A beleza de Lupita Nyong’o e as bananas do Neymar: deslizamentos ou deslocamentos discursivos em torno do racismo?

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“Nenhuma raça possui o monopólio da beleza, da inteligência, da força”.
Aimé Césaire

A irrupção dos fatos

por Rosane da Silva Borges

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Decididamente, as notícias sobre o racismo no Brasil e no mundo vêm inflacionando o menu temático que orienta a cobertura da imprensa e os posts das redes sociais. Desde a infausta notícia da venda de crianças negras no Mercado Livre, em janeiro, uma mostra expressiva do racismo não para de nos interpelar. Enumeremos brevemente parte dela: jovens negros agrilhoados a postes, sistemáticas ofensas racistas nos estádios de futebol, o trágico assassinato de Cláudia da Silva Ferreira e do dançarino do programa “Esquenta”, Douglas Rafael da Silva Pereira, o DG. O espraiamento desses fatos vem impressionando de tal modo, que há quem enxergue na reiteração um forte indicativo de que o racismo vem se agudizando no tecido social brasileiro.

Nesse curso de “achacáveis” notícias, fomos surpreendidos com a escolha, pela revista “People”, de Lupita Nyong’o para assumir o posto de mulher mais bonita do mundo, uma espécie de parêntese na cadência das tristes ocorrências. Um sem-número de fotos da beldade inundou, como um tsunami, as redes sociais. O mundo revelou maiúsculo espanto com o anúncio, que teve repercussão sísmica. Sobrevieram expressões de júbilo, de alegria contagiante, enunciados efusivos, interpelações mal-humoradas eivadas de racismo mal disfarçado, interpretações enviesadas… Nada mais, nada menos, trata-se da primeira mulher negra de pela escura, com traços incontestavelmente negros (cabelo, nariz, boca) a receber o título (ponho em relevo a pele escura e os traços porque Byoncé e Hally Berry compõem a galeria das condecoradas).

Ainda embevecidos com o feito inédito de Lupita, tomamos ciência de que o jogador Daniel Alves, vítima de recidivo racismo nos estádios europeus, que encontra estímulo na certeza da impunidade, comeu uma banana arremessada em sua direção quando jogava, no último 27, pelo Barcelona. A atitude de Daniel Alves, perfeitamente compreensível para o momento, provocou, em um lapso de tempo relativamente curto, a criação da campanha “Somos todos macacos”, com o jogador Neymar Jr. à frente, no papel de garoto-propaganda. A adesão da classe artística foi compacta e a reação de ativistas de combate ao racismo, imediata. Ao “Somos todos macacos” contrapôs-se o “Não somos macacos”.

A essa altura, você, leitor(a) pode estar confabulando: Quais os fios subterrâneos que ligam a escolha da atriz-musa-cineasta-celebridade Lupita Nyong’o para o posto da mais bela do mundo à campanha que se quis solidária a Daniel Alves? Onde os caminhos desses episódios se bifurcam, quais os ângulos de análise que autorizam confluências? Antes de promover aproximações e distâncias entre eles, aos fatos.

Nascida no México, onde o pai lecionava à época de seu nascimento, viveu no Quênia até os 16 anos; retornou para o México para aprender espanhol de onde seguiu para os EUA. Lá, se formou em estudos africanos e cinema no Hampshire College. Foi admitida na renomada escola de teatro de Yale, que conta com ex-alunos como Meryl Streep, Paul Newman, Sigourney Weaver e Elizabeth Banks. Recém-graduada (apenas três semanas), Lupita foi escolhida pelo diretor Steve McQueen para viver Patsey, em “12 anos de escravidão”. Sua atuação magistral granjeou-lhe o Oscar de melhor atriz coadjuvante. Dez anos atrás, trabalhou como assistente de produção de Ralph Fiennes nas filmagens de “O Jardineiro Fiel”, que foram realizadas muito perto de sua casa, em Nairobi.

O desejo de atuar a acompanha a diva desde criança: “Foi quando eu crescia no Quênia. Eu me lembro que era muito pequena quando vi pela primeira vez “A Cor Púrpura”. Talvez eu tivesse 9 anos e foi interessante enxergar mulheres como eu na tela. Oprah e Whoopi Goldberg trabalharam neste filme. Isso me deu a inspiração para pensar que talvez também pudesse fazer aquilo, apesar de saber da realidade do Quênia. Eu não acho que seria capaz de ter uma carreira se ficasse na África”. Nesta passagem, Lupita já nos provê de pistas para avaliarmos como os processos de espelhamentos e referencias são importantes para a afirmação de si.

