A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) realizou audiências públicas na quarta (28/6) e na quinta-feira (29/6) do caso Neusa dos Santos Nascimento e Gisele Ana Ferreira contra o Brasil, o primeiro por discriminação racial no âmbito do trabalho que chega ao tribunal.
As mulheres foram vítimas de discriminação quando tentaram participar de uma seleção para vagas de pesquisadora na empresa paulistana Nipomed, do ramo de saúde, em 1998. O caso trata do crime em si e da impunidade pelos atos, gerada por erros judiciais.
Conforme o relato feito à Corte, as duas, ambas negras, ficaram sabendo das vagas por um anúncio de jornal e, por já terem trabalhado como pesquisadoras anteriormente, se apresentaram à empresa manifestando interesse no cargo.
Neusa e Gisele contaram, durante a audiência pública, que foram juntas à empresa e o dono as recebeu e impediu que elas passassem da porta, manifestando prontamente que as vagas já estavam preenchidas.
“Quando nós chegamos, lá dentro havia outras pessoas, em uma sala, mas não conseguíamos ver, porque ele não deixava a gente entrar, chegar até a recepção, participar. Ele ficou barrando, por mais que a gente tentasse insistir. Ele estava contrariado, com uma cara muito desagradável. Não queria que a gente estivesse ali, e a gente teve que ir embora”, narrou Neusa aos juízes da Corte.
Gisele também relembrou da cena: “Me recordo que eu estava com o jornal na mão, e ele [o dono da empresa] sacudia a mão, falava ‘não, não tem vagas aqui para vocês’. A gente não conseguiu argumentar. Não consegui falar que eu queria fazer uma ficha, que eu tinha escolaridade. Eu me recordo muito da posição das mãos dele, limitando o nosso espaço”.
Neusa contou que, após a negativa, foi à casa de uma amiga, branca e com experiência profissional parecida, que também se candidatou ao cargo. “À noite, fui à casa da Isabel e ela falou que não era possível, porque ela tinha ido à tarde e foi contratada. Como eu, que fui de manhã, não fui? Ela me mostrou a pasta, o material de trabalho, falou que ele estava precisando de mais gente. Ela entendia que só poderia ser racismo, e nós entendemos assim também”.
Ao perceber-se vítima de racismo, Neusa procurou a polícia para registrar um boletim de ocorrência. Segundo ela, uma delegada, também negra, tratou a denúncia com desdém.
“Quando a delegada me intimou para fazer a declaração, perguntei a ela se eu poderia ir na hora do almoço do meu trabalho. Quando eu cheguei lá, ela falou: ‘Se você está na hora do almoço, está trabalhando. Se está trabalhando, não teve nenhum impacto na sua vida’. De imediato, eu falei que teve impacto, sim. Ela disse: ‘Não teve impacto, vou arquivar’. Eu achei estranho, porque a atitude dela foi como se ela tivesse julgando, executando, fazendo tudo sozinha. Eram todos os papéis em uma única pessoa”, disse Neusa.
A discriminação por raça continuou também quando Gisele tentou registrar o crime em outra delegacia, posteriormente. “Eu fui sozinha à delegacia, fazer o boletim de ocorrência. Foi difícil, porque me recordo de o delegado perguntar se eu tinha lido corretamente a vaga e se eu tinha certeza que aquela vaga era para mim. Eu disse que sim. Para mim, o sentimento foi como se ele falasse assim: ‘Mas por que você foi? Você deveria saber qual é o seu lugar’”, narrou ela.
Embora sem respaldo dos agentes policiais, a denúncia foi apresentada, depois que ambas buscaram ajuda jurídica no Instituto Geledés, uma organização política de São Paulo que luta contra o racismo e sexismo. Em agosto de 1999, o Ministério Público confirmou a acusação. No entanto, uma semana depois, o juiz julgou o pedido improcedente e absolveu o acusado.
“Sentimento de desamparo”
Gisele recordou do momento em que recebeu a notícia: “Quando eu soube que tínhamos perdido, o sentimento foi de desemparo. Foi como se a Justiça tivesse dito para mim que podem me tratar com racismo, que podem me tratar mal, não tem problema. Eu saí do escritório com a notícia e falei: eu não quero mais voltar aqui, não quero mais ouvir isso, não quero mais viver isso. Ninguém vai me defender e eu preciso trabalhar. Então eu nunca mais quis saber sobre o processo. Eu também parei de procurar empregos de pesquisadora ou empregos em que a minha aparência fosse importante. Eu fui trabalhar com minha mãe, de empregada doméstica, porque como empregada doméstica você não precisa falar, sua aparência não é importante e você ganha um dinheiro honesto”.
Após a absolvição, um recurso foi apresentado, mas demorou quase quatro anos para ser encaminhado ao tribunal de apelação. Em agosto de 2004, o tribunal manteve a ação penal e condenou o réu a dois anos de prisão em regime semiaberto pelo crime de discriminação racial ou de cor, mas declarou a extinção da sentença por prescrição.
O Ministério Público apresentou um recurso alegando que o crime de racismo é imprescritível de acordo com a Constituição, o que foi aceito. Em 26 de outubro de 2006, foi emitido um mandado de prisão e, em 6 de junho de 2007, foi concedido um recurso para que o condenado cumprisse a sentença em regime aberto.
Em 7 de novembro de 2007, o condenado interpôs recurso de apelação, que estava ainda pendente, de acordo com a informação disponível no momento da adoção do Relatório de Mérito. Em 25 de outubro de 2006, Neusa dos Santos Nascimento iniciou uma ação civil para reparação de danos, que foi rejeitada no dia 5 de dezembro de 2007.
