Artemia e Maria Felipa: mulheres que enfrentaram o poder colonial na Amazônia

FONTEPor Patrícia Alves-Melo, enviado para o Portal Geledés

Todo mundo tem um dia ruim. Certamente, aquele era um dos piores na vida de Dona Artemia, índia moradora do Estado do Grão-Pará e Rio Negro. Afinal, foi o dia em que ela recebeu a notícia de que seus filhos haviam sido requisitados para o trabalho por meio das (aterrorizantes) Portarias do Governador do Estado. Corria o mês de setembro de 1790. 

Não consegui localizar exatamente onde D. Artemia morava, mas ela e sua família estavam subordinadas às autoridades da vila de Cametá, região conhecida hoje como Baixo Tocantins. Foi o comandante daquela vila que recebeu a ordem do Coronel de Milícias da vila, o senhor de engenho Hilário de Moraes Bittencourt, para fazer cumprir as tais portarias de cessão de trabalhadores e, dessa vez, os alvos eram os filhos de Artemia.

Bem, o tal militar conseguiu capturar dois dos filhos recrutados, um casal de adolescentes. Os outros não foram localizados porque estavam fora da cidade com a mãe. E por onde andava Artemia? É aí que começa uma história sensacional. Ela tomou uma decisão extrema e muito justificada diante do desespero de ver seus filhos enviados para longe de casa. Foi buscar apoio de Maria Felipa, uma liderança local de grande reconhecimento porque, na documentação, é chamada de Principala. As duas juntas, acompanhadas apenas de um soldado, filho de Maria Felipa, foram no encalço do tal comandante. Quando elas encontraram a canoa que carregava os adolescentes, fizeram um grande alarde, discutiram, pressionaram e, ao final, conseguiram fazer com que o comandante lhe entregasse os filhos.

Prospecto da Vila de Cametá, 1784. Fonte: Brasiliana Iconográfica.

Depois do ocorrido, o militar foi prestar contas de seu insucesso ao coronel Bittencourt que, por sua vez, comunicou tudo ao governador do Estado. Artemia foi presa acusada de ter, pasmem, “raptado” seus filhos, especialmente uma mocinha que servia em casa de um certo Xavier da Silva e por ter feito seu marido, Quintiliano, abandonar seu posto de trabalho como pescador na casa do mesmo cidadão. O marido de Artemia era negro. Não há notícias do que aconteceu a Maria Felipa.

Essa história impressionante está em um documento inédito localizado no Arquivo Público do Pará e ilumina muitos contextos que nos ajudam a pensar a complexidade das vidas e das experiências das populações indígenas ao longo da história desse espaço que hoje chamamos de Brasil. Além disso, revela diferentes dimensões da agência das mulheres e o modo como teciam suas redes de política e de solidariedade. Vamos por partes?

     Carta de Hilário de Moraes Bittencourt a Francisco de Souza Coutinho. Correspondência de Diversos com Governo, Engenho do Carmelo, 24 de setembro de 1790. Fonte: Arquivo Público do Estado do Pará (APEP).

De qual Brasil estamos falando?

Para início de conversa, devo dizer que o Estado do Grão-Pará, onde viviam Artemia e sua família é outra unidade administrativa colonial na América. Não existia no final do século XVIII uma única colônia (um “Brasil colonial”) que se tornou um país independente em 1822. Na verdade, havia dois estados que funcionavam de maneira independente, mas subordinados ao governo de Lisboa. A partir de 1774, após ajustes administrativos, foram chamados de Estado do Brasil e o Estado do Grão-Pará e Rio Negro. Isso é relevante? Sim. Há muitas razões, mas vou destacar duas: a primeira é o fato de que a gestão interna desses estados era diferente, ou seja, o que funcionava em um lugar podia não ser aplicado em outro. Tais estados produziram modos de administrar esses territórios obedecendo a dinâmicas internas e isso faz muita diferença na configuração do que são no tempo presente. O que hoje chamamos de “Amazônia” foi, na verdade, parte de um imenso território, administrado de maneira diferenciada, e que permaneceu por mais de 200 anos. Dito de outro modo, o “Brasil” nem sempre foi assim; ele foi tornado assim. 

