Boas de parir: mulheres negras e violências reprodutivas

“Quando o médico se aproximou de mim disse, agora com essas mulheres aqui vocês não terão nenhum problema. O parto é rápido e sem dor. Igualzinho a cavalos. […]. Eu sentia dor do mesmo jeito que as mulheres brancas […]. Além disso, esse médico não sabe do que ele tá falando. Ele nunca deve ter visto uma égua. Quem disse que elas não sentem dor? Só porque ela não chora?”. Tony Morrison, em O olho mais azul.

Por Emanuelle Goes, Da Catarinas

Carro alegórico da Mancha Verde
Aqualtune, avó de Zumbi dos Palmares, foi tema do enredo da Mancha Verde, neste ano (Foto: Miguel Schincariol via getty images)

Reprodução, exaustão e resistência são palavras que fazem parte do vocabulário de mulheres negras escravizadas e que permanecem até os dias de hoje: somos vistas como as que suportam tudo, no senso comum e na (pseudo) ciência. Estas características vinculadas às mulheres negras, construídas nos processos de colonização e escravização, sustentam as ideologias racistas que organizam a sociedade e seu imaginário, pela mesma forma são reproduzidas nas práticas de saúde, na atenção e no acesso aos serviços, revertidas em violências estruturais e institucionais causando adoecimento e morte das mulheres negras.

As histórias de mulheres negras escravizadas contam que elas eram vistas também a partir do seu potencial reprodutivo. Angela Davis nos ajuda quando resgata essas histórias no livro Mulheres, Raça e Classe (2016). Conforme a autora, com a abolição internacional do comércio de escravos, houve um maior investimento na reprodução natural, por meio da exploração dos corpos das mulheres negras que chegavam à exaustão. Com isso, elas tornaram-se “crescentemente avaliadas pela sua fertilidade (ou falta dela): aquela que fosse potencialmente mãe de dez, doze, catorze ou mais tornava-se um tesouro cobiçado”. No Brasil temos a história de Aqualtune, uma rainha africana transformada em escrava, que foi vendida e trazida ao país, com a finalidade de ser uma escrava reprodutora.

“Eu pari treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus me ouviu! E não sou uma mulher?”, protestou a abolicionista afro-americana Sojourner Truth, em 1851. Ser “escrava reprodutora” não significa que essas mulheres eram mães, e este lugar não lhe adicionaria nenhum benefício com um estatuto mais respeitável do que tinham como trabalhadoras na lavoura (Angela Davis, 2016).

A exaltação ideológica da maternidade, tinha e tem um padrão racial – o branco – que não se estendia às escravas e não se estende às mulheres negras nos dias de hoje, submetidas às hierarquias reprodutivas que indicam como algumas maternidades são mais, ou menos, legítimas e aceitas socialmente do que outras.

Ancas largas, parideiras, quadris largos são características relacionadas aos corpos das mulheres negras, tanto para a reprodução quanto para hipersexualização são as memórias coloniais que se fazem presentes, como nos lembra Grada Kilomba (2019). A hipersexualização e a desvinculação das mulheres negras à maternidade as desumanizam, por isso que em todas as situações de violências reprodutivas são as mulheres negras as mais expostas, seja para planejar a gravidez (esterilização forçada/coercitiva), para parir (violência obstétrica) ou para abortar (criminalização nos serviços de saúde/aborto inseguro).

Esse fato de considerarem que as mulheres negras têm ancas largas e são boas para parir reflete na condução da atenção obstétrica carregada de viés racial implícito que é um conjunto de estereótipos sociais que todas as pessoas mantêm sobre a população negra. Podendo ser sutis e acidentais, os preconceitos implícitos afetam o comportamento humano em toda a sociedade, como por exemplo, no acesso aos serviços de saúde.

