Ataque a terreiros é terrorismo

Foto: Marta Azevedo

Não é de hoje que casas de umbanda e candomblé sofrem perseguição

por Flavia Oliveira no Globo

Foto: Marta Azevedo

Foi o historiador Luiz Antonio Simas que, após a destruição do terreiro de candomblé no Parque Paulista, em Duque de Caxias, no início do mês, cobrou numa rede social outra denominação para os ataques aos cultos de matriz africana. No lugar de intolerância, terrorismo religioso. A frequência e a intensidade dos episódios, que misturam intimidação, ameaça, dano ao patrimônio, destruição de elementos sagrados, agressão física e até tentativa de homicídio, justificariam a ênfase. Neste ano, que mal passou da metade, a Comissão Contra a Intolerância Religiosa já recebeu 200 denúncias de algum tipo de violência, mais que o dobro do total (92) de 2018. A Baixada Fluminense, Nova Iguaçu e Caxias à frente, concentra 35% dos casos.

Não é de hoje que casas de umbanda e candomblé sofrem perseguição no país. No Brasil Colônia, a Igreja Católica impunha a africanos e indígenas escravizados a conversão. Violência. A República criminalizou rituais e espaços, a ponto de ainda hoje objetos sagrados permanecerem sequestrados em repartições policiais. Mais violência.

A legislação evoluiu para garantir a liberdade de credo e punir o racismo religioso. Mas nas últimas décadas, testemunhou-se o recrudescimento da brutalidade, pregada primeiro por líderes de denominações cristãs neopentecostais; hoje, por grupos criminosos que, para dominar territórios, violam templos, proíbem trajes e rituais, expulsam sacerdotes e filhos de santo. A revista “Gênero e Número”, em levantamento recente, observou, de 2011 para 2017, salto de 15 para 537 denúncias de intolerância religiosa ao serviço Disque 100 do governo federal. Seis em cada dez relatos tinham como alvo a fé afro-brasileira.

No ano passado, o Ministério Público Federal divulgou o estudo “Estado Laico e Combate à Violência Religiosa”, em que confirma e analisa a espiral de ataques, em particular no Rio de Janeiro. Foi contundente em afirmar que o Brasil “não coíbe, impede e não pune de maneira proporcional, adequada e eficaz indivíduos e grupos que, de forma sistemática, ao longo do tempo, vêm restringindo, anulando e suprimindo o livre exercício dos direitos de consciência, crença, culto e liturgia de minorias afro-brasileiras”.

O procurador Jaime Mitropoulos, que assina o estudo, já usou o conceito de terrorismo para classificar a escalada de violência contra terreiros por grupos armados da Baixada Fluminense, em particular. “Criminosos usam a religião como pretexto para intimidar, amedrontar e ameaçar a integralidade física e a vida de pessoas. Há viabilidade de enquadrar como terrorismo, se o tipo penal for enquadrado adequadamente”, sublinha.

Aí mora o problema. A subnotificação é regra; nem todos os casos chegam às delegacias. Quando há registro de ocorrência, falta conhecimento tanto das vítimas quanto das equipes policiais para listar os tipos de crime. Assim, intolerância transforma-se no guarda-chuva a abrigar de racismo religioso a tentativa de homicídio. “Há indícios de que assassinatos ou tentativas por crime de ódio religioso tenham sido tipificados como motivação diversa, assim como discriminação pode aparecer como briga de vizinhos”, completa o procurador.

O Brasil tem desde 2016 uma Lei Antiterrorismo (13.260) em vigor. O artigo 2º engloba a violência cometida por um ou mais indivíduos contra pessoa, patrimônio ou paz pública por xenofobia, discriminação ou preconceito por cor, raça, etnia e religião. A tipificação transferiria à Polícia Federal a investigação dos casos. Renato Galeno, professor de Relações Internacionais do Ibmec, diz que a definição de terrorismo é tema que mobiliza e divide a comunidade global desde os ataques aos EUA no 11 de setembro de 2001. “Há um temor acertado de não se permitir abusos de governos contra minorias”, explica.

Mas em diferentes países com legislação antiterror — entre eles, EUA, Canadá, UE, Colômbia, Austrália — algumas premissas se encaixam na perseguição às religiões afro-brasileiras no Estado do Rio. Em mais da metade dos textos há referências a ação violenta, objetivo político de dominação e/ou intenção de provocar medo na população em geral ou em nichos específicos. O que se vê na Baixada é terror.

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