Black is King, ancestralidade e afro futuro

FONTEPor Mariana Gonçalves de Freitas, enviado para o Portal Geledés
Reprodução/Black is King/Disney

O rei Leão foi lançado pela primeira vez em 1994 e, à época, pretendia fazer uma releitura do clássico do teatro Hamlet, ambientada nas savanas e representando os personagens da peça como animais do bioma africano.

Na peça original, temáticas como a depressão, o suicídio, incesto e traição são retratados de forma dura porém poética. Como o Rei Leão da Disney é uma obra voltada ao público infantil, a adaptação suprimiu alguns temas sem deixar de suscitar as principais discussões da obra shakespeariana de uma forma mais apropriada para crianças.

Intencionalmente ou não, o filme de 1994 acrescenta elementos à narrativa que se aproximam de uma visão de mundo particular. A ideia de equilíbrio, de respeito à vida, ancestralidade e de identidade foram reforçadas e introduzidas principalmente nos momentos de diálogo entre Simba e seu pai, Mufasa.

Cerca de vinte anos após o lançamento da animação, as ideias e valores presentes no Rei Leão estabeleceram diálogos com o público que talvez ultrapassassem as intenções originais do filme e certamente desempenharam papeis mais profundos na formação das crianças do que qualquer roteirista ou diretor pudesse imaginar. A forma como o longa trata dilemas morais como a culpa, sentimentos doloridos como o luto e a ideia de responsabilidade, foge de dicotomias e moralismos. Essa visão de mundo complexa e ao mesmo tempo apropriada para um público infantojuvenil é um dos aspectos que torna a obra tão impactante.

Mais do que acompanhar uma jornada de remorso do jovem Simba diante das circunstâncias que causam a morte de seu pai, o Rei Leão narra uma caminhada de autodescoberta e identidade. O encontro de si mesmo apesar das duras circunstâncias impostas pela realidade. O ponto de inflexão da história, em que o protagonista reúne forças e recursos para tomar as decisões certas, é o momento em que ele não mais nega sua memória e ancestralidade, mas sim a reconhece e a saúda.

O Filme de Beyoncé, Black is King, aborda a história racializando seus personagens. Essa perspectiva intensifica a importância da identidade e da ancestralidade na narrativa. Assim, a artista usa a recursos visuais impactantes e repletos de significado para a cultura africana e diaspórica.

Em sua obra, Beyoncé dialoga tanto com o negro da diáspora quanto com o negro africano sobre questões ontológicas e epistemológicas, isto é, sobre o ser e sobre o conhecer desses sujeitos africanos.

A noção de que “todo mundo é alguém”, e de que há um caminho para essa autodescoberta, guia toda a narrativa e suas referências imagéticas. A história africana, estrategicamente ocultada e apagada, é resgatada junto à ideia de que o orgulho e a beleza negros nunca foram perdidos, sempre estiveram presentes, mesmo que não os pudéssemos ver. É um diálogo direto com a negritude e considera minimamente a figura do opressor uma vez que não conta uma história de sofrimento, mas sim uma história de potência e possibilidade.

A circularidade presente no filme original do Rei Leão é elevada e colocada não como um percurso em círculos que não avança, mas sim como o retorno de um Simba mais forte e potente ao ponto de partida, reiniciando o famoso ciclo da vida.

O filme é uma celebração do encontro, uma ode ao retorno e uma sinalização às possibilidades de um futuro melhor.

Há um conceito presente nas filosofias africanas que explora a ideia de que os ancestrais, mesmo depois de mortos, vivem através de sua descendência, vivem na memória dos que estão na terra. E essa ideia fica clara em canções como Bigger, Otherside e Spirit nas quais uma voz, que representa os ancestrais, afirma sua presença ao protagonista.

Ao longo da narrativa, Beyoncé não só representa Nala, namorada de Simba, como também a figura matrogestora que é o próprio continente Africano, cheio de fertilidade e amor para com seus filhos.

O que pode ser interpretado como uma visão caricata de África ou mesmo romantizada, na verdade, é uma interpretação positiva da cultura e do povo de um continente tão frequentemente visto sob a luz do sofrimento e da dor. Isso fica evidente nas referências afrofuturistas conscientemente empregadas pela artista em sua obra.

Black is King também é sobre o futuro.

O movimento afrofuturista já é evocado pelos jovens negros há décadas por meio da literatura, da música, do cinema e de eventos culturais como o festival Afropunk.

Beyoncé e seu álbum visual refletem esse movimento.

O álbum é também um manifesto de exaltação da negritude sem precedentes na história da indústria do entretenimento e deixa claro que as potências e as criatividades negras não podem ser contidas por quatro paredes.

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