As injustiças climáticas atingem as mulheres negras e periféricas

FONTEEcoa, por Jurema Werneck e Lidia Lins
Jurema Werneck (Foto: Acervo Geledés Instituto da Mulher Negra/ Alma Preta)

A ideia, propagada durante a pandemia de covid-19, de que “não estamos todos no mesmo barco”, se aplica perfeitamente à noção daquilo que advogamos enquanto justiça climática. Alguns de nós tem barcos pequenos, outros furados, sem remo ou apoio, outros se quer tem como flutuar.

Não podemos nos esquecer da recente tragédia vivida por centenas de famílias que foram desalojadas e desabrigadas e perderam 65 entes queridos no Litoral Norte de São Paulo, durante o Carnaval. Onde essas mulheres, homens, crianças e adolescentes moravam? Nas encostas dos morros, lugares de riscos de deslizamentos e alagamentos, onde quando se chove muito, “se perde tudo” – uma gravíssima violação do direito à vida e à moradia adequada.

Nós não podemos mais assistir, inertes, os impactos das mudanças climáticas sem reconhecermos o seu principal padrão, o qual se ancora nas histórica e estruturais desigualdades presentes na sociedade brasileira: as mulheres, a população negra, os povos indígenas, as comunidades tradicionais e de favelas, principais atingidos por estes eventos extremos, sofrendo os danos mais severos e graves. O silêncio sobre as pedras, escombros e as perdas de centenas de mulheres negras nesses eventos extremos é ensurdecedor, ecoando para todos os cantos.

No Brasil, um recente levantamento da Defesa Civil Nacional expôs que existem aproximadamente 14 mil pontos de risco altíssimo de desastre geológico e 4 milhões de pessoas morando nessas áreas. Mais uma vez repetimos: quem são essas milhões de pessoas? O prenúncio da tragédia não escolhe por acaso suas vítimas. Estava ali, sempre esteve e, na ocasião, recebendo seus devidos adjetivos, o racismo ambiental, que nada mais é do que uma representação do racismo estrutural, que relega às populações inferiorizadas a ambientes degradados, poluídos, arriscados, submetendo a população negra a mais barreiras, ampliando sua exclusão e provocando profunda violação de direitos humanos. Jamais alcançaremos justiça climática sem a garantia de justiça racial e de gênero!

O estudo “Injustiça Socioambiental e Racismo Ambiental do Instituto Pólis, publicado em julho de 2022, reforça que nas cidades brasileiras, as famílias de baixa renda se concentram em áreas menos dotadas de infraestrutura e serviços ambientais básicos.

Em Belém, por exemplo, 75% da população residente de áreas de risco é negra com renda domiciliar média de R$ 1,7 mil. Já em São Paulo e Recife esse percentual é 55% e 68%, respectivamente, com renda média é de R$ 1,1 mil por domicílio. As mulheres negras, chefes de família, com rendimento de até 1 salário-mínimo são aquelas que se encontram mais expostas às consequências da crise climática.

E são as mulheres negras, indígenas e periféricas, que no Brasil, ocupam a base da pirâmide social, que são mais vulneráveis aos impactos das mudanças climáticas, por restarem muito expostas às relações desigual de raça, etnia, gênero e classe social. Ao mesmo tempo, elas devem ser reconhecidas como agentes fundamentais das ações que precisam acontecer para que se garanta justiça climática. Principais sujeitos ativos da mudança, devem protagonizar a formulação de toda e qualquer tentativa de promoção de justiça climática, mitigação de riscos/impactos e reparação por danos. Se elas não forem ouvidas e incluídas nas mesas de decisão, as estratégias desenvolvidas não serão adequadas às suas necessidades, e, portanto, estão fadadas a serem insuficientes, perpetuando um novo ciclo de grave violação de direitos humanos.