Outra coisa que não pode ser esquecida é que a ideia de Brasil que temos hoje não nasceu lá no passado colonial, mas foi algo duramente construído ao longo do século XIX, inclusive, com muita violência. Desses processos fazem parte as chamadas “lutas pela independência” e as tais “revoltas regenciais”. Essa história é mais complexa do que querem contar. Afinal, o ideal de “nação” forjado ao longo dos séculos XIX e XX demandava, para sua sustentação, a ideia de um “Brasil único” desde sua mais remota origem. Sei que isso é outro fio de conversa, mas a história delas ajuda a falar disso também. Vamos voltar às agruras de Artemia que é o que interessa agora. 

Entendendo o mundo do trabalho indígena

E o que eram as tais portarias que ameaçavam a liberdade dos filhos de Artemia? Eram instrumentos legais para concessão de trabalhadores indígenas, parte de um sistema de controle de mão-de-obra conhecido como Diretório dos Índios. Explico. A escravização dos índios foi imprescindível para montagem da empresa colonial nesse Brasil, somada à ocupação de suas terras e da concessão de créditos pela Coroa. Desde o início da ocupação, ela estava presente e nunca é demais dizer que não foi um “episódio isolado”. Basta olhar a Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo, além, é claro, da Amazônia.

A escravização é uma chave essencial para entender que o Brasil nasceu sob o signo da desigualdade e da exclusão de determinados grupos sócio-étnicos. Evidentemente, em vários desses lugares e em algum momento, ocorreu uma substituição maciça de trabalhadores indígenas por africanos, mas insisto em chamar atenção para o fato de que índios continuaram a ser escravizados mesmo após a chegada de africanos. Isso ocorreu, pelo menos, até meados do século XVIII, quando surgiu a última lei de liberdade dos índios (1755). A partir de então, as práticas de escravização continuaram em todo o país, mesmo sendo ilegais.

Junto com a publicação dessa lei de liberdade de 1755, foi implementado o  Diretório dos Índios (1755-1798), um extenso conjunto de normas que regulava boa parte da vida dos habitantes do Grão-Pará, com a finalidade de garantir, entre outras coisas, a continuidade da oferta de trabalhadores para os proprietários de terra. Uma maneira de fazer isso era criar estratégias para que índios – agora livres pela lei – continuassem a trabalhar nas casas e fazendas e isso aconteceu por meio da montagem de uma estrutura administrativa gigantesca que alcançava a maioria das aldeias e era executada por funcionários reais chamados de Diretores. Ao lado deles, havia outros cargos que colaboravam para que essa estrutura de controle e concessão de trabalhadores funcionasse, entre eles, os militares. Os Principais, lideranças indígenas reconhecidas pela Coroa, também tinham um papel a desempenhar nessas articulações. Normalmente, eram homens. Maria Felipa é a primeira mulher assim indicada em um documento do período. 

As portarias do governador eram uma parte do processo de concessão de trabalhadores para aqueles que tivessem interessados. Elas alcançaram a família de Artemia enviando-os para trabalho – sem que eles pudessem se negar a isso – porque, mesmo sendo livres por lei, todos estavam sujeitos às regras do Diretório.

Além de tudo isso, a política da Coroa portuguesa também agiu no sentido de estimular a aquisição de homens e mulheres escravizados vindos de África para ampliar a oferta de mão de obra por meio da criação da Companhia de Comércio do Grão-Pará (1755-1777). Com isso quero dizer que africanos e índios conviveram e construíram, juntos, inúmeras experiências no mundo do trabalho e para além dele. 

Uma floresta de fugitivos

Outro dado merece nossa atenção na história de Artemia e Maria Felipa. Elas viviam na região do Baixo Tocantins, uma área conhecida pela forte presença de africanos escravizados que estavam, em sua maioria, incorporados às grandes propriedades que ali existiam, tais como as da família de Hilário de Moraes Bitencourt.

Os dados mostram que a região não apenas concentrava um importante número de escravizados, mas também de comunidades quilombolas. Isso era tão sério que o dito coronel Bitencourt recebeu, em 1788, a missão do governo de combater os quilombos naquela região. Era sua tarefa “apanhar um grande número de escravos, e outras pessoas que se acham fugidos e amocambados nos diferentes distritos”. 

Importantes trabalhos indicam que essa área construiu, desde o século XVIII, uma tradição quanto à formação de mocambos, comunidades de fugitivos e desertores e a constituição de um campesinato negro, como bem disse Flávio Gomes, e isso se tornou um problema de grandes proporções para as autoridades e para as elites locais, exatamente no contexto em que nossa história acontece.