Contexto geral de discriminação
Em seu relatório entregue à Corte IDH, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) destacou que há um contexto geral de discriminação e falta de acesso à Justiça pela população negra do Brasil, especialmente mulheres. Também observou que, apesar da existência de uma condenação, não houve decisão judicial definitiva e nem reparação às vítimas. Para a comissão, os mais de 20 anos transcorridos desde a apresentação da denúncia constituem uma demora excessiva, injustificável.
Em razão disso, a CIDH pediu a condenação do Brasil por violações aos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial, reconhecidos nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana, e aos direitos à igualdade perante a lei e ao trabalho, consagrados nos artigos 24 e 26.
“Passado todo esse tempo, eu gostaria que a resposta fosse de uma forma exemplar, para que as pessoas acreditem na Justiça, não acreditem que elas vão ser discriminadas e nada vai acontecer. Eu gostaria que os discriminadores, os racistas, tivessem medo de fazer isso, que isso mexesse em algum lugar que dói deles, tipo o bolso, que é o único lugar que dói neles. Eles têm sempre na boca a expressão ‘me perdoa’. É como se eles acreditassem que é muito fácil nos agredir com racismo o tempo todo”, declarou Neusa ao reforçar o pedido de condenação.
Maria Sylvia de Oliveira, advogada do Geledés Instituto da Mulher Negra, representante das vítimas, expôs aos juízes da Corte o contexto de racismo sistêmico e institucionalizado enraizado no Brasil, especialmente contra as mulheres.
“A filósofa Sueli Carneiro, um grande expoente do feminismo negro no Brasil, aponta que a mulher negra é a síntese de duas opressões, de duas contradições essenciais: a opressão de gênero e a de raça. Isso resulta no tipo mais perverso de confinamento: se a questão da mulher avança, o racismo vem e barra as negras; se o racismo é burlado, geralmente quem se beneficia é o homem negro. Ser mulher negra é experimentar essa condição de asfixia social”, pontuou. “É urgente e necessário que o Estado brasileiro, para além de reconhecer a natureza sistêmica desse fenômeno que é o racismo, adote medidas efetivas para desmantelar suas estruturas, a começar pelo fortalecimento e rigoroso cumprimento das legislações antidiscriminatórias em vigor”, sugeriu.
O advogado Rodnei Jericó, também advogado das vítimas, ressaltou que a discriminação racial no trabalho é algo reiterado no Brasil e que o caso é apenas um entre milhões.
“Trata-se de uma situação exemplificativa. Em que pese ser um caso concreto, nós temos diversas outras situações no Brasil muito similares a este, mas que não conseguem chegar a esta douta Corte Interamericana. Sabemos a maioria dos casos levados ao distrito policial ou não são levados a termo de forma a propiciar uma boa instrução processual futura, ou há o desencorajamento por parte do ente público na lavratura do boletim de ocorrência e, por consequência, a impossibilidade de se socorrer na Justiça.”
Representante do Estado, o advogado da União Tonny Teixeira de Lima admitiu que o racismo no Brasil é “fruto de um longo e infeliz processo histórico, refletido em instituições e práticas excludentes, que geraram e continuam a gerar uma configuração social fragmentária, desigual e injusta”.
Ele ponderou, porém, que o país tem adotado planos e ações institucionalizadas para enfrentar o problema, como estabelecimento de cotas raciais, criação de grupos de trabalho em órgãos públicos e formulação de políticas sobe a igualdade racial no âmbito do poder judiciário
Sobre o caso concreto, Teixeira afirmou que o Brasil reconhece as violações aos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial em prejuízo de Neusa e Gisele, e que aceita os efeitos jurídicos cabíveis.
“A violação a esses direitos ocorreu quando do recebimento e não processamento ágil da apelação interposta pelas peticionárias em segundo grau de jurisdição, assim como quando do reconhecimento indevido da prescrição do crime de racismo, ainda em segundo grau, o que dilatou ainda mais o lapso temporal do processo. O Estado brasileiro reconhece que esses eventos prejudicaram substancialmente o bom andamento e o prosseguimento rápido da demanda perante o poder Judiciário, alargando injustificadamente o prazo de resposta à acusação de discriminação racial”, disse Teixeira.
O Estado, no entanto, foi contrário aos pedidos de condenação por violação aos direitos à igualdade perante a lei e ao trabalho. De acordo com Teixeira, há imprecisão nas alegações nesse sentido.
“Resta inviabilizada a procedência da acusação quantos aos artigos 24 e 26, em razão de vícios formais e materiais que maculam o procedimento. A falta de EPAP [Escrito de Petições, Argumentos e Provas] conjugada à imprecisão das acusações quantos aos mesmos dispositivos, aliada à falta de justiciabilidade do artigo 26, trazem uma insegurança jurídica que prejudica a defesa do Estado, razão pela qual não se reconhece a violação a esses artigos”, declarou o advogado.
Com o fim das audiências, as partes têm agora um mês para apresentar os argumentos finais escritos. Depois dessa entrega, a Corte pode emitir sentença a qualquer momento.
Participam deste julgamento os juízes Ricardo César Pérez Manrique (presidente, Uruguai), Humberto Antonio Sierra Porto (Colômbia), Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot (México), Nancy Hernández López (Costa Rica), Verónica Gómez (Argentina) e Patricia Pérez Goldberg (Chile). O juiz brasileiro Rodrigo Mudrovitsch não julgará o caso porque o regulamento da Corte não permite a participação em casos do país de origem.