Os empedernidos, cegos ao drama do racismo no Brasil e no mundo, objetam: mas por que tanto frisson em torno dessa soft news, de um acontecimento que mais interessa ao universo das celebridades, que pactua com as regras do consumo, reforçando-as? Em que isso, afinal, muda a condição socioeconômica de mulheres e homens negros no mundo?

Se optássemos por fazer atalhos na resposta a essas tolas perguntas, poderíamos recorrer ao “cumpade” Washington: “sabe de nada, inocente”. Só mesmo quem não dimensiona a magnitude do racismo é capaz de levantar questionamentos dessa natureza, que revelam profundidade de um pires. É a própria Lupita que fornece linhas de reflexão aos que se arvoram contra o simbolismo do pleito que a elevou à posição de mais bela do mundo. Em tom de desabafo, a atriz falou à revista “People” que nem sempre sentiu-se bonita, pois na infância associava beleza à “pele clara e cabelos lisos”. “Mas a minha mãe sempre disse que eu era linda e em certo momento comecei a acreditar nela”, conta.

Como se sabe, uma das façanhas mais prodigiosas do racismo é justamente alimentar o sentimento de inferioridade de que Lupita se nutria (qualquer semelhança com crianças negras que passaram e passam por situação similar não é mera coincidência). O rebaixamento que o racismo provoca na vítima toca no coração daquilo que constitui a humanidade de cada um: subtrai de mulheres e homens negros, já na tenra idade, a possibilidade de serem parâmetros para sintetizar o universal; interdita corpos negros de se instituírem como ideais culturais. “Nenhuma raça possui o monopólio da beleza, da inteligência, da força”. A frase de Aimé Césaire nos dá a régua e o compasso de como funciona a engrenagem que põe o racismo em funcionamento: determinar, desigualmente, a cota de humanidade de brancos e negros pela operação que designa o belo e o feio, o certo e o errado, o normal e o desviante, quem manda e obedece, os winners e o loosers.

A assunção de uma mulher negra à condição de mais bonita do mundo contém, hipérboles à parte, força expressiva para quebrar o monopólio ao qual se referiu Césaire, para mexer nas entranhas do racismo, naquilo em que ele age eficaz e sorrateiramente. Com a imagem de Lupita estampada nas revistas podemos, virtualmente, instaurar nova lógica nos processos de identificação.

Sem sombra de dúvidas, essa escolha aponta para o elo indissolúvel entre identificação e racismo, binômio essencial para mudança de parâmetro que permite a construção de vínculos, de laços que nos apaziguam na adesão aos ideais culturais. Na sociedade que se rege pelo a-mais-do-olhar, a sociedade escópica, em que fazemos constante uso das imagens para nos instituirmos, Lupita Nyong’o irrompe como um signo importante para a emergência de novos significantes, feito que a campanha “Somos todos macacos” parece não ter estatura para alcançar, como veremos linhas adiante.

Identificação e projeções do eu: Lupita alarga as fronteiras dos ideais culturais
É da Psicanálise que extraímos o substrato que enlaça as identificações ao racismo. O psicanalista Jacques Lacan ensina que os processos de identificação têm como ação fundante o estádio do espelho, que começa aos seis meses de vida e vai até aos dois anos. De acordo com Lacan, a criança não teria, até então, a vivência do seu corpo com uma totalidade, percebendo-o como uma dispersão de partes separadas, por falta de coordenação motora e insuficiência cognitiva para compreender como ela vem ao mundo.

O corpo é um signo que não se encerra somente no biológico, mas o corpo virtual (corpo-imagem), marcado pelo significante (corpo-fala) e habitado pela libido (corpo-gozo). O olho, nosso primeiro aparelho de coordenação do espaço, que começa a percebê-lo, registrá-lo e organizá-lo ‘antecipadamente”, ou seja, desde muito antes que o organismo possa se mobilizar e se deslocar fisicamente nesse campo, já que a organização do olhar precede o gesto e a palavra.

Abreviando vulgarmente, corpo e imagem têm, para Lacan, papel fundador na constituição do eu e na matriz simbólica do sujeito, definindo a identificação, nessa perspectiva, como “a transformação produzida no sujeito quando assume uma imagem”. O renomado pesquisador George Herbert Mead também perfila-se à teoria lacaniana quando afirma que o self não é inato, mas adquirido no processo de comunicação com os outros. À medida que absorvemos as perspectivas dos outros, passamos a nos perceber através dos olhos de terceiros.