Tudo isso nos revela um espaço marcado pela diversidade e pela intensa convivência e troca de experiências entre populações nativas e as de origem africana. A vasta pesquisa de Flávio Gomes também nos mostra que ali também eram muito frequentes a formação de comunidades de fugitivos que reuniam índios e escravizados, especialmente a partir do final do século XVIII, quando se nota a desmontagem do Diretório dos Índios. 

A história da força dessas duas mulheres, esse breve episódio que o documento foi capaz de nos mostrar, ajuda a entender muitas questões, mas uma das mais relevantes diz respeito à agência das mulheres e sua capacidade de fazer alianças e tecer laços de solidariedade em defesa daquilo que consideravam justo. Vejam que Artemia, sendo conhecida na vila, poderia ter buscado a proteção do patrão de sua filha e de seu marido. Ela toma um caminho muito diferente: vai em busca da força política da Principala Maria Felipa e, juntas, elas confrontaram o comandante até recuperar suas crianças. Isso não é pouco. Não sei dizer o que aconteceu com elas depois desse episódio excepcional. Contudo, é impressionante o quanto esse fragmento documental foi capaz de nos revelar de um mundo onde “viver era muito perigoso”.

Histórias como essa de solidariedade, de liberdade e de autonomia que foram forjadas, para além da injustiça, da desigualdade e da exclusão, são essenciais para pensar na pluralidade de experiências que constituem a trajetória de luta sem trégua da grande maioria da população desse país. Afinal, importa também reconhecer que estamos diante de outros projetos políticos – e possíveis – para o Brasil. 


Assista ao vídeoda historiadora Patrícia Alves-Melo no Acervo Cultne sobre este artigo:

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):

Ensino Fundamental: EF07HI09 (7º ano: Analisar os diferentes impactos da conquista européia da América para as populações ameríndias e identificar as formas de resistência). EF07HI10 (7º ano: Analisar, com base em documentos históricos, diferentes interpretações sobre as dinâmicas das sociedades americanas no período colonial). EF07HI12 (7º ano: Identificar a distribuição territorial da população brasileira em diferentes épocas, considerando a diversidade étnico-racial e étnico-cultural (indígena, africana, europeia e asiática)). EF08HI14 (8º ano: Discutir a noção da tutela dos grupos indígenas e a participação dos negros na sociedade brasileira do final do período colonial, identificando permanências na forma de preconceitos, estereótipos e violências sobre as populações indígenas e negras no Brasil e nas Américas). EF08HI19 (8º ano: Formular questionamentos sobre o legado da escravidão nas Américas, com base na seleção e consulta de fontes de diferentes naturezas). EF08HI27 (8º ano: Identificar as tensões e os significados dos discursos civilizatórios, avaliando seus impactos negativos para os povos indígenas originários e as populações negras nas Américas).

Ensino Médio: EM13CHS102 (Identificar, analisar e discutir as circunstâncias históricas, geográficas, políticas, econômicas, sociais, ambientais e culturais de matrizes conceituais (etnocentrismo, racismo, evolução, modernidade, cooperativismo/desenvolvimento etc.), avaliando criticamente seu significado histórico e comparando-as a narrativas que contemplem outros agentes e discursos); EM13CHS601 (Relacionar as demandas políticas, sociais e culturais de indígenas e afrodescendentes no Brasil contemporâneo aos processos históricos das Américas e ao contexto de exclusão e inclusão precárias desses grupos na ordem econômica atual). EM13CHS401 (Identificar e analisar as relações entre sujeitos, grupos, classes sociais e sociedades com culturas distintas diante das transformações técnicas, tecnológicas e informacionais e das novas formas de trabalho ao longo do tempo, em diferentes espaços (urbanos e rurais) e contextos). EM13CHS601 (Identificar e analisar as demandas e os protagonismos políticos, sociais e culturais dos povos indígenas e das populações afrodescendentes (incluindo as quilombolas) no Brasil contemporâneo considerando a história das Américas e o contexto de exclusão e inclusão precária desses grupos na ordem social e econômica atual, promovendo ações para a redução das desigualdades étnico-raciais no país).

Patrícia Alves-Melo

Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora Titular da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e pesquisadora do CNPq.

E-mail: patriciammelo6@gmail.com

Instagram: @melopatricia6


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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