Ativista negra pelo direito ao voto está por trás da onda Biden na Geórgia

FONTEPor Leonardo Sakamoto, UOL
A advogada, escritora, ativista e política democrata Stacey AbramsImagem: Reprodução/Fair Fight

Apesar das denúncias, sem provas, de fraude na apuração da eleição feitas pelo presidente Donald Trump, a votação de Joe Biden na Geórgia deve-se a, entre outras razões, ao esforço de ativistas que, por anos, lutaram para garantir mais participação política de negros, jovens e imigrantes. Vale lembrar que, nos Estados Unidos, o voto não é obrigatório. A mais conhecida entre elas é Stacey Abrams.

O democrata ultrapassou o republicano por uma pequena margem de votos na madrugada desta sexta (6), surpreendendo muitos analistas por se tratar de um estado republicano. A contagem ainda não terminou, mas independentemente do resultado, a disputa acirrada já é uma vitória.

A advogada negra, de 46 anos, nasceu em Madison, no Wisconsin, cresceu no Mississipi e depois na Geórgia – estado com uma história segregacionista. Formada pela renomada Faculdade de Direito da Universidade de Yale e escritora de romances de suspense, foi deputada na Geórgia por 11 anos, sete como líder democrata. Disputou o governo do Estado em 2018, sendo a primeira mulher negra a concorrer a um governo por um dos dois grandes partidos nos Estados Unidos.

Na época, denúncias apontaram o cancelamento pelo governo local de 53 mil registros de votação, a maioria de afrodescendentes, às vésperas da eleição. Abrams perdeu por 55 mil votos.

Ela criou, em 2013, o New Georgia Project uma organização não-governamental com o objetivo de promover o registro eleitoral. Após a derrota em 2018, fundou a Fair Fight [Luta Justa, em inglês] para defender eleições limpas e incentivar a participação, denunciando entraves ao registro.

“Na última década, a população da Geórgia aumentou 18%. ‘A nova maioria americana’ – pessoas negras, jovens de 18 a 29 anos e mulheres solteiras – é uma parte significativa desse crescimento. Representa 62% da população em idade de votar na Geórgia, mas são apenas 53% dos eleitores registrados”, diz o site do New Georgia Project.

“A supressão de eleitores negros e jovens é um flagelo que nosso país enfrenta em vários estados. As eleições de 2018 na Geórgia iluminaram a questão, repleta de má gestão, irregularidades, filas inacreditavelmente longas e muito mais, expondo ações e inações recentes e também de décadas por parte do estado para impedir o direito de voto”, afirma, por sua vez, a Fair Fight.

Movimentos trouxeram mais de 800 mil novos eleitores para Geórgia

Stacey Abrams percorreu a Geórgia e outros estados para aumentar a participação de negros e cidadãos norte-americanos de origem estrangeira, como latinos e asiáticos. De acordo com o perfil dela feito pela revista Vogue, a advogada conseguiu dobrar a participação de jovens em seu estado. Também inspirou eleitores democratas brancos a votar – um dos grandes desafios de um candidato a presidente da República por lá é fazer com que as pessoas saiam de casa para tanto.

De acordo com uma entrevista que ela concedeu à NPR, a rádio pública dos EUA, na última segunda (2), um dia antes do dia da eleição, 45% dos novos 800 mil eleitores que, graças a seu trabalho e o de outras entidades engrossaram o registro para votação, têm menos de 30 anos e 49% são negros.

“E todos os 800 mil entraram nas listas de votação depois de novembro de 2018, o que significa que são eleitores que não estavam qualificados para votar em mim, mas estão qualificados para participar desta eleição. E temos trabalhado assiduamente para fazê-los aparecer”, afirmou Abrams.

E eles apareceram. Análises parciais mostram que, mais que uma virada de condados republicanos par democratas, houve um aumento significativo da participação popular.

“O voto da população negra, seja nos Estados Unidos, seja no Brasil, não pode ser entendido apenas pelo seu caráter quantitativo – quantos votos representam, qual o percentual dos votos contabilizados esta população representa. É necessário entender, principalmente, o papel das mulheres negras, nessa corrida, nessa força de mobilização”, afirma Viviane Gonçalves, doutora em Ciência Política pela UnB e pesquisadora da Rede de Pesquisas em Feminismos e Política e do Grupo de Pesquisa em Democracia e Justiça da UFMG.

“Apesar de a população negra dos Estados Unidos ser bem menor percentualmente do que a do Brasil (lá, não chega a 15%, e, aqui, no Brasil, representamos mais de 50%), precisamos considerar que as mulheres negras não apenas agora se mobilizam. Mas a mobilização para a participação na política institucional acontece de forma mais evidente neste momento”, explica Gonçalves, que também é membro do Comitê de Relações Raciais da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs).

Violência policial e Black Lives Matter na Geórgia

Em 48 dos 50 estados dos EUA, o candidato à Presidência com maior votação leva todos os delegados com direito à voto no colégio eleitoral. Na Geórgia, eles são 16 dos 538. Desde Bill Clinton, em 1992, o estado não entrega a maioria dos seus votos a um democrata.

Caso a apuração confirme Joe Biden, isso se deve a ativistas encabeçados por Stacey Abrams. Chamar a virada de “fraude” e de resultado da ação de cidadãos “corruptos”, como tem feito Trump, mais do que uma mentira é um ultraje ao trabalho dessas pessoas.

Apesar da Geórgia ter uma maioria de habitantes brancos, a populosa área de Atlanta e seus subúrbios tem uma grande presença negra. E é essa área a principal responsável pelos votos recebidos pelo candidato democrata.

Protestos sob o lema Black Lives Matter [Vidas Negras Importam] retornaram aos EUA após o assassinato, por asfixia, de George Floyd, um homem negro, em Mineápolis, em maio deste ano, por um policial branco.

Em junho, outro policial branco matou com um tiro o homem negro Rayshard Brooks, de 27 anos, no estacionamento de uma lanchonete, em Atlanta, o que gerou manifestações em toda Geórgia.

Trump, que se dedicou a combater movimentos antifascistas, mas não supremacistas brancos, foi duramente criticado ao evitar repudiar a atuação desses grupos no primeiro debate presidencial na TV. Isso ajudou a empurrar ainda mais eleitores contra ele.

“Stacey Abrams é a cara do movimento negro americano que compreendeu que a luta por seus direitos passa pela política. Seu trabalho passa por organizar o movimento e lutar contra a supressão de votos dos negros”, afirma Pedro Abramovay, doutor em ciência política pela UERJ e diretor para a América Latina da Open Society Foundations.

“Ela deveria ter sido eleita governadora e não foi justamente pela restrição aos votos dos negros. Continuou sua batalha e hoje os negros da Geórgia foram fundamentais para impedir que um racista continue como presidente dos EUA.”

Em sua conta no Twitter, Abrams tentou acalmar os eleitores, na quarta (4), neste momento de indefinição. Afirmou que os votos estão sendo contados e Trump está perdendo, por isso, tenta se coroar vencedor.

“Os eleitores escolhem o futuro. Lutamos por eleições mais justas e está funcionando. Esperávamos tudo isso. Agora vem a parte difícil: espere e não entre em pânico. Podemos ver o caminho para a vitória indo de Norte a Sul. Conseguimos, pessoal.”

 

Fonte: Por Leonardo Sakamoto, UOL
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