Audiência Pública Mario Theodoro

Mário Lisboa Theodoro, Diretor de Cooperação e Desenvolvimento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.

AUDIÊNCIA PÚBLICA ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 186 RECURSO EXTRAORDINÁRIO 597.285 O SENHOR MÁRIO LISBOA THEODORO (DIRETOR DE COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO DO INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA)

 

– Bom-dia, Senhor Ministro Ricardo Lewandowski, Doutora Deborah Duprat e colegas de mesa. É uma honra muito grande estarmos aqui em nome do IPEA para essa audiência sobre desigualdade racial e políticas públicas no Brasil.

 

Eu gostaria de começar – não tenho muito tempo – falando dos estudos que o IPEA tem feito sobre essa ideia de desigualdade racial. Na verdade, há dez anos, a partir de Durban, o IPEA foi convidado a fazer estudos sobre a questão racial no Brasil, e o que nós percebemosfoi que,  incrivelmente, um assunto tão importante, se tinha muitos poucos estudos sobre a questão.

Então, nos deparamos inicialmente com dados, números, sobre a desigualdade racial no Brasil, que são números contundentes. Por exemplo: um trabalhador negro ganha em média metade do que um trabalhador branco ganha; o percentual de negros abaixo da linha de indigência é duas
vezes e meia maior do que o percentual de brancos; a população negra pobre é quase setenta por cento dos pobres; a população negra indigente é setenta e um por cento do  total de indigentes neste País. Essa desigualdade também pode ser mostrada por outros números, os números sobre a questão do estudo. Já foi falado aqui pela secretária Maria Paula sobre a diferença entre população negra e branca, mas eu gostaria de ressaltar principalmente o último dado que nós temos sobre crianças fora da escola de sete a quatorze anos. De um total de quinhentas e setenta e uma mil
crianças, sessenta e dois por cento são crianças negras.

 

Isso tudo nos mostra dados iniciais, mas nos ressalta principalmente que há uma renitente estabilidade entre essa desigualdade, não é um retrato apenas no dia de hoje, mas é alguma coisa histórica e que se reproduz daqui para frente. As desigualdades raciais no Brasil não são apenas expressivas e disseminadas, como também são persistentes ao longo do tempo, e essa é a nossa tragédia, Ministro. As desigualdades raciais continuam se reproduzindo a cada geração, mantendo uma significativa e perversa estabilidade e dando ao Brasil, a despeito de sua
pujança econômica, o título de País mais desigual das Américas, infelizmente. Essa desigualdade continua mesmo com o crescimento econômico; mesmo com performances econômicas bastante significativas. Esse é o grande desafio que me parece ser colocado.

Aqui nesse quadro, nós vemos, como foi no caso da educação, a trajetória da desigualdade e da pobreza. Então, nós vemos, na linha azul acima, os pobres negros. O que nós vemos é que continua a existir uma diferença significativa entre negros pobres e brancos. Eu gostaria de mostrar também que disso tudo – eu não vou me alongar nesses dados, pois já foram falados aqui – duas coisas me parecem importantes: primeiro, qualquer que seja a variável que peguemos, sempre a situação do negro é de inferioridade em relação ao branco, qualquer que seja a variável, e uma inferioridade significativa.

Então, os estudos do IPEA apontam para algumas conclusões. E aí chamo a atenção, porque o IPEA é uma instituição que tem atualmente mais de trezentos pesquisadores, em várias áreas, e é uma instituição muito plural, que tem opiniões diversas – o que dá riqueza à nossa instituição -, sobre vários assuntos. Mas, impressionante como no caso da questão racial, nós não temos, dentro da instituição, palavras diferentes das que estamos mostrando aqui, ou seja, existe um certo consenso, mesmo dentro dos ambientes de maior dissenso de visões, de que esta é uma questão premente e os estudos apontam, por exemplo, duas coisas, a meu ver, importantes: primeiro, a consistência do sistema de classificação de cores, ou seja, o sistema adotado atualmente é consistente estatisticamente, não é uma questão de modismo se falar de negros e brancos, mas são dois grupos que, por suas características, são estatisticamente consistentes, e isso nos mostra que deve haver um tratamento desigual  para, enfim, os grupos atingirem a igualdade.

 

Outra questão que o estudo nos mostra, Ministro, senhoras e senhores, é que essa dimensão não pode ser explicada unicamente por efeitos inerciais. Existe uma história, claro, nós temos a história de quase quatro séculos da escravidão, mas essas diferenças atuais entre negros e brancos é dada também por condições históricas e condições vigentes atualmente. Parte significativa das desigualdades existentes hoje decorrem de mecanismos relativos à questão racial, barreiras sociais, que operam na sociedade brasileira, produzindo tratamentos desiguais.

 

Tem uma outra pesquisa no IPEA que mostra o seguinte: quando controlamos todas as variáveis, ainda assim, em termos de renda, os negros  recebem de quarenta a cinquenta por cento a menos que os brancos, isso controlando educação, educação dos pais, nível de renda, etc. Ou seja, existe um fenômeno, que é o fenômeno da discriminação racial, que, numa parte significativa, explica a nossa desigualdade. Então, o Brasil obteve um grande avanço com a Carta Constitucional. A Carta Magna proporcionou instrumentos de políticas sociais, de universalização, que são muito importantes e que marcam a vida deste País, entretanto, alguns estudos mostram, em que pese a melhoria do acesso aos serviços públicos em geral, que a população negra encontra-se em desvantagem. Vamos dar alguns exemplos: os estudantes negros, sejam homens ou mulheres, encontram-se em desvantagem em relação aos seus colegas brancos em todas as séries e níveis de ensino, conforme mostrado aqui pela  secretária.

