Autores trans derrubam estereótipos e mostram outra realidade para além do preconceito

Ex-prostituta e doutora em Letras na Unicamp, Amara Moira foi uma das atrações da última Bienal do Livro do Rio, em 2019 Foto: Léo Martins / Agência O GLOBO

Entenda o que é a literatura trans e por que ela ganha força nas livrarias e universidades

Por Bolívar Torres, do O Globo

Ex-prostituta e doutora em Letras na Unicamp, Amara Moira foi uma das atrações da última Bienal do Livro do Rio, em 2019 Foto: Léo Martins / Agência O GLOBO

Quase 40 anos separam a publicação de “Eu Ruddy”, da poeta Ruddy Pinho, considerado por muitos o primeiro livro de autoria trans publicado no país, de “Cartas pra Pepita”, da youtuber e escritora Mulher Pepita, lançado no fim de 2019. Nesse meio tempo, muita coisa mudou na produção da literatura trans — ou seja, qualquer obra escrita por uma pessoa que se identifica com um gênero diferente do que lhe foi atribuído quando nasceu.

O que costumava ser uma raridade no mercado tornou-se uma faceta editorial. Nos últimos dez anos, a produção explodiu: foram 57 obras publicadas nos anos 2010, contra apenas duas nos 2000 e seis na década de 1990, segundo levantamento da pesquisadora e escritora trans Amara Moira. A pujança também se reflete na diversidade de gêneros. A lista vai de livros de poesia a romances, passando por autobiografias e histórias em quadrinhos. No entanto, trazem em comum temas como identidade e representatividade, que também norteiam o Dia Nacional da Visibilidade Trans no Brasil. Estabelecida em 2004, a data será comemorada na quarta-feira, dia 29.

Desde 2018, Amara é doutora em Letras pela Unicamp. Os espaços “nunca sonhados” aos quais ela se refere não incluem apenas o mundo acadêmico, mas também grandes eventos culturais, como a mais recente Bienal Internacional do Livro do Rio. Em setembro último, ela e outras personalidades trans, como Luisa Marilac, Tarso Brant e Mulher Pepita participaram da primeira mesa sobre a temática em toda a história do evento. A atração foi marcante para a comunidade LGBT. O encontro lotou o palco da Arena#SemFiltro, um dos espaços de debates da Bienal, mobilizando uma caravana com gente de diversos cantos do estado para assisti-lo. Na plateia, algumas pessoas choravam ao se verem representadas no palco.

Poemas de amor

O crescimento dessa produção acompanha o avanço de pautas LGBT na sociedade, que pode ser visto em outras áreas, como o cinema e as artes plásticas, e também no campo acadêmico. A cena literária, porém, tem suas peculiaridades. Tanto entre os nomes mais pop que lotam mesas, como Amara, Pepita e Marilac, quanto nos saraus que atraem autores ainda não publicados, a escrita pode ser especialmente confessional.

— A literatura ajuda a romper os estereótipos que acompanham a nossa existência, e que são um dos expedientes de interdição da nossa cidadania — diz a pesquisadora Danieli Christovão Balbi, autora do prefácio da antologia de ensaios “Transliteraturas: expressões literárias de gênero”. — É importante que possamos falar sobre nós mesmos para que o outro não nos enquadre.

Nesse sentido, um simples poema de amor pode botar abaixo muitas visões equivocadas sobre a comunidade. Com os versos do seu “Das águas do Rio Acre”, por exemplo, Kika Sena, poeta e atriz alagoana radicada em Brasília, quis quebrar dois preconceitos: o de que uma mulher travesti não pode desejar outra mulher; e o de que pessoas trans são, necessariamente, hipersexualizadas.

— Quando escrevo algo romântico me declarando para uma mulher já estou mostrando outra realidade— diz Kika, mestranda em Artes Cênicas na Universidade de Brasília e autora de “Periférica” (2017). — Não preciso falar sobre opressão para expressar nossa existência. A literatura também vai para os lugares comuns do ser humano. Nosso corpo não recebe só opressão, ele também recebe afeto e amor.

O caminho do reconhecimento, porém, ainda é longo. Kika, por exemplo, conta que já foi apedrejada quando se apresentava em um sarau poético, em 2018. Não por acaso, o medo da transfobia é um tema recorrente em especial naqueles textos de cunho autobiográfico.

— São escritas que se estruturam em torno desse trauma, que desde a mais tenra idade opera cruelmente sobre suas vidas — afirma a pesquisadora Leocádia Aparecida Chaves, que estuda autobiografias produzidas por pessoas transgêneras no Brasil contemporâneo.

A poeta e performer trans Kika Sena Foto: Janine Moraes / Divulgação

A vertente confessional, lembra a pesquisadora, é uma das mais comuns entre os escritores, que resgatam suas próprias vivências para revelar a hipocrisia e violência da sociedade. Ruddy Pinho, por exemplo, usava humor e escárnio para trazer à tona aquilo que deveria ser escondido. Já em “E se eu fosse puta”, Amara Moira relembra um certo Domingo de Páscoa em que um cristão veio procurar seus serviços.

— Parte dessa produção tem nascido em diálogo, se não vinculada ao ativismo estético-político identitário LGBT contemporâneo — observa Leocádia, doutoranda na Universidade de Brasília. — É uma produção que, mesmo incipiente, pode ser identificada, ao meu ver, como uma das faces da literatura brasileira.

Nomes para ficar de olho

Amara Moira. Doutora em Letras e autora de “E se eu fosse pura” é hoje uma das principais porta-vozes da literatura trans.

Kika Sena. A atriz e poeta reflete sobre o que chama de “corpos periféricos” em livros como “Marítimo” e “Periférica”.

Ruddy Pinho. Primeira autora trans a ser publicada, a poeta e memorialista descreveu a hipocrisia da sociedade com humor e escárnio.

Tom Lê Grito. Destaque da cena carioca, o slammer representou o Brasil no Rio Poetry Slam, o campeonato mundial de Poesia Falada .

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