A brasileira África dos escravos retornados

FONTEpor Márcia Pimentel, do MultiRio
Foto: Leo Pinheiro

Alguns países da África Ocidental, como Gana, Togo, Benin e Nigéria, abrigam comunidades que cantam samba, comem feijoadá (assim mesmo, com acento agudo na última sílaba) e cultivam vários outros hábitos relacionados às tradições brasileiras. Trata-se dos descendentes dos cerca de 5 mil escravos libertos que retornaram à África no século XIX e que, segundo o antropólogo Milton Guran, do Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense (UFF), usam a matriz cultural de nosso país, ou seja, recriam uma brasilidade própria, para se constituírem como um grupo social diferenciado.

Foto: Leo Pinheiro

As principais comunidades de descendentes de escravos brasileiros que retornaram à África são as dos tabom (em Gana) e dos agudás (em Togo, Benin e Nigéria). Guran explica que a origem da distinção entre eles e os demais africanos relaciona-se ao fato histórico dos retornados terem sido os primeiros moradores a introduzirem, na Costa dos Escravos (ou da Mina), a matriz da cultura europeia. Ou seja, quando voltavam para a África, os libertos levavam consigo diversos costumes e saberes assimilados com os portugueses, no Brasil.

Embora, desde o século XVI, já houvesse um intenso tráfico de escravos que envolvia Europa e Américas, a maior parte da África tinha aberto apenas um pouco de sua “casca” para o exterior. “Até então, o europeu só tinha avançado alguns passos para além de seus entrepostos comerciais, fortins e feitorias, assim mesmo só fazia isso com o consentimento ou a vigilância dos africanos”, explica o diplomata, poeta e historiador Alberto da Costa e Silva, membro da Academia Brasileira de Letras, em seu artigo O Brasil, a África e o Atlântico no Século XIX.

Diferenças culturais

Entre os escravos libertos brasileiros que tomaram o rumo da África havia vários pedreiros, mestres de obra, carpinteiros, alfaiates, ferreiros, agricultores e muitos outros profissionais que tinham aprendido ofícios com os portugueses. As casas de pedra construídas pelos retornados, por exemplo, contrastavam com aquelas cobertas de sapé da população local. Aliás, os sobrados erguidos pelos brasileiros em Lagos, na Nigéria, têm virado objeto de estudo de várias faculdades de arquitetura não só do Brasil, interessadas em seus significados sócio-históricos.

Em tempos em que os países europeus, principalmente o Reino Unido, passaram a perceber a África como mercado consumidor – e não mais como exportadora de mão de obra escrava – e a adotar estratégias mais agressivas para adentrar e colonizar o continente, as “maneiras de branco” dos retornados viraram parâmetro para as populações africanas locais. Ou seja, as diferenças culturais entre eles e os nativos corroboraram para que os retornados fossem vistos como “brasileiros” – agudá e tabom –, e não como iorubá, fon, mahi ou qualquer outra etnia. Ao mesmo tempo, eles tendiam a ver os africanos como “selvagens”.

Em Lagos, por exemplo, os ex-escravos brasileiros eram vistos como estrangeiros. A organização interna de seus sobrados, com espaços definidos para estar, descansar, dormir, jantar e cozinhar, nada tinha a ver com os hábitos locais. E isso acontecia no momento em que as autoridades coloniais inglesas solidificavam seu controle sobre a Nigéria. As diferenciações de costumes acabaram resultando na construção de uma identidade própria, que atravessou o século XX. Ainda hoje, alguns descendentes dos retornados reivindicam o direito de ter passaporte do Brasil.

Tradições brasileiras

O apego às tradições brasileiras, que muitos cultivam até hoje, têm várias referências em nossas matrizes do século XIX. A feijoadá, por exemplo, é feita com feijão mulatinho em forma de purê. Alguns dos festejos incluem o folguedo da burrinha – a forma arcaica do bumba meu boi. Também faz parte da cultura dos agudás (que significa católicos em iorubá) a festa de Nosso Senhor do Bonfim, a tapioca, a concada (que pode designar tanto a nossa cocada – só que de coco verde – como o nosso pé de moleque) e o cousidou (o nosso cozido, pronunciado com sotaque francês). No Brazilian Quarter (Bairro Brasileiro), em Lagos, celebra-se o Fanti, evento carnavalesco de rua, comemorado quatro vezes ao ano entre os descendentes dos retornados.

Em um artigo a quatro mãos, os pesquisadores Alcione Meira e Ebenezer Ayesu explicam que os ex-escravos brasileiros que se fixaram em Acra, a capital de Gana, se destacavam entre os nativos por usarem casaca, chapéu e outras peças do vestuário ocidental, além de darem grande importância aos estudos dos filhos. No início do século XX, vários haviam virado advogados, professores, médicos e funcionários do governo colonial inglês. Quando o país declarou sua independência do Reino Unido, em 1957, o primeiro embaixador ganês nos Estados Unidos foi o tabom Miguel Augustus Francisco Ribeiro.

Em Togo, também há famílias de agudás que se tornaram poderosas, como é o caso dos Souza, cujo clã teve início em fins do século XVIII, quando o baiano Francisco Félix de Souza, filho de português com escrava, se fixou no Benin para se tornar um traficante negreiro e um dos homens mais poderosos da região. Ganhou, inclusive, um título honorário inédito, o de Chachá, e o direito de monopolizar o mercado não só de escravos, mas também de outras mercadorias, como a pólvora. Segundo Milton Guran, o sobrenome Souza ainda significa poder social no Benin e o título, exclusivo dos agudás, existe até hoje. “O Chachá arbitra conflitos que não implicam em crime de sangue e disputa de propriedade, além de ter certo peso eleitoral”, explica o antropólogo.

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