Para Mead, uma forma particularmente poderosa pela qual a comunicação molda o self são as profecias autorrealizáveis – expectativas ou julgamentos sobre nós mesmos que concretizamos por meio das nossas ações. Trata-se de “outros significativos” que moldam a forma como vemos a nós mesmos. Esse impacto dos outros sobre nós faz com que aprendamos como eles nos veem e introjetemos as perspectivas deles. O sentimento de Lupita, de que não se perceber como uma pessoa bonita, é um fantástico flagrante dessas profecias autorrealizáveis.

Assumir uma imagem, estar em acordo com essa imagem, que passa por convenções sociais onde está implicada a noção de beleza, é fundamental para o nosso apaziguamento conosco mesmo. A escolha de Lupita tem, assim, um papel primordial na reversão dos processos ruinosos de identificação da população negra. O germe da alteridade desponta aí. Ouvi de muitas mães e pais negros que seus filhos e filhas passaram a ter patente admiração pela atriz majestosa.

Aparentemente desconexos, há algo que aproxima a escolha de Lupita da campanha “Somos todos macacos”. A princípio, a semelhança está no fato de ambos promoverem, pelo menos na intenção, imagens que possam abalar os alicerces do imaginário racista. Vimos que a escolha da “People” alcançou esse objetivo. O gesto de Daniel Alves mostrou-se oportuno, pois como assinalou uma reportagem da Folha de São Paulo (FSP), neutralizou o insulto, desconcertou o agressor e conseguiu, provisoriamente, inverter o sentido do símbolo. Embarcando no gesto de Daniel Alves, a campanha com o dístico “Somos todos macacos” foi exibida à larga com artistas comendo banana.

Articulistas de reconhecimento nacional, jornais de grande circulação, celebridades apressaram-se em validar a campanha. Para a “Folha de São Paulo”, “seria, então, no campos das formas de expressão que o combate se leva a efeito. Gesto contra gesto, solidariedade contra particularismo, ironia contra estupidez: ainda que essa luta jamais tenha fim, é bom que seu lado mais inteligente tenha também as armas mais inteligentes a seu dispor.”

De fato, é no campo das formas de expressão, portanto, no campo discursivo que tanto a escolha de Lupita quanto a famigerada campanha incidem. Ambas habitam o território dos signos, suscitando reflexões nas fronteiras dos significados e dos sentidos ou no atravessamento dessas fronteiras.

Mas, eis o problema que a extensão do gesto do jogador provocou. Como já diz o bom adágio popular, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa: ao transpor a imagem da banana para uma campanha que teve projeção mundial, o problema que se queria combater voltou pela janela, depois de expulso pela porta. O regramento de sentidos que a palavra macaco contém quando associado a pessoas negras não possibilita deslocamentos discursivos capazes de instaurar uma outra história. Como disse a ministra Luiza Bairros, “essa imagem do macaco associada à pessoa negra é uma imagem muito poderosa. E se você assume essa imagem como válida, corre o risco também de reforçar o estereótipo. Eu entendo a campanha e a motivação da campanha, mas não é possível assegurar que ela tenha o sucesso necessário para reverter a representação negativa que a palavra ‘macaco’ tem quando associada à pessoa negra”. O significante macaco carrega os traços que o passado vai acumulando no presente e que nunca chegam a desaparecer. A economia significante nos redireciona para o lugar da desumanização.

O mesmo fio que liga o anúncio da escolha da mulher mais bonita do mundo à campanha “Somos todos macacos” é aquele que, em outra ponta, os mantêm em distância atlântica. Ao escolher uma mulher negra de pele escura como a mais bonita do mundo, a Revista “People” inaugura um discurso que faz frente ao já cristalizado sobre o ideal de beleza; Lupita Nyong’o banha em nova luz o tema das identificações. As imagens da atriz nos diversos suportes de comunicação se mostram como ênfases necessárias para a refundação da história, pois como bem lembrou Paul Ricoeur, toda configuração narrativa culmina em uma refiguração da experiência. Restabelece-se, com a atriz, as fronteiras do humano.

