Audre Lorde, feminista negra, revela racismo que cobra perfeição

No novo livro 'Zami: Uma Nova Grafia do Meu Nome', autora reflete sobre vida de mulheres em luta contra violência racial

FONTEFolha de São Paulo, por Djamila Ribeiro
Djamila Ribeiro é mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais. (Foto- Marcos Alves)

“Quando eu era criança, a situação mais horrível que podia imaginar era fazer algo errado e ser descoberta. Erros poderiam significar exposição, talvez até aniquilação. Na casa da minha mãe, não havia espaço para cometer erros, não havia espaço para estar errada.”

Com esse excerto um tanto doloroso, a escritora e poeta Audre Lorde inicia o oitavo capítulo de “Zami: Uma Nova Grafia do Meu Nome”, uma biomitografia, livro publicado originalmente em 1982 e que ganhou edição brasileira em 2020.

Na obra, contando recordações de sua vida até os 23 anos, misturando com ficção (biomitografia), a poeta traz reflexões tocantes sobre crescer uma mulher negra e as imagens de controle que são impostas para a população negra, como a de não poder errar.

Ilustração publicada em 17 de março – Linoca Souza

A feminista negra bell hooks, que morreu recentemente, refletia sobre o fato de a escravidão ter moldado as relações familiares de pessoas negras. Em uma época em que desobedecer ao poder instituído era punido com agressões e morte, o medo foi instituído como forma de controle social. Meninos negros foram linchados até a morte nos Estados Unidos por supostamente terem olhado para meninas brancas, mulheres negras foram humilhadas por se recusarem a situações vis.

Meus irmãos sempre foram instruídos a nunca encarar um policial, a baixar a cabeça e responder “sim, senhor” e jamais podiam sair sem documentos. Lembro uma cena do filme “Histórias Cruzadas” em que a personagem de Octavia Spencer, ao instruir a filha sobre o trabalho doméstico que exerceria, diz: “Não seja insolente”. A mãe sabia o peço que a filha pagaria caso julgassem que ela não era servil o suficiente.

Trata-se de uma realidade comum na vida das pessoas negras. Como escrevo em meu livro “Cartas para Minha Avó”: ser uma criança negra é ser brutalizada o bastante para lidar com a brutalidade do mundo. Essa cobrança por perfeição, mais uma imposição do racismo, cerceia a vida e desumaniza, pois somos forçadas a negar as complexidades de ser humano, com todas as suas contradições.

A gente cresce com nossas mães quase esfoliando as nossas peles com bucha vegetal para confrontar o estereótipo de que somos sujas. Somos proibidas de certas traquinagens porque a resposta a elas pode ser violenta. Crescemos escutando que precisamos ser cinco vezes melhor do que os outros porque somos negras.

Esse “não poder errar” traz muitas dores e adoecimentos, ou como minha mãe dizia: “Antes eu bater do que a polícia. O mundo não vai ensinar com amor”. E como culpá-la por falar a verdade? Como encontrar saídas em uma situação de beco sem saída? Uma situação da qual ela mesma foi vítima?

E, dentro desses limites impostos, a negação de si e o medo viram companhias constantes. Em um mundo no qual homens adultos são tratados como meninos para justificarem seus erros, ou em que o corporativismo branco está sempre a postos para dar segundas chances, sobram a desesperança e uma vida controlada por mãos que condenam.

“Cresci negra junto da minha necessidade de vida, de afirmação, de amor, de partilha —reproduzindo da minha mãe o que havia dentro dela, irrealizado”, escreve Lorde. Uma necessidade quase visceral de atenção em uma vida que não nos olha pelas lentes do amor.

Muitas amigas minhas aceitavam migalhas de atenção por medo da fome mesmo quando a escassez era regra. Ligações somente de madrugada, nunca sendo assumidas como companheiras, procuradas na escuridão da satisfação de um desejo. Mas nada era prolongado, ou feito à luz do dia de mãos dadas.

Não as julgava, ao contrário, sentia compaixão. Quem foi criada para não receber amor às vezes se satisfaz com chuviscos ou com a ideia do que poderia ser. É um longo caminho para quebrar o espelho de imagens distorcidas, como afirma Lorde, porque muitas vezes a gente nem consegue perceber a ilusão do que é refletido.

“Na escuridão, eu me deito ao lado das minhas irmãs, que passam por mim pela rua, desconhecidas e desprezadas. Quanto disso é a farsa de autorrejeição que se transformou numa irremovível máscara de proteção? Quanto é o ódio programado com que fomos alimentadas para nos mantermos separadas, à parte?”, questiona Audre Lorde, apontando para um caminho possível de transcendência, pois identificar a rejeição e os ódios impostos pode vir a ser um antídoto contra essa régua de desumanidade.

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