Auxílio emergencial sem plano aprofundará desigualdade e afetará jovens 

FONTEPor Maria Carolina Trevisan, de Universa
Manifestantes levam marmitex vazios na avenida Paulista, em São Paulo, durante protesto pela manutenção do auxilio e contra a autonomia do BC (Foto: Danilo Verpa/ Folhapress)

Quando optou por disseminar o falso dilema sobre a escolha entre economia e saúde na pandemia de covid-19, o governo Bolsonaro negligenciou as políticas sociais. O efeito disso é devastador: um ano depois do primeiro diagnóstico de coronavírus no Brasil, 19 milhões de brasileiros enfrentam a fome em seu dia a dia. Atualmente, 116,8 milhões de pessoas não têm acesso pleno e permanente a alimentos, significa que mais da metade da população está submetida a algum nível de insegurança alimentar. É o maior patamar nos últimos 17 anos, segundo a pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional.

A fome é o indicador mais agudo da pobreza mais extrema que existe. Faz com que mães e pais tenham que escolher qual dos filhos alimentar. É degradante e dilacerante. É também inaceitável e incompreensível que um país como o Brasil — que desenvolveu políticas sociais respeitadas internacionalmente, que tem um Sistema Único de Assistência Social complexo e competente — aceite passivamente um quadro como esse.

A cauda longa da pandemia era previsível. A persistência das condições de vulnerabilidade também. A pandemia não vai acabar de uma hora para outra. O pensamento simplista de que um dia amanheceremos sem covid-19, com comércio funcionando e empregos à disposição é irreal, mentiroso, e não passa de ilusão na qual o ministro Paulo Guedes (Economia) parece estar preso. “”Eu espero que em três, quatro meses a gente tenha atingido aquele ponto crítico da imunização de rebanho e que retorno seguro ao trabalho vai acontecer”, disse na segunda (5), em evento para investidores.

A situação atual é muito mais intensa do que há um ano. “As pessoas estão sem nenhuma reserva, sem trabalho informal, a fatalidade aumentou, as famílias perderam suas âncoras”, diz o economista Ricardo Henriques, superintendente-executivo do Instituto Unibanco, especialista em economia social, nas áreas de desigualdade, pobreza, educação, assistência social, direitos humanos, diversidade e desenho e avaliação de políticas públicas.

“Por um lado, se confirma o tamanho da miopia na condução da política social. Uma miopia que tem a ver com a falta de entendimento da intensidade e da dramaticidade da crise, a falta de uma visão humanista, sem sentido de urgência, com atitudes de emergência atabalhoadas”, afirma.

O auxílio emergencial é fundamental para aliviar a pobreza. Mas a ideia de emergência está falseando e encobrindo a responsabilidade pública na qualidade da resposta à crise. O valor atual mais baixo (quatro parcelas de R$ 250, em média), a redução do poder de compra causada pela inflação, o aumento do desemprego, o avanço dos óbitos nas famílias e a falta de um plano transparente a médio e longo prazos deixam sem perspectiva quem vive sob essa insegurança. É perverso e incompatível com um Estado como o brasileiro. Prende as pessoas à angústia, ao medo e as joga na incerteza, provocando, por exemplo, uma evasão escolar histórica. Um botijão de gás cheio, atualmente, não custa menos que R$ 98. Esse é o mundo real.

A crise social se soma à crise sanitária, econômica e política, e revela outras vulnerabilidades. Para lidar com essa sobreposição de problemas, é necessário buscar respostas articuladas, montar um gabinete de crise com representantes do Executivo dos diferentes ministérios, do Legislativo, de técnicos e da sociedade civil que pudesse medir com acuidade a situação social diariamente, desenhar e implementar com rapidez políticas emergenciais sem improviso, com consistência. O país acumulou competência para isso.