Diversas medidas precisam ser adotadas em qualquer iniciativa que se queira efetivamente transformadora: desde a garantia da participação e protagonismo destas mulheres nas esferas de formulação de propostas e políticas, bem como nos ambientes em que se toma decisões no combate à crise climática. É fundamental a criação de políticas públicas que visem a eliminação das disparidades de raça, etnia, de gênero e suas interseccionalidades nos diferentes setores, reduzindo e, no limite, eliminando as lacunas políticas e econômicas que estão na base dos impactos desiguais dos desastres e também das ações de mitigação e adaptação às mudanças.

É urgente reconhecermos que estas mulheres negras, indígenas, faveladas, periféricas, quilombolas, caiçaras e tantas outras, já estão em ação. Agindo sem o devido suporte de políticas públicas e mesmo do restante da sociedade. Quando as sirenes tocam, são elas que correm para proteger as vida das crianças, idosos e demais integrantes de sua comunidade. São elas que se desdobram para garantir a subsistência de muitos, quando a precariedade chega ao limite. Muitas delas perdem a vida e deixam imensas lacunas na vida dos seus familiares e também de seus territórios de vizinhança e afinidade. As que sobrevivem, trabalham no limite do possível para a superação do trauma e para que a vida possa seguir seus curso, e com tão poucos recursos. Já passa da hora da sociedade e dos governos agirem junto com elas, ao lado delas, garantindo o que lhes é de direito!

Elas tem muito a dizer, propor e agir. Por isso, a Anistia Internacional Brasil lançou no dia 3 de março de 2023 o projeto “Vozes Negras pelo Clima” que já se apresenta no debate e ação como algo inovador: queremos ser uma plataforma para ampliar as vozes de mulheres negras diretamente implicadas na crise climática. Acreditarmos que as mulheres negras devem ocupar os principais espaços de debate de ideias, propostas e tomada de decisão. Suas vivências, histórias e propostas precisam estar presentes nas respostas à crise climática e ao racismo ambiental. Para que o que dizem: “As sirenes são enlouquecedoras”; “A crise climática tem cor, gênero e endereço” ou mesmo “As mulheres carregam a crise climática nas costas”, sejam ouvidas por mais gente e possam provocar transformações efetivas.

Parceiras nesta trajetória, nós da Anistia Internacional Brasil nos juntamos a onze mulheres negras, lideranças em seus territórios, oriundas de diferentes regiões do Brasil, para ocuparem espaços onde têm estado ausentes e onde poucos chamavam por elas. Serão elas a urgência de considerar as histórias cotidianas e os atravessamentos das desigualdades de raça e gênero nesta agenda global.

Assim, o projeto Vozes Negras pelo Clima inicia, neste mês de março que marca as lutas das mulheres no mundo todo por justiça e igualdade, o ciclo de encontros de compartilhamento de conhecimentos e informações entre todas as participantes, que nos levarão ao maior evento de discussão climática do mundo: a Conferência das Partes (COP) da Organização das Unidas e a outros espaços de debates e decisões. Nas palavras de uma das participantes, este será um processo que permitirá fortalecer nossas redes de ações, destacando a conexão de mulheres negras, e a “importância de se organizarem para que tenham suas vozes amplificadas e maiores condições de incidência”. Por que seguir unidas é seguir atentas, dispondo energia e atenção para continuidade das mobilizações que queremos num amanhã não tão distante que começa agora.

Mais que nunca, essas são vozes precisam ser ouvidas, compartilhando com demais seguimentos da sociedade e com governos do Brasil e do mundo sua experiências como exemplos passíveis de multiplicação. Caso contrário, as soluções serão inadequadas, insuficientes, sem oferecer a estas mulheres e suas comunidades – e ao país -chances reais de mudar as realidades apresentadas. Hoje e sempre mulheres negras, indígenas e quilombolas à frente. E como solução.

Jurema Pinto Werneck é ativista feminista, médica, comunicóloga e diretora-executiva da Anistia Internacional.

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