As lições que África do Sul pode dar ao Brasil na crise do coronavírus

FONTEPor Waleiska Fernandes, do Terras em Males
Foto: GCIS

Desde o início da pandemia, a África do Sul vem se destacando pelo rigor adotado nas políticas de enfrentamento ao coronavírus. Menos de um mês após o primeiro registro da doença no país, que ocorreu em 05/03, o governo decretou estado de desastre nacional, com um severo lockdown que iniciou em 26/03. Agora, após dois meses do fechamento total do país, os sul-africanos se preparam para retomar sua rotina. A partir de 1/6, a África do Sul passa para o estágio 3 do confinamento e quase todas as atividades serão reabertas.

Enquanto isso, o Brasil se aproxima cada vez mais da posição de epicentro da pandemia. Mas o que explica que países com tanta similaridade socioeconômica apresentem números tão diferentes com relação ao coronavírus?

Até esta quinta-feira (28/05) a África do Sul registrou 27.610 casos com 580 mortes por Covid-19, enquanto o Brasil tem 418.608 casos com 25.935 mortes. Quando levamos os números para a proporção da população, fica mais fácil mensurar a diferença: a África do Sul tem 484 casos por milhão de habitantes, enquanto o Brasil tem 2.006 casos a cada milhão.

A proporção de mortes por Covid-19 também é muito maior no Brasil: 124,1 mortes por milhão de habitantes, enquanto na África do Sul é de 10,2 por milhão.

Unidade na mensagem – Desde o surgimento do coronavírus em solo sul-africano, o presidente da República, Cyril Ramaphosa, passou a liderar pessoalmente os esforços para o enfrentamento da pandemia. As primeiras medidas foram anunciadas por ele em cadeia nacional duas semanas após o primeiro registro da doença. Escolas, faculdades e espaços de lazer e turismo foram fechados, suspensão da entrada de vôos oriundos da Europa e proibição de aglomerações de mais de 50 pessoas foram algumas das medidas anunciadas em 15/03, quando o país ainda registrava 54 casos de coronavírus e apenas 2 mortes.

Também foi o próprio presidente que dias depois veio a público anunciar que o país entraria em lockdown por três semanas a partir de 26/3. Foram fechados fronteiras, portos e aeroportos e houve a suspensão das atividades econômicas, com exceção da venda de alimentos, produtos de limpeza, medicamentos e combustível. Ao final desse período, Ramaphosa voltou a usar a cadeia nacional de televisão para informar a prorrogação das medidas por mais duas semanas.

Ninguém escapou da rigidez do lockdown. Em abril, ele chegou a suspender por dois meses a ministra de Comunicações e Tecnologias Digitais, Stella Ndabeni-Abrahams, por desobediência ao decreto de isolamento social, após o vazamento de fotos dela em um jantar festivo na casa de um amigo. Ramaphosa declarou que a atitude da ministra desrespeitou todo o povo sul-africano e que ninguém de seu governo poderia agir para desencorajar a população a seguir fazendo a sua parte no combate à pandemia.

No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro não assumiu a liderança no enfrentamento ao coronavírus em nenhum momento. Ao contrário, desde o início ele minimizou a gravidade e vem brigando com governadores que tentam agir com firmeza em seus estados para evitar a proliferação do vírus. O presidente brasileiro não hesitou em trocar o ministro da Saúde, Henrique Mandetta, porque este insistia na defesa do isolamento social. A guerra de braço entre Bolsonaro e governadores (muitos deles aliados do presidente até então) só atrapalha na mensagem a ser passada pela população. Enquanto na África do Sul a determinação de ficar em casa é uníssona, no Brasil, cada agente público fala uma coisa diferente.

A valorização da ciência – Ninguém no mundo imaginou que viveríamos uma pandemia em 2020, mas o governo sul-africano desde o início de março afirmou ser possível tirar lições da experiência de países que já sofriam o caos pelo coronavírus. Por isso, as recomendações das autoridades médicas desses países e da Organização Mundial de Saúde foram levadas ao pé da letra por aqui. A proibição da venda bebidas alcóolicas, por exemplo, é uma recomendação da OMS para evitar que as pessoas relaxem na prevenção. A suspensão está tão rigorosa que, segundo dados oficiais, 60% das prisões realizadas durante o locwdown foram de pessoas tentaram transgredir essa regra.

No Brasil, o presidente da República se recusa a ouvir a OMS e chegou a adotar o uso de um medicamento retirado da lista de indicações para tratamento da Covid-19, a cloroquina, como protocolo a ser adotado no SUS mesmo para casos leves da doença. A saída do segundo ministro da Saúde de Bolsonaro, Nelson Teich, aconteceu porque este defendia que os protocolos internacionais precisavam ser respeitados e se recusou a assinar a determinação do uso indiscriminado do medicamento.

Parceiros internacionais – Outra questão fundamental foi a busca por ajuda de parceiros internacionais, como China, Estados Unidos e Cuba, que auxiliaram com equipamentos e profissionais. Os EUA e a China doaram equipamentos, enquanto Cuba cedeu médicos e técnicos que já possuem experiência com doenças da rápida contaminação, como o ebola.

