“Parecia que tinham prendido o Marcola”, disse, em entrevista ao jornal O Globo, em 2015, o mecânico Francisco Benedito de Souza ao lembrar a punição recebida por ser flagrado, em uma cela do Centro de Detenção Provisória de Diadema (SP), com 3 gramas de maconha.
O flagrante, ocorrido cinco anos antes, rendeu a ele um castigo (30 dias sem visita ou banho de sol) e um processo que o condenou a cumprir dois meses de serviço comunitário.
Embora leve, a Defensoria entrou com recurso para reverter a pena, que foi mantida em instâncias superiores até chegar ao STF (Supremo Tribunal Federal) em 2015. A análise do recurso foi interrompida naquele mesmo ano, a pedido do então ministro Teori Zavascki. Só seria retomado em 2018, quando Alexandre de Moraes assumiu a vaga de Zavascki na Corte, mas foi retirado da pauta pouco depois.
Após cinco anos e muitas prisões e mortes provocadas pela chamada guerra às drogas, o caso voltou à pauta do STF, que finalmente tem a chance de começar a rever a efetividade de um dos grandes portões do encarceramento em massa do país. Um portão aberto pela Lei de Drogas, de 2006, que aumentou a proporção de pessoas presas por tráfico no Brasil sem definir claramente quem são os usuários e quem são seus negociantes.
O nó estava em um artigo da lei que considera crime “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”.
Na quarta-feira (2), o ministro Alexandre de Moraes votou a favor da descriminalização da maconha para uso pessoal com um discurso de que essa lei provocou aumento no encarceramento e só fortaleceu as facções criminosas. Essa tipificação é feita, na prática, toda vez que se define que traficantes são pessoas jovens, negras e sem escolaridade.
“O branco precisa estar com 80% a mais de maconha do que o preto e pardo para ser considerado traficante. Para um analfabeto, por volta dos 18 anos, preto ou pardo, a chance de ele, com uma quantidade ínfima, ser considerado traficante é muito grande”, disse o ministro, com base em um estudo da Associação Brasileira de Jurimetria que analisou mais de 1,2 milhão de apreensões policiais no país. “Já o branco, com mais de 30 anos, com curso superior, precisa ter muita droga no momento para ser considerado traficante.”
Com o voto de Moraes, que num passado recente posou como justiceiro ao se deixar filmar cortando pés de maconha em uma plantação, o Supremo tem agora 4 votos a favor da descriminalização da droga.
Em sua manifestação, o ministro sugeriu que, a partir de agora, seja presumido usuário “quem adquirir, guardar, tiver em depósito ou trazer consigo de 25 a 60 gramas de maconha ou seis plantas fêmeas”.
O julgamento foi suspenso por Gilmar Mendes, que pretende rediscutir as quantidades e os critérios objetivos para separar usuários e traficantes. Espera-se que não demore mais oito anos para ser retomado.
Para o historiador Dudu Ribeiro, cofundador da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, “é fundamental que essa discussão, centrada na questão da maconha, sirva para iniciar um processo de desmonte da lógica da guerra às drogas que tem sequestrado o orçamento público e produzido encarceramento em massa das comunidades negras e periféricas”.
A associação defende que não se pode pensar em um processo de legalização que diga “a partir daqui está legalizado e o que aconteceu antes está tudo certo”.
A preocupação com o momento de superação da guerra às drogas, cuja votação no STF é só uma ponta de um longo processo, é não repetir erros do passado, como aconteceu ao fim da Abolição da Escravatura, segundo a entidade.
Ribeira afirma que, além da descriminalização, é importante apontar caminhos e reparações tanto para as vítimas diretas dessa guerra e seus familiares como para os danos coletivos às comunidades afetadas pela ocupação sistemática de uma lógica de violência estatal.
“As chacinas promovidas pelo Estado nas comunidades periféricas afetam toda uma coletividade em diversos sentidos, inclusive do ponto de vista da saúde mental. Afetam a circulação de serviços públicos, o acesso a escolas e postos de saúde.”
Para o historiador, o STF ainda mantém um receio problemático de discutir o conjunto dos efeitos causados pela lógica criminalizadora do combate às drogas.
Ele lembra que um dos caminhos para a reparação é a reconstituição de uma ideia de memória, justiça e verdade para identificar responsabilidades do Estado e a composição de políticas de não-repetição. “É preciso pensar também em políticas afirmativas que não permitam que a regulação de drogas hoje ilícitas sirvam como commodities que ampliem as disparidades sociorraciais já existentes e reforçadas pela lógica das guerra as drogas.”
Para a socióloga Nathália Oliveira, cofundadora do coletivo, a decisão do STF, se confirmada, leva a uma questão imediata sobre a anistia de pessoas presas com quantidades agora reconhecidas como legais de maconha. “É algo a ser discutido com todos os atores envolvidos. O voto do ministro Alexandre de Moraes, apontando o quanto é desproporcional o aprisionamento por tráfico entre sujeitos de baixa escolaridade, negros e pobres, mostra que existe uma disparidade a ser corrigida.”
Para ela, o voto é importante por ter se baseado em estudos e pesquisas, mas “é sempre tarde para rever o racismo de modo geral”. “É positivo que o Judiciário esteja incorporando a crítica que fazemos há anos à guerra às drogas e perceba o quanto ela é racista. A fala dos ministros reconhecendo essa injustiça é positiva, mas deixa o restante das decisões, como as reparações históricas, no colo de outros poderes. É um caminho ainda a ser percorrido.”