Boletim de Análise Político-Institucional nº 26, março 2021

FONTEIpea
Imagem: Getty Images

No dia 14 de maio eu saí por aí
Não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir
Levando a senzala na alma eu subi a favela
Pensando em um dia descer, mas eu nunca desci.6
Lazzo Matumbi e Jorge Portugal

A pandemia de Covid-19 trouxe condições trágicas para a humanidade. Além do contingente impressionante de mortos,7 provocou o adoecimento de outras dezenas de milhões de pessoas, levando a medidas de distanciamento social e ao tensionamento e expansão abrupta dos sistemas de saúde. Entre os efeitos da crise estão também a revisão de estratégias nacionais e internacionais de proteção social e desenvolvimento tecnológico e a reorganização de sistemas produtivos. Em que pesem, no entanto, a vivência global da pandemia e as visões românticas sobre um futuro comum mais humanizado, esses efeitos são compartilhados de modo desproporcional entre países, grupos sociais e comunidades.

Recentes acontecimentos têm intensificado o debate sobre o racismo e as desigualdades raciais no mundo. O assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos, fez eclodir, para além das suas fronteiras, uma série de manifestações antirracistas que defendem o lema Vidas Negras Importam. Esse grito, já presente no protesto negro no Brasil, se fez ouvir de modo amplificado a partir desse contexto. Essas manifestações acontecem em plena pandemia causada pelo coronavírus, que tem se mostrado muito mais agressiva e devastadora nas comunidades pobres ao redor do mundo e nos territórios negros no Brasil ou nos Estados Unidos.

No Brasil, a compreensão cada vez mais difundida do caráter estrutural, sistêmico e institucional do racismo reclama, para além do diagnóstico dessa realidade, uma postura social de enfrentamento e antirracismo, em um contexto em que a inserção governamental da pauta racial tem perdido força significativa. Se, por um lado, ainda disputamos a produção de dados de qualidade sobre a questão racial em diversos campos, incluindo aqueles em que há dados disponíveis, por outro, essas informações ainda são desconsideradas nos diagnósticos e nas soluções. Não raro, os contingentes vulnerabilizados são tratados como invisíveis ou têm suas especificidades e realidades negligenciadas nas políticas públicas.

Isso é ainda mais relevante se pensarmos que políticas nacionais trataram classicamente as pertenças diversas e heterogêneas de grupos sociais negros e indígenas como problema que a agência estatal integradora dissolveria. As pautas de raça e etnia na cena pública explicitam, cada uma a seu modo, o caráter violento da ideia de nação enquanto unidade homogênea, fornecendo importantes aportes críticos para pensar a ação estatal nos tempos atuais. Além disso, a crise sanitária tornou ainda mais evidente os problemas estruturais que enleiam estes grupos sociais em seus contextos específicos, indicando que desigualdades e diferenças são instâncias não negligenciáveis da realidade. Os canais do debate entre raça e etnia, porém, não estão construídos e demandam esforços adicionais que esta publicação apenas enuncia.

Esses fenômenos, totalmente conectados, trazem à tona o debate sobre os processos discriminatórios e as desigualdades no país. Como esses problemas afetam as políticas públicas, como são por elas alcançados e como são por elas afetados e, não raro, agravados são questões desta proposta de edição temática do Boletim de Análise Político-Institucional. Espera-se também apontar algumas alternativas para enfrentamento das desigualdades raciais e do racismo, especialmente nesse contexto de crise sanitária e de seus efeitos. Para tanto, a proposta foi congregar pesquisadores e pesquisadoras do Ipea e de outras instituições, por meio de artigos convidados.

Esta edição começa com o texto de Fernanda Lopes sobre a saúde, o Sistema Único de Saúde (SUS) e o momento da pandemia. O direito à saúde no Brasil, individual, mas condicionado pela garantia de condições de vida a todos os segmentos sociais, passa pela compreensão e gestão da saúde pública. O SUS, considerado mecanismo de justiça social e redução das desigualdades, compreende o cuidado de saúde circunscrito em um contexto de bem-estar social, no qual o reconhecimento das desigualdades de condições é essencial para promover a equidade. Nesse cenário, em que as desigualdades raciais se apresentam como estruturantes para a desigualdade social, o racismo e as diferenças de condições de vida da população negra são centrais para compreensão de condições desiguais de saúde e, agora, especialmente no contexto da pandemia, de condições de vida e morte. Para a autora, enfrentar essa realidade e promover equidade na saúde pressupõe defender o SUS, por seu caráter de redutor das desigualdades, o que envolve o questionamento dos limites orçamentários que reduzem seu alcance e efetividade, a garantia de visibilidade estatística, a participação social, o compromisso com o combate às desigualdades identificadas e o enfrentamento aos mecanismos que operam sua reprodução.

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Fonte: Ipea
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