Carnaval com enredos africanos foi lindo, mas faltam carnavalescos negros

FONTEPor Ronilso Pacheco, do UOL
Carro da Grande Rio exalta Exu (Foto: Valmir Moratelli/UOL)

O destaque dado ao tema da religiosidade africana ou das nossas celebridades negras pelas escolas de samba, o que formou a quase totalidade dos enredos, lançou também um contraste desconfortável: todos os carnavalescos e todas as carnavalescas que assinam a concepção das escolas do grupo especial no Rio de Janeiro eram brancos.

Obviamente, não há qualquer problema em a presença negra nos desfiles das escolas estarem também entre os ritmistas, passistas, bailarinos, mestres-sala e porta-bandeiras, e nem mesmo entre os operários que dirigem e empurram os carros alegóricos.

Mas uma coisa que os desfiles deste ano me ensinaram é que ainda há uma área das escolas em que a presença negra precisa ser protagonista. Embora esteja fazendo uma crítica, a intenção deste artigo é que ela seja positiva, e com a consciência de quem só conhece as dinâmicas da produção dos desfiles de uma escola de samba de fora. É aquela impressão de alguém que olha e diz: “foi perfeito, mas essa parte poderia ser melhor da próxima vez”. Então, o que eu pontuaria é:

Invistam nos jovens negros das comunidades das escolas. Que os projetos e os barracões não produzam apenas bons soldadores, escultores, marceneiros, passistas e ritmistas. Que as escolas tenham em vista na comunidade os jovens negros nos quais vão depositar o futuro da sua produção e de seus desfiles.

Como bons aprendizes, eles podem observar de perto todo o processo criativo e de produção dos carnavalescos. Isso é arte, nem sempre você simplesmente ensina tecnicamente, mas familiarizar com o ambiente desperta aptidão.

Todas as áreas das artes são caras, caríssimas. O cinema é um curso caro, razão pela qual uma geração de jovens cineastas hoje é fruto direto de projetos sociais que tinham o audiovisual como atividade.

É a mesma razão pela qual jovens negros que se apaixonam pela música clássica dificilmente levam o sonho adiante, se não há um projeto social que permita o contato com um bom violino, violoncelo ou piano.

Da mesma forma, os cursos de belas artes, além de caros, são muitas vezes descartados pelas famílias dos jovens negros, que acham que o universo da arte está tão distante, que não é viável que o jovem gaste anos fazendo um curso cujo retorno financeiro para quem é pobre será zero. Ele corre o risco de ser apenas um jovem pobre excêntrico. Útil é aprender a soldar ou trabalhar com marcenaria.

Há uma relação direta entre a maioria dos jurados serem brancos e a formação em, por exemplo, Belas Artes. E ali, naquela cabine, há uma síntese significativa da nossa desigualdade em educação e formação profissional que são acessíveis a muitos dos nossos jovens negros. Belas Artes quase nunca está no horizonte delas.

Não é uma questão qualquer que nove escolas do grupo especial tenham abordado a ancestralidade e a espiritualidade africanas, a história do povo negro, a luta e a resistência, reverenciado nossas referências negras e que, simplesmente, os carnavalescos que pensaram e conceberam tudo isso sejam todos brancos.

Repito, este não é um artigo de crítica aos carnavalescos brancos. A Sapucaí viu trabalhos maravilhosos, geniais. Mesmo evangélico, enquanto homem negro, me senti honrado e contemplado com a verdadeira desconstrução da estereotipização da religiosidade africana que atravessou a avenida. Um golpe para abalar e calar o racismo, sobretudo o racismo religioso.

Também não tenho dúvidas da consciência racial e do compromisso dessas pessoas com a luta antirracista. Parece evidente. Da mesma forma, sabemos que pesquisadores e pesquisadoras, artistas negros e negras integram equipes de suporte aos carnavalescos. Sem eles e elas, um carnaval como vimos este ano seria improvável. Eu me refiro apenas a assinatura e liderança.

Este artigo só pretende lembrar que é inconcebível que, em todas as nossas grandes escolas, não haja um investimento sério em jovens negros, aquele moleque que a gente já identificou que ama desenhar e faz isso bem. Esse menino merece ter um curso financiado, ser acompanhado durante o ensino fundamental e médio, e ter a oportunidade —e o direito— de escolher o mundo das belas artes quando tiver rumando para o vestibular.

Esse menino merece que a escola, e os patrocinadores da escola, deem a ele a oportunidade de estudar fora, ampliar a mente, trocar experiências com outras escolas de arte e voltar para sua comunidade. Ele pode passar anos assistindo de perto a como o carnavalesco cria e aí, enfim, um dia, ter o direito de “retribuir” às escolas, com sua criação.

É apenas isso. O carnaval de 2022 foi maravilhoso, que aula de africanidade. Mas deixem nossos pretinhos e pretinhas serem os titulares dessa construção também. Eu gostaria de vê-los explicando a concepção do desfile, na telinha, no canto direito da transmissão da Globo.

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