Recordo-me de uma história, quando era estudante de enfermagem (2004) e estagiava em uma maternidade em Salvador. Uma adolescente negra de mais ou menos 15 anos estava em trabalho de parto, mas não tinha condições de ter o parto normal, ficou aguardando horas até que o médico decidisse pela cesárea. Ao avaliar a parturiente, ele disse que já que ela não teria um parto normal que fosse andando até a porta no centro cirúrgico, ao invés de usar a cadeira de rodas, como normalmente se faz com todas as mulheres, principalmente quando estão com muitas dores.

O racismo institucional tem sido a principal causa de morte maternas para as mulheres negras, pois é um preditor fundamental do processo de saúde e doença para essa população. Casos como os de Alyne Pimentel e Rafaela Silva nos confirmam tal constatação que a principal barreira institucional é o racismo: as duas morreram no serviço de saúde. As duas procuraram atendimento e morreram em um hospital. Rafaela ficou aguardando atendimento com pressão alta, passou por uma histerectomia e teve uma série de complicações. Já Alyne, grávida de seis meses, perdeu o bebê depois de aguardar atendimento por horas e morreu.

Tanto o racismo quanto as desigualdades raciais devem ser historicamente contextualizadas, segundo a epidemiologista Nancy Krieger (2017), pois o que se observa são praticas racistas nos serviços de saúde manifestadas de diversas formas que condenam as mulheres negras à situação de violência constante.

As mulheres negras (3,2%) são as que mais apresentaram parto tardio (pós-termo) em 2016, sendo quase o dobro em relação às brancas (1,7%) segundo o Sistema de Informação de Nascidos Vivos do Datasus/Ministério da Saúde. Assim como, o tipo de parto, as mulheres brancas apresentam maior proporção para cesáreo (66,3%) e as mulheres negras quase a metade para cada tipo de parto (vaginal – 50,3%; cesáreo – 49,7%).

Segundo Maria do Carmo Leal (2017), são as puérperas negras que têm maior chance de nascimento pós-termo (42 semanas e mais) em relação ao nascimento termo completo (39-41 semanas) em comparação às mulheres brancas. A gestação prolongada pode resultar em acometimentos irreversíveis tanto maternos quanto fetais, aumentando a morbimortalidade de ambos (Maia Filho et al, 2007). Ao apresentar as maiores ocorrências relacionadas ao parto pós-termo as mulheres negras vivenciam o racismo institucional associado à violência obstétrica, são elas que estão submetidas a um menor cuidado refletido em menos intervenções quando necessárias, inclusive a cesárea.

As mulheres negras estão submetidas a situações de violências nas trajetórias reprodutivas, este lugar de autodeterminação ainda precisa ser alcançado por meio da justiça reprodutiva que confronta as opressões, violências e hierarquias reprodutivas. O serviço de saúde desumaniza as mulheres, as empurra para o abismo. E a dor (em suas diversas formas) é uma das principais e mais forte situação que evidencia o tamanho da violência que incide sobre os corpos negros femininos. É o que constatamos, seja por meio dos relatos e experiencias das mulheres negras, na literatura de feministas negras ou nas evidencias científicas trazidas pelos números, por todo canto essa dor transborda, emerge e denuncia o racismo.

Referencias

Soujorner Truth. E eu, não sou uma mulher? Discurso proferido Women’s Rights Convention em Akron, Ohio, Estados Unidos, em 1851.

DAVIS, Angela Yvone. Mulheres, Raça e Classe. Boitempo, 2016.

Grada Kilomba. Memórias Da Plantação: Episódios De Racismo Quotidiano. Ed. Cobogo, 2019.

Nancy Krieger, N., Jahn, J.L. & Waterman, P.D. Cancer Causes Control (2017) 28: 49. https://doi.org/10.1007/s10552-016-0834-2

Maria do Carmo Leal. et al. A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 33, n. suppl 1, p. e00078816, 2017.

Maia Filho, Nl; Mathias, L; Saraiva Suzano, Ce. Gestação prolongada: um texto atualizado. Perspectivas Médicas, vol. 18, núm. 1, enero-junio, 2007, pp. 39-42.

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