As ruas e a Covid-19: novas e velhas expressões das desigualdades sociorraciais durante a pandemia

FONTEPor Silier Andrade Cardoso Borges, enviado para o Portal Geledés
Banco de Imagens Pixabay

Em janeiro de 2020, a OMS declarou que o surto de Sars-Cov-2 (novo coronavírus) constitui uma emergência de saúde pública de importância internacional. Em poucos dias, a Covid-19 foi caracterizada como pandemia. Até maio de 2020, já foram diagnosticados mais de quatro milhões e meio de casos e mais de trezentas mil mortes. Em poucos meses, a América do Sul se despontou como epicentro da crise, destacando-se o Brasil pela velocidade da transmissão do vírus e pela flexibilização das medidas restritivas, produzindo sua interiorização.

Foram as elites do país que inicialmente adquiriram o vírus, trazendo-o através de viagens aéreas internacionais. Em meio ao negacionismo, relativismo e minimização dos efeitos da pandemia pelas classes médias, como apontado pelo Psicólogo e redutor de danos Iago Lôbo (2020), é o conjunto das trabalhadoras e trabalhadores braçais negras/os, frequentemente em situação de informalidade e destituídas de direitos trabalhistas (faxineiras, porteiros, entregadores e prestadoras de serviço eventuais) que são contaminadas por Covid-19, levando-o às comunidades periféricas da qual residem e às famílias numerosas, submetidas às condições precárias de moradia, saneamento e subsistência. É inequívoca as relações imbricadas entre racismo, sexismo e classismo em uma sociedade marcadamente excludente como a brasileira.

Como já nos ensinou Sueli Carneiro (2011), a pobreza no Brasil tem cor e é preta. Não à toa, melhor seria nos referirmos a dois Brasis. Segundo Dóra Chor e Claudia Lima (2005), são diversas as evidências empíricas na educação, trabalho e justiça que aponta a discriminação racial como elemento estruturante das desvantagens econômicas e sociais enfrentadas pelas minorias raciais no Brasil. Contudo, ainda são pouco investigadas as desigualdades raciais acumuladas ao longo de sucessivas gerações no âmbito da saúde, embora tais indicadores demonstrem que as categorias raciais são importantes para predizer variações na mortalidade nos estudos epidemiológicos. A mortalidade precoce é particularmente expressiva entre indígenas e pretas, assim como a mortalidade materna, as doenças cerebrovasculares e outras condições de adoecimento físico e mental.

 A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), a partir da análise de dados divulgados pelo Ministério da Saúde, divulgou que embora negros e negras representem grupo minoritário entre os registros afetados pela Covid-19, representam um quarto dos brasileiros hospitalizados com Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) e um terço dos mortos infectados pelo novo coronavírus. Embora a população branca seja mais infectada pela Covid-19, em função das melhores condições de moradia, saúde e subsistência tendem a apresenta menor indicador entre o número de mortos decorrente do novo coronavírus.    

Diante do crescimento da Covid nas periferias das grandes e pequenas cidades, é o Estado quem performa uma necropolítica que atinge desigualmente as desiguais, seja pela atuação direta de extermínio à juventude negra, seja pela omissão da assistência à saúde e à assistência social, nossos direitos sociais que junto à previdência conformam o tripé da Seguridade Social. Se no primeiro caso a epidemia não interrompeu as operações policiais nas comunidades, no segundo também dá prosseguimento ao genocídio de pretos e periféricos através da morosidade, da inação e dos vazios assistenciais, na medida em que destitui os sistemas de proteção social e da saúde de seus mecanismos garantidores de acesso regular e continuado à assistência social e cuidado da população negra.

Vejamos que, embora a população negra no país seja equivalente a 53,6% da população brasileira, sabidamente quase 80% das pessoas que dependem do SUS são negras. Tratam-se de pessoas submetidas às filas intermináveis, à restrição de leitos de UTI, às dificuldades de marcação de consultas e realização de exames, às restrições da cobertura dos serviços de média e alta complexidade (ambulatórios, serviços especializados, hospitais, etc), precariedade dos encaminhamentos junto à rede intersetorial e mesmo à totalidade do acesso aos bens e serviços de saúde por pretas e pretos nas favelas. 

É indubitável que o Sistema Único de Saúde (SUS) é um dos maiores e mais completos sistemas públicos de saúde de todo o mundo, refletindo a constituinte que, em 1988, estabeleceu a saúde como direito de todos e dever do Estado em um país de dimensões continentais. No entanto, foram anos acumulados de desfinanciamento sistemático do SUS, e também do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e da Previdência Social, que estabeleceram o desmonte histórico da Seguridade Social e, mais amplamente, resultaram no deliberado projeto de esfacelamento das políticas públicas e do conjunto dos direitos sociais conquistados desde a redemocratização do país através dos movimentos de luta popular advindos da sociedade civil organizada.

O cenário da população em situação de rua no Brasil é ainda mais emblemático. Cabe, de início, demarcar que 67% das pessoas em situação de rua no país são negras. Muito antes da pandemia, é frequente que a população em situação de rua seja encontrada sem documentos, sobretudo em função de circunstâncias próprias à rua: inexistência de lugar para guardar seus pertences, violência policial, rupturas de vínculos familiares e comunitários, perda da moradia e do emprego, exposição contínua ao sol, à chuva e aos furtos de seus pertences enquanto dormem. Do lado dos serviços públicos, é também frequente a construção de um aparato burocrático que cerceia o acesso aos mecanismos de proteção social e de saúde, quando exigem que os mesmos, para acessá-los, precisarão apresentar tais documentos. Não é à toa que apenas 3,2% das pessoas em situação de rua recebem aposentadoria, 1,3% Benefício de Prestação Continuada (BPC) e só 2,3% são beneficiários do Bolsa Família, refletindo o racismo institucional.