Mas o governo de Jair Bolsonaro opera na destruição. Criou um auxílio emergencial dentro do ministério da Economia, priorizando o viés econômico da política de assistência social, ignorando um dos maiores patrimônios que o Ministério do Desenvolvimento Social possui, que é o Cadastro Único, instrumento criado em 2001 (governo FHC e aprimorado nos governos Lula e Dilma), que coleta informações sobre famílias de baixa renda para acesso às políticas públicas.

Essa base de informações contém detalhes do perfil desses brasileiros e pode ser acessada por municípios e estados para definir a assistência com precisão e evitar ao máximo o sofrimento causado pela pobreza, pobreza extrema e fome. São mais de 100 itens de informações cadastrais, desde as características dos domicílios (água, esgoto, coleta lixo, cômodos) até a composição familiar e de renda, mostra se as crianças e adolescentes estão frequentando a escola, como está saúde das pessoas, o acesso ao mercado de trabalho, entre outros dados. É, portanto, um instrumento importante para gestores.

O ministro da Cidadania, João Roma (Republicanos-BA), disse, em entrevista ao UOL nesta terça (7), que está estudando a ampliação do Bolsa Família, o mais importante programa de transferência de renda e combate à pobreza do país. Quanto tempo precisa para estudar algo que já está estabelecido, é comprovadamente eficaz, tem décadas de história, conhecimento profundo e é exemplo no mundo todo? Esse tem sido o problema principal das iniciativas do governo federal — e do Congresso Nacional — no enfrentamento às questões colocadas pela pandemia: ao não reconhecer a gravidade, tem proposto medidas improvisadas e inconsistentes.

Qual é o conhecimento acumulado pelo monitoramento do auxílio emergencial de 2020? Não há. Não implementamos a política pública com competência. “Se tivéssemos essa visão sóbria de uma política social profissionalizada, saberíamos muito mais do que o geral, conheceríamos a situação específica e poderíamos trabalhar muito melhor com o auxílio em 2021, isso é densidade de política pública”, afirma Henriques. “É o que se espera de uma visão mais estadista de país.” Agora, sem a realização do Censo por conta do corte orçamentário de 96%, o país vai operar na escuridão, sem conhecer a população que sobreviveu à pandemia. Sujeitos ao populismo barato.

Para aliviar a pobreza, seria fundamental definir uma previsibilidade para as famílias que estão em situação extrema, de radical fragilidade. Quatro meses não bastam. “Precisava ter um prazo estendido, as pessoas precisam ter alguma segurança de que o Estado está comprometido em termos da sua responsabilidade pública com a garantia do alívio de pobreza, com uma renda mínima até o final do ano.” Isso faria possível calibrar valores para planejar, por exemplo, quando comprar o botijão de gás.

Saídas para a crise social

Quando finalmente a pandemia arrefecer e pudermos voltar a uma certa normalidade, a recuperação se dará para todos, mas o retorno dos mais vulneráveis será mais lento. Sabendo disso e conscientes de que o perfil da pobreza será mais punitivo para os jovens — porque eles estão encarregados da responsabilidade familiar de conduzir a casa — é imperativo que se trabalhe hoje sobre um desenho de política para além da transferência de renda, para a proteção desses jovens.

Esse diálogo é também responsabilidade do Ministério da Educação (MEC), que até o momento mais tumultuou que pensou na crise. Para Ricardo Henriques, falta também “uma visão profissional da política educacional, econômica e social”. “Falta a altivez para lidar com a crise e criar caminhos de construção com a sociedade, com o Legislativo e Judiciário, viabilizar fontes de financiamento. É trabalhoso mas é totalmente viável.”

Na visão de Henriques, a construção da saída da crise social deve percorrer obrigatoriamente quatro caminhos dentro de um plano estratégico: compreender o sentido urgência da crise, realizar uma recomposição intertemporal de saída (com plano para uma década), ter como centro da estratégia a redução da desigualdade e projetar o processo de crescimento econômico.

O compromisso com a redução da desigualdade tem que ser central no Brasil e no mundo. Não existe crescimento econômico consistente e sustentável sem esse paradigma. É o que nos mostra — todos os dias — o mergulho na pandemia.

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