Apropriação cultural entre mulheres é um exemplo de falta de sororidade.
Por Ana Carolina Pinheiro no Capricho
No verão, sempre surge uma tendência, seja um esporte, um sorvete diferentão ou até mesmo uma música chiclete. Mas, neste ano, uma ‘moda’ que já vinha acontecendo há um tempo ganhou força e movimentou as redes sociais: celebridades brancas se apropriando de características e elementos que fazem parte da etnia e cultura negra.
‘Isso é cabelo de gente?’: Estudantes universitários denunciam racismo em ensaio fotográfico
/Pele bem bronzeada, lábio mais carnudo e cabelo ou penteado afro. Essas foram algumas das apostas que modelos e influenciadoras usaram para deixar o feed com cara de verão. E olha que essa tendência tem até nome, viu? É o blackfishing, que acontece quando pessoas não-negras se apropriam de itens da cultura afro, utilizando as redes sociais para se auto beneficiarem e até fingirem que são miscigenadas.
A ex-BBB Munik Nunes postou uma selfie do seu rosto com uma pintura étnica e escreveu: “bem africaninha”. Já a atriz Gabi Lopes e a blogueira Bianca Andrade resolveram fazer tranças no estilo braid box e, coincidências à parte, deram um upna saturação das fotos com o novo visual, deixando suas peles alguns tons mais escuros. Tanto a Gabi como a Boca Rosa já tinham usado penteados afros anteriormente e vários internautas, principalmente negros, avisaram em seus perfis que aquilo era apropriação cultural, que acontece quando um grupo dominante utiliza elementos de uma cultura diferente da sua e normalmente oprimida pela sociedade. Parece que não entenderam ou não fizeram questão de entender.
Bianca Andrade ainda postou uma foto do cabelo volumoso depois de retirar as tranças, com a legenda: “a liberdade de ser mil Biancas numa só”. A discussão nos comentários da publicação foi inevitável, já que várias pessoas, na maioria mulheres, se sentiram incomodadas com a nova tentativa da apropriação da blogueira. Por outro lado, alguns seguidores também saíram em defesa de Bianca e ainda questionaram o fato de algumas mulheres estarem atacando outra mulher. Mas vamos lá: o feminismo nos ensina sobre ter empatia e criar relações não violentas ou competitivas, porém, neste caso, não podemos esquecer que quem não se colocou no lugar das mulheres com vivências raciais diferentes foi a própria YouTuber, que ainda escreveu em um comentário: “o que eu sei é que nunca xinguei uma dessas pessoas na minha vida! O povo se irrita sozinho” – como se a única forma de ofender uma pessoa fosse por xingamento e não tomando uma atitude, por exemplo.
Agora, você pode estar se perguntando: “mas a Gabi e a Bianca não devem ter feito isso para se passarem como negras, né? Elas só podem achar bonito….” Realmente, não acredito que a ideia delas era a de se tornarem negras, até porque abrir mão da facilidade de ser uma pessoa branca e ser aceita com o cabelo que bem entender, ninguém quer. Então, vejo como uma apropriação conveniente. Ou seja, elas escolhem alguns itens da nossa etnia e cultura, como as tranças e o tom de pele mais bronzeado, que é mais desejado no verão, só que os esvaziam de significado e usam sem sofrer com a parte negativa, que é o preconceito. Afinal, elas estão protegidas pelos privilégios, diferentemente dos negros.
Loja pede para que mulher negra alise o cabelo para contratá-la
Vaga exige ‘olhos claros’, ‘nariz fino’ e ‘cabelo liso’
A trança, por exemplo, era usada pelas mulheres negras de diversos países da África para representar estado civil e até região de origem. Atualmente, esses penteados afros continuam servindo como fonte de identificação, resistência e conexão entre as pessoas negras e suas raízes. Só que, ao contrário dos brancos, mulheres e homens afrodescendentes ainda são discriminados por usarem algo que faz parte da sua história.
Mulher negra perde emprego por causa do penteado
Por isso, a questão vai além de um não-negro usar trança, mas sim de ele entender a importância do elemento que está usando, além do simples fato de achar bonito. Vale lembrar que, quando estamos falando de uma figura pública, que influencia muita gente, a “cobrança” por atitudes de bom senso que não ofendam ninguém é muito maior e necessária. Afinal, eles precisam ter responsabilidade em relação ao impacto de suas publicações. Quantas meninas podem ter ficado com a autoestima abalada e se perguntando: “por que ela pode fazer trança e receber tanto elogios, enquanto outras mulheres negras são ofendidas usando o mesmo penteado?”. Ou será que o importante é só elas se sentirem bonitas, independente do que isso pode gerar em outras pessoas?
Se podemos tirar uma lição dessa história é que, quando alguém diz que se sentiu ofendido com algo que você fez, pare e pense o que precisa ser feito para não aumentar o desconforto do outro. Achar que o problema está em quem “reclama” e colocar seus interesses e desejos pessoais acima dos desdobramentos do racismo estrutural ou de outro problema social não é o melhor caminho.
Leia também:
Stephanie Ribeiro: Afinal o que é apropriação cultural?
Apropriação cultural, racismo, etnocentrismo ou capitalismo?
“Hoje em dia tudo é apropriação cultural”
Empoderamento étnico-racial feminino através da apropriação do cabelo crespo