‘O vendido’, ácido romance do americano, venceu o Man Booker Prize
Por LEONARDO CAZES, do O Globo
SC O escritor americano Paul Beatty, um dos convidados da Flip 2017 – Hannah Assouline / Divulgação / HANNAH ASSOULINE
“Eu”, o protagonista do romance “O vendido” (Todavia), do escritor americano Paul Beatty, assim se apresenta no início da história: “sendo otimista, sou um agricultor de subsistência, mas, três ou quatro vezes por ano, engato um cavalo numa carroça e troto por Dickens, vendendo minhas mercadorias”. As mercadorias a que ele se refere são melancias quadradas e maconha. Dickens é um imaginário subúrbio pobre e meio rural de Los Angeles, na Califórnia.
Já Eu é um jovem negro que escolheu estudar zoologia com o sonho de “transformar a fazenda do pai em um viveiro para vender avestruzes aos rappers que tocavam loucamente nas rádios do início dos anos 1990, aos estreantes mais disputados da NBA e a coadjuvantes de filmes de grande bilheteria”. O personagem, que teve o pai assassinado por policiais, vai parar na Suprema Corte americana por reintroduzir a escravidão e a segregação racial na sua cidade.
— Minha esposa falou uma frase muito boa quando eu estava escrevendo o livro: “o inimaginável acontece o tempo todo” — afirma Beatty, em entrevista ao GLOBO por telefone, de Nova York, onde vive, dando uma pista para decifrar a obra que venceu o Man Booker Prize no ano passado. “O vendido” é o primeiro romance lançado no Brasil do escritor, que é um dos convidados da 15ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Beatty participa da mesa “O grande romance americano” ao lado do jamaicano Marlon James, no dia 29.
Na história que criou, o real e o absurdo se retroalimentam. Eu, por exemplo, teve uma infância atormentada pelo pai, um psicólogo que utilizou o filho como cobaia dos mais diversos — e perversos — experimentos cognitivos e criou o círculo de intelectuais negros de Dickens, que se reunia numa loja de donuts nas tardes de domingo. Hominy Jenkins, que voluntariamente se torna o primeiro escravo de Eu, é um ator idoso e decadente cuja maior glória foi ser o primeiro reserva do elenco do seriado de TV “Os batutinhas”, entre as décadas de 1950 e 1960, sem nunca ter tido a chance de fazer o papel principal.
HUMANOS E SURREAIS
Esses personagens, ao mesmo tempo muito humanos e um tanto absurdos, materializam o questionamento de Beatty sobre a percepção e a maneira como vemos o mundo. Em “O vendido”, situações grotescas, comentários preconceituosos e gestos violentos são narrados no mesmo tom de absoluta normalidade e com um humor que deixa o leitor desconfortável: “Talvez seja a iluminação discreta, ou a decoração brilhante, cujo esquema de cores é projetado para ser um emblema de um donut granulado multicolorido. Seja como for, meu pai reconheceu que a loja era o único lugar de Dickens onde os negros sabiam como agir”, narra Eu. Formado em Psicologia, o escritor reconhece a influência da disciplina no romance.
— Eu aprendi muito estudando psicologia, aprendi sobre a maneira como eu vejo o mundo, como eu vejo as pessoas e, nesse sentido, a psicologia ajuda muito a minha escrita. No caso da percepção, a psicologia se debruça sobre o que você acha que está acontecendo quando algo está acontecendo, sobre o que você acha que sente quando você sente. Há muita liberdade para interpretação ali — afirma.
A Dickens de Beatty não é um cenário pós-apocalíptico tão em voga em certa literatura recente. A ideia para um subúrbio rural californiano surgiu durante uma visita do escritor à cidade de Compton, no sul de Los Angeles. Beatty, que nasceu na região, se surpreendeu ao ver pessoas andando a cavalo e, em conversas, descobriu que há estudantes da região que compram leite não nos mercados, mas dos seus vizinhos. Ele chama a atenção para um passado ainda presente, mas esquecido.
— É estranho, na Califórnia ainda permanece uma certa iconografia western nos arredores de cidades como Los Angeles. Daí comecei a pensar sobre isso e me deixei levar para esse legado cultural da agricultura na região. Não há fazendas lá, mas há todo esse antigo contexto histórico que fica perdido e você nem sempre percebe.
Capa do livro “O vendido” de Paul Beatty (Todavia) – Divulgação
ENTREVISTADO ARREDIO
Antes de vencer o prestigiado Man Booker Prize com o romance, no ano passado, Beatty enfrentou muitas dificuldades para publicar “O vendido” no Reino Unido. Ele foi recusado por nada menos do que 18 editoras diferentes até fechar com a independente Oneworld — curiosamente, a mesma casa que publicou “Uma breve história de sete assassinatos”, de Marlon James, vencedor do mesmo prêmio em 2015 e seu companheiro de mesa na Flip.
O enorme assédio da imprensa após o prêmio britânico rendeu a fama de entrevistado difícil para Beatty. Ao tratar de temas candentes na sociedade americana — racismo, desigualdade, violência policial e justiça —, não raro seu romance foi lido como um manifesto sobre o momento presente dos Estados Unidos, ainda antes da eleição de Donald Trump. O escritor fica incomodado com essa interpretação e não vê o livro como uma crítica à sociedade americana. Na sua opinião, se há alguma crítica no romance, a crítica é à maneira como nós lemos e pensamos sobre nós mesmos.
— É muito louco como as pessoas leem hoje em dia — aponta Beatty, que com “O vendido” só pretendia fazer uma ficção que fosse, nas suas palavras, “única”. — Ao falar com todos esses jornalistas, eu percebi que, muitas vezes, eles têm uma estranha agenda política na qual querem encaixar o livro e me encaixar também. Isso apenas para afirmar a maneira como eles acham que eu vejo o mundo, eu vejo o Brasil, esse tipo de coisa. Isso é tão cansativo e falso, ao menos vindo de mim. Não tenho nenhum interesse em fazer isso.
Essa confusão entre narrador e autor não é à toa. A obra é recheada de comentários políticos. Em certa passagem do romance, o protagonista Eu afirma: “Como no caso do presidente negro, você acha que, depois de dois mandatos vendo um camarada de terno fazer o discurso do Estado da União, vai se acostumar com uma melancia quadrada, mas por alguma razão isso não acontece nunca”. Perguntado se ele concordava com o seu protagonista, Beatty criticou a maneira como os dois mandatos de Barack Obama foram encarados por muitos americanos.
— Nós agimos como se tudo fosse tão novo o tempo todo. No caso de um presidente negro, agimos como se fosse uma supernova. Uma supernova leva bilhões e bilhões de anos. Novamente, estamos falando de percepção. Em literatura, é a mesma coisa. Estava lendo uma peça antiga de Aristófanes, de 2,5 mil anos atrás, e ele já questionava o que era literatura. Essa passagem no livro é sobre isso — afirma ele.
Contudo, ligar a televisão e ver Donald Trump como presidente dos Estados Unidos tampouco tem sido uma experiência banal:
— A cada vez que eu vejo Trump na televisão eu penso: não acredito que esse cara virou presidente. Não sei se daqui a alguns anos vou continuar chocado. Ele não é o primeiro idiota a ser presidente, mas é um tipo único de idiota. A questão que se coloca é quando e como nós nos acostumamos com certas coisas. E por que nos recusamos a nos acostumar com outras.