 

No caso dos matriculados no ensino fundamental, os alunos negros são menos estimulados e sofrem mais discriminação nas escolas, o que é mostrado por vários estudos. As professoras não têm tido o mesmo tipo de preocupação, de estímulo com os alunos negros que têm com os alunos brancos. No caso da saúde. A razão de mortalidade materna na mulher negra é quase três vezes maior do que a razão para as mulheres brancas, mesmo depois de implantado o Sistema Único de Saúde, a universalização da saúde.

 

Entre as gestantes, as mulheres negras têm  em média um número menor de consultas e um número maior de não realização de pré-natal; os jovens negros são mais assediados pela polícia, o que significa dizer que as políticas universais, embora importantes, não conseguem enfrentar essa desigualdade proveniente da discriminação. A discriminação é um fenômeno social ativo no Brasil e precisa ser enfrentado. Está sempre  presente no quotidiano brasileiro e estreitando as oportunidades, ou seja, o que nós queremos dizer é que a discriminação racial reforça os padrões de exclusão da sociedade brasileira, e é um obstáculo à ascensão social da população negra à maior integração da sociedade nacional. Ela impede,  essa discriminação, o exercício da desigualdade.

 

Temos, então, um problema, além do problema da desigualdade clássica dos países ditos desenvolvidos, que enfrentaram com sucesso a partir  das políticas universais. A nossa desigualdade é centralizada pela questão racial. A questão racial naturaliza a desigualdade; a questão racial naturaliza o fato de que pessoas, por terem determinada cor na pele, é natural que não tenham abrigo, é natural que peçam esmolas, é  naturalizado isso na sociedade, e isso deve ser mudado. E a única forma que nós pensamos que pode se mudar é a partir de políticas complementares às políticas universais.

 

As políticas complementares são políticas de nova geração, políticas que nós chamamos de ação afirmativa. São essas políticas que vão fazer com que as professoras valorizem mais a criança negra, os hospitais passem a ter um atendimento igual, embora, formalmente, o acesso seja igualitário, na hora do atendimento o racismo institucional, o preconceito que é colocado pelos próprios atendentes e funcionários, ele coloca barreiras. Então, as políticas de ação afirmativa são políticas de valorização da igualdade entre negros e brancos. Entre essas políticas, uma que é a mais presente hoje é a questão da ação afirmativa, a questão das cotas no ensino superior – desculpe – elas são a ponta de lança das ações afirmativas no Brasil, são feitas a partir das universidades e constituem o principal mecanismo de equalização de oportunidades, nessa sociedade nossa que convive com preconceito e discriminação racial em diferentes instâncias. O que tem significado essas políticas nos últimos dez anos? Elas têm significado a abertura de portas para um contingente significativo de estudantes negros que, se não houvesse programa de cotas, não teriam acesso à universidade.

 

E nesse caso, falando especificamente das universidades públicas, o IPEA fez um cálculo de que, até hoje, foram cinquenta e dois mil estudantes negros beneficiados com as cotas, o que significa que teremos cinquenta e dois mil profissionais que vão disputar em igualdade de condições com outros profissionais os melhores postos de trabalho dessa nossa sociedade. Significa dizer, então, que estamos tentando equalizar, a partir de  algumas iniciativas que são complementares às políticas universais.

 

Não existe uma dicotomia, não existe uma divergência entre universalismo e focalização nesse caso, mas, ao contrário, as políticas universais no Brasil só vão fazer sentido pleno, só vão ser eficientes se forem complementadas por ações de valorização, e uma delas é a questão das cotas.

 

Eu gostaria, antes de encerrar, de fazer um breve comentário sobre a questão das cotas na universidade, no seguinte sentido: cotas sempre foram e vão ser para entrar na universidade, ninguém sai da universidade por cotas. A cota é simplesmente um mecanismo que pode equalizar uma situação de portas fechadas, para um conjunto significativo de pessoas brasileiras. Hoje, as pessoas brasileiras negras têm mais portas fechadas,  oportunidades fechadas, do que a população de origem branca. Então, as cotas viriam, na verdade, abrir portas para que consigamos equalizar oportunidades, consigamos fazer com que a máxima de igualdade, que está presente na Constituição como um dos preceitos fundamentais, seja,  enfim, contemplada a partir de uma questão que é posta para a gente.

 

Nós do IPEA, finalizando, temos muito orgulho de ter trabalhado essa questão racial nos últimos anos, e nos chamou atenção duas coisas: a  primeira, quando os primeiros dados apareceram, nós pensamos que a questão racial ia ser colocada para discussão na sociedade, mas não foi, houve um silêncio da sociedade. E esse silêncio nos mostra que a questão racial no Brasil ainda é uma questão de discriminação e preconceito  presente em toda a sociedade. E o Estado tem uma função importante de trazer essa discussão à tona, de fazer mudar essa visão e, principalmente, de fazer com que a sociedade se veja como uma sociedade de iguais. E assim a gente consiga, de fato, ter uma democracia neste País.

Muito obrigado. Era isso que eu tinha a falar.

Fonte: STF

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