O mesmo pode ser dito em relação à infeliz peça do “Somos todos macacos”? Evidentemente que não. Ainda que bem intencionada, a campanha, nem remotamente, promove o papel restituidor da narrativa. Contrariamente, ao pinçar do prodigioso imaginário imagens que remetem ao macaco, a campanha reenvia homens e mulheres negros a sua condição de animais, destituindo o negro de sua humanidade. A paródia não consegue transpor o cômico que lhe dá suporte. Desprovido de valor de crítica, o anúncio nos enreda no lugar do não-ser, sem oferecer possibilidades de reconstrução de outro tempo discursivo. Podemos dizer que a campanha promove na cadeia significante apenas deslizamentos de signos, sem que eles tenham potência para se deslocar para outros sítios de sentido.

Deslizamentos ou Deslocamentos discursivos?

É, de fato, aos dois estágios de produção e direcionamentos dos discursos (deslizamentos e deslocamentos) que os casos em tela correspondem. Na rede significante na qual tecemos as narrativas, podemos instalar novos modos de funcionamento do imaginário a partir de um deslocamento onde os sentidos ganham lugar. A campanha “Somos todos macacos”, ainda que deslize na cadeia significante, com dissemos, permanece atada aos discursos fundadores que ligam macaco à população negra; são discursos que laboram como referência básica no imaginário constitutivo do racismo. O aparente deslocamento que ela promove sofre injunções à estabilização, bloqueando o movimento significante. “Nesse caso, o sentido não flui o sujeito não se desloca. Ao invés de fazer um lugar para fazer sentido, ele é pego pelos lugares (dizeres) já estabelecidos, num imaginário em que sua memória não reverbera. Estaciona. Só repete”. (Orlandi, 1999, p. 72).

Como é, então, que uma história se instaura a partir de deslocamentos discursivos? É possível construir outra memória narrativa das mulheres negras com a escolha de Lupita Nyong’o? A narração tem a qualidade de transpor um tempo para outro, o que nos conduz a pensar que o tempo discursivo em torno das representações da mulher negra na mídia ainda se vinculam a arquétipos cristalizados no passado. Mas, se como diz Pêcheux, não há ritual sem falhas, é possível a ruptura, a instauração de uma nova ordem de sentidos e o declínio do fixo, imutável, inalterável. A imagem de uma mulher negra estampada na capa de revista como “People” possibilita que aqueles discursos fundadores percam força de sentido em benefício de novos referenciais sobre a mulher negra.

Em Black look, bell hooks sustenta, enfaticamente, que só um novo sistema de representações do negro e da mulher negra poderão livrá-los dos estigmas que os aprisionam em categorias desumanizantes. Alice Walker designa a questão como “prisões de imagens”.

Como já referi em outros momentos, em algumas autoras negras encontram-se chaves de compreensão para o viés redutor em que foram inseridas as mulheres negras. hooks considera que os estereótipos decantados por um imaginário racista e sexista sobre a mulher negra desde a escravidão impediram que ela fosse vista além do seu corpo, impondo-lhe papéis fixos que circulam recorrentemente e alimentam o sistema de dominação patriarcal e racista.

Ângela Davis parte do entendimento de que o estupro está na base da desumanização da mulher negra pelo homem branco, o seu proprietário, para além da escravidão. Lélia Gonzalez incorpora as categorias de mucama, da empregada doméstica e da mãe preta para, de uma ótica psicanalítica, avaliar como funciona engenhosamente o racismo brasileiro. Angela Gilliam também assinala a sexualização das mulheres negras como forma de controle social, o que define o seu papel e mantém o controle do imaginário sobre elas. No que diz respeito à mulher negra, as significações parecem ser regradas e, em grande medida, imutáveis.

Relembrando Alice Walker, só o aprisionamento de imagens é capaz de operar tal correlação perversa que, provavelmente, ressoa os efeitos de nossa história de dominação no dia a dia, colabora com nossa reconstrução cotidiana do que é (não) ser homem e mulher negros. É preciso intervir no já-dado e no já-dito e edificar, de forma multiperspectívica, outras representações desse grupo racial, liberando-o de suas prisões imagéticas. E certamente o brilho da estrela Lupita Nyong’o é um passo decisivo para a liberação de homens e mulheres negras dos signos que os sufocam. Por isso, é sempre bom enfatizar “Não somos macacos”.


Referências bibliográficas
hooks, bell. Black looks: race and representation.
Borges, Rosane da Silva. Sueli Carneiro. São Paulo: Summus, 2009.
Borges, Rosane da Silva & Borges, Roberto Carlos da Silva (orgs.). Mídia e racismo. Rio de Janeiro: 2011.
Lacan, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.
Orlandi, Eni. Análise de discurso: princípios e procedimentos. São Paulo: Pontes, 1999.

Fonte: Artigo Cedido por Rosane Borges

 

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