No Brasil, o governo tem entrado em sucessivas rotas de coalisão com o governo chinês, fazendo com que a Embaixada da China no Brasil já tenha emitido notas exigindo retratação pública do Palácio do Planalto. Além disso, a expertise dos médicos cubanos em situações de crise não pode ser usada no Brasil porque o presidente Jair Bolsonaro se orgulha de ter acabado com o programa Mais Médicos, que garantia que esses profissionais atuassem no país, além do fato de seu governo não realizar a prova de revalidação de diploma dos médicos que ficaram no Brasil mesmo com o fim do programa federal.

Nesta quinta-feira (28), o presidente Bolsonaro anunciou que os EUA vão doar dois milhões de comprimidos de cloroquina para o SUS, mesmo sem comprovação da eficácia do medicamento pela OMS. Para a África do Sul, Donald Trump doou 1.000 respiradores.

A preocupação com o sistema de saúde – O governo sul-africano sempre bateu na tecla de que era preciso empurrar o pico das contaminações para frente para que o país pudesse se preparar para lidar com a doença. A tentativa parece ter dado certo. Enquanto a curva não crescia de forma exponencial, o governo conseguiu preparar hospitais de campanha que pudessem receber os infectados. Ao todo, 25 mil novos leitos foram colocados à disposição da rede pública de saúde exclusivamente para casos de Covid-19.

A rede privada também aproveitou o tempo para se preparar. Áreas inteiras foram isoladas dentro de hospitais apenas para atender suspeitos da doença. Alguns chegaram a armar contêineres nas calçadas para fazer os atendimentos iniciais. Graças a todas essas medidas, o sistema de saúde da África do Sul ainda está longe de entrar em colapso.

No Brasil, cinco estados já figuram entre as manchetes de jornal por causa da falta de leito nas redes pública e privada para atender os pacientes de coronavírus: São Paulo, Rio de Janeiro, Pará, Amazonas e Amapá. Mesmo assim, o governo federal segue sua campanha contra o isolamento social.

A vida à frente da economia – Mesmo enfrentando problemas econômicos anteriores à pandemia, com um índice de desemprego de 29% no país, o governo sul-africano apostou tudo do isolamento social para evitar o crescimento acelerado da curva de contágio por coronavírus. O governo dividiu o lockdown em cinco estágios. No 5, vivido de 26/03 a 30/04, todo o país parou com exceção dos atendimentos médicos e da venda de alimentos, produtos de limpeza, medicamentos e combustível. Em 01/05, o país passou para o estágio 4, sendo liberadas também a venda de roupas de criança, roupas de frio, artigos para casa, atividade agropecuária e algumas áreas da indústria.

A continuidade da suspensão de várias atividades comerciais e da venda de cigarros e bebidas alcoólicas no estágio 4 rendeu muitas críticas ao governo. A estimativa do Banco Central é de que economia sul-africana encolha 7% este ano. Grupos empresariais alertam para uma contração ainda maior com a perda de milhões de empregos e, por isso, vários setores vinham pressionando o governo para a reabertura do país.

Ramaphosa, porém, segurou o fechamento por dois meses sustentando que a preservação da vida precisava se sobrepor à economia. A abertura para o estágio 3 do lockdown a partir de 01/06 acontece durante uma crescente no número de casos de Covid-19 na África do Sul. No entanto, segundo o presidente, a preparação básica do país para lidar com a pandemia foi possível de ser feita. “Sabíamos o tempo todo que o bloqueio atrasaria apenas a propagação do vírus, mas não seria capaz de detê-lo”, disse Ramaphosa em pronunciamento no último dia 23. “Embora o bloqueio nacional tenha sido eficaz, ele não pode ser sustentado indefinidamente”, justificou.

No Brasil, a preocupação em proteger a economia sempre pautou as ações do presidente da República. Várias foram as declarações nesse sentido. Acompanhado de vários empresários, Jair Bolsonaro chegou a fazer uma visita surpresa ao Supremo Tribunal Federal (STF) com o objetivo de persuadir a suprema corte a mudar seu posicionamento quanto à prevalência de direitos dos estados de impor medidas de isolamento social em contrariedade às determinações do governo federal, que sempre defendeu abertura total do país.

Mas nem tudo são flores na África do Sul
Apesar dos inúmeros acertos do governo sul-africano no enfrentamento à pandemia, é impossível não citar os exageros. Um deles está na militarização do lockdown. Polícia e Exército foram usados para fazer valer o confinamento e muitas foram as denúncias de violência policial, principalmente, nas periferias, onde a população tem mais dificuldade em cumprir o isolamento. Além de moradias precárias, a busca por água, por comida e por donativos estão entre os principais motivos para o descumprimento por parte das pessoas de baixa renda.

Outro ponto frágil está na insistência da proibição do tabaco mesmo no nível 3. A alegação do governo é de que o hábito de fumar aumenta as chances de contágio e que, por isso, o banimento de cigarros ainda é necessário por tempo indeterminado. O problema é que as pessoas não pararam de fumar, apenas estão comprando o cigarro de forma ilegal. Pesquisa realizada pela Universidade de Cape Town (UCT) apontou que 90% dos fumantes conseguiram obter o produto de alguma forma, e pagando bem mais caro. Um maço de cigarro que vale normalmente 35 rands, agora, está valendo cerca de 120 rands no mercado clandestino.

A associação que representa a indústria do tabaco na África do Sul levou a suspensão das vendas à justiça, alegando que o governo está perdendo milhões em arrecadação de impostos e que apenas o tráfico está ganhando com a proibição. O julgamento do caso está marcado para 09/06.

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