, porque era a única profissão aceitável para as mulheres na primeira metade do século. É um sistema que realiza ao mesmo tempo o controle da mulher e do negro. A partir daí, a literatura, a escrita, consolidou-se como um campo de brancos, o que se reflete nesse estudo da Regina. Nos últimos 10 anos, você tem mais personagens estrangeiros do que negros nos romances de autores nacionais.

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