Trícia Calmon (2020), pesquisadora e Coordenadora Geral do programa “Corra pro Abraço”, apontou de maneira coerente em seu artigo que compete aos agentes públicos organizar as pautas políticas a favor do enfrentamento às injustiças sociais que acometem as pessoas em situação de rua, de modo que o princípio da dignidade humana não seja submetido ao racismo disfarçado de burocracia.

É amparado no discurso acrítico da “burocracia” tornada sinônimo de “ineficiência” (CALMON, 2020) que, pela ação ou pela omissão deliberada, são negadas as possibilidades de ser cuidado pelas equipes multiprofissionais ou assistido pelos benefícios eventuais, socioassistenciais ou programas de transferência de renda.

Ainda mais escassa é a discussão que reflita sobre as nuances envolvidas na experiência de existir na rua de negras e negros, em “encruzilhadas identitárias” (AKOTIRENE, 2019) que reproduzem o sofrimento e reiteram o lugar de desqualificação no contexto da pandemia.

Se a situação de rua já é por si mesma condição de vulnerabilidade que imbrica, por definição, a ausência de moradia regular e convencional, a fragilização ou o rompimento de vínculos familiares e comunitários, desemprego e extrema pobreza, se interseccionam com condicionantes de gênero e raça. Desta maneira, são multiplicadas as suscetibilidades à deterioração do estado geral de saúde e da condição psíquica por meio de vivências de menosprezo, violência policial, opressão, negligência familiar e perda da perspectiva de futuro nos contextos urbanos, reprodutoras do sofrimento social agudizadas pelo recrudescimento das políticas proibicionistas de “guerra às drogas” e pela pandemia.

Acompanhando as reflexões propostas pela filósofa Nancy Fraser (2006), precisamos falar das consequências objetivas e subjetivas das políticas de redistribuição que visam enfrentar a injustiças distributivas, isto é, daquelas políticas sociais que visam minorar as desigualdades de classe através de programas de transferência de renda. É indubitável a relevância dos programas de transferência de renda no Brasil, exemplo para o mundo quando se fala da retirada de milhões de brasileiras e brasileiros da extrema pobreza. Contudo, há de se considerar que um de seus efeitos possíveis é a estigmatização das populações desprivilegiadas, vistas pelas classes médias como recebedora de “excessiva vantagem e generosidade”. Do ponto de vista dos seus efeitos objetivos, as políticas de redistribuição, ao oferecer assistência precária e focalista para a massa de desempregados e subempregados, não produzem transformações profundas na estrutura de desigualdade racial e social dos países que as empreendem. Assim, as “políticas de combate à fome” substituíram, na prática e no imaginário social, as políticas de enfrentamento concreto às desigualdades e injustiças sociais.

A situação da política de Assistência Social é ainda agravada pelos seus próprios antecedentes. A Assistência Social no Brasil nasce das práticas caritativistas, amparadas na lógica da benemerência, do voluntarismo, do primeiro-damismo e atravessada pelo coronelismo e patrimonialismo nos primeiros anos do século XX. Ainda que instituída como direito social do ponto de vista constitucional, na prática o cotidiano dos serviços municipais é fortemente influenciado pelas disputas político-partidárias, pelo paternalismo e pela lógica do clientelismo, que se apropria dos bens públicos segundo interesses pessoais, esvaziando sua finalidade e reproduzindo relações verticais em prejuízo dos assistidos e em desfavor das equipes eticamente implicadas no cuidado.

Já nos ensinou o professor Antonio Nery Filho (2012, p. 20), importante referência no cuidado aos despossuídos, que “nossos nascimentos não são garantias inelutáveis de destino, mas portam a semente do que poderemos ser”. São muitos os desafios colocados às populações subalternizadas em favor de um projeto colonial que marginaliza e desassiste negros e negras, favelados, subempregados ou em situação de rua. Seu enfrentamento exige, por um lado, o amplo reconhecimento decolonial do racismo como fator estruturante das desigualdades mesmo muito antes da pandemia, e de outro, a articulação e a organização da sociedade civil na (re)construção militante de um projeto civilizatório no cenário de pós (e durante a) pandemia.

 

Referências

AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

CALMON, Tricia Viviane Lima. As condições objetivas para o enfrentamento ao COVID-19: abismo social brasileiro, o racismo, e as perspectivas de desenvolvimento social como determinantes. Revista NAU Social, v.11, n. 20, p. 131–136, Mai./Out. 2020. Disponível em: https://portalseer.ufba.br/index.php/nausocial/article/view/36543/21038

CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.

CHOR, Dóra; LIMA, Claudia Risso de Araujo. Aspectos epidemiológicos das desigualdades raciais em saúde no Brasil. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 21, n. 5, p. 1586-1594,  Out. 2005. Disponível em:  http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2005000500033&lng=en&nrm=iso

FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era “pós-socialista”. Cadernos de Campo (São Paulo 1991), v. 15, n. 14-15, p. 231-239, 30 mar. 2006.

LÔBO, Iago. A PANDEMIA NA MALOCA*: população de rua, necropolítica e redução de danos. CMI Brasil – Centro de Mídia Independente. Disponível em: https://midiaindependente.org/?q=node/709 

NERY FILHO, Antonio. et al. As drogas na contemporaneidade: perspectivas clínicas e culturais. Salvador: EDUFBA: CETAD/UFBA, 2012. 

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