Quando o tema das cotas sociais ou raciais vem à tona, aqueles que lhes são contrários sempre formulam a seguinte questão: em vez de fixar cotas, por que não melhorar a educação de base? Ou, ainda, presumindo que isso não esteja ocorrendo, indagam: por que não fixar as cotas e, paralelamente, melhorar a educação de base?
Por Gabriela Japiassú Viana, do Justificando
Não pretendo, neste breve ensaio, opor-me categoricamente a essa posição, visto que sequer a considero completamente destituída de fundamento. A uma, porque as cotas não excluem necessariamente outras medidas de naturezas diversas. A duas, porque, deveras, as normas jurídicas que tratam do tema prescrevem que as ações afirmativas são políticas de caráter provisório [1].
O que, ao menos a princípio, causa certa estranheza é que, via de regra, aqueles que alardeiam essas questões pouco falavam sobre as condições calamitosas do ensino público antes da consolidação da política de cotas no Brasil. Com relação ao racismo, é bom lembrar que até hoje muitos defendem o já superado mito da democracia racial.
Evidentemente, aqueles que frequentam as escolas públicas há muito reclamam a melhoria das parcas condições a que são rotineiramente submetidos (escassez de recursos materiais, má remuneração e muitas vezes a falta de professores).
Por sua vez, a população afrodescendente permanecia com a mesma dificuldade de ascensão social de sempre, por conta não somente da má qualidade das escolas públicas, onde geralmente estudam, mas também dos resistentes obstáculos que o racismo velado pressupõe, inclusive dentre aqueles que tiveram acesso à qualificação profissional [2].
No entanto, como essas são, em sua maioria, pessoas de baixa renda e pouca influência política, seus problemas usualmente geravam e geram pouca repercussão e impacto político, apesar de serem elas as principais vítimas do racismo e do descaso com a educação pública.
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Por outro lado, as classes sociais mais abastadas e geralmente brancas, que mantêm seus filhos em caríssimas escolas privadas, pouco se importavam com essa situação, até porque em nada eram afetadas. Estas, apesar de muitos não reconhecerem, eram, a bem da verdade, beneficiadas pelo modelo anterior às cotas, na medida em que tanto maiores as chances de garantirem aos seus filhos vagas nos cursos universitários mais procurados do país e, em seguida, nos melhores empregos, quanto pior for o ensino dos seus concorrentes e maior o racismo eles sofrerem.
Com a implementação das cotas e a redução dessas “vagas cativas” dos setores privilegiados, esse cenário foi redesenhado e, paulatinamente, a discussão acerca da qualidade da educação passou atrair os holofotes, sendo mais veiculada nos noticiários e chegando a se tornar inclusive mote de governo.
O debate público sobre o racismo, sob essa mesma ótica, ganhou força e corpo político, propiciando um ambiente favorável à aprovação de importantes normas jurídicas, como a Lei nº 10.639/2003 (incluiu no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”) e a Lei nº 12.288/2010 (Estatuto da Igualdade Racial).
Difícil conceber que tudo isso ocorreria sem que as cotas houvessem sido implementadas.
Daí é que erige, além daquelas já classicamente tratadas e amplamente debatidas, uma função pouco mencionada das cotas: a de distribuição do ônus da pressão política.
A alteração dos paradigmas de ingresso em muitas das melhores universidades públicas do país fez com que o peso do descaso com a educação pública e com a situação da população negra deixasse de ser suportado justa e unicamente pelas vítimas desses processos de exclusão e passasse a afetar e incomodar também as elites. Consequentemente, estas passaram a fomentar o debate público sobre esses temas, a exercer pressão política pela melhoria da educação como um todo e a deixar de impor barreiras intransponíveis para a difusão de medidas de combate ao racismo.
Desse modo, hoje, é possível afirmar, com certo otimismo, que demos ao menos o primeiro passo para a rediscussão do atual modelo educacional e para a equalização das oportunidades, independentemente de cor ou raça. Os próximos passos dependem não somente daqueles que se valem do ensino público e dos afrodescendentes, mas de todos os brasileiros, aos quais cabe produzir conhecimento sobre esses temas, bem como se posicionar contra o racismo e o sucateamento das escolas públicas. Esse é o único caminho viável que vislumbro para o fim das cotas.
Gabriela Japiassú Viana é colaboradora do grupo Olhares Humanos, Procuradora do Estado de São Paulo e pós-graduanda em Cultura, Educação e Relações Etnicorraciais pelo CELACC/USP.