Carta Aberta (afetiva) aos técnicos sociais de Medida Socioeducativa

FONTEPor Paula Martinez, enviado para o Portal Geledés
Arquivo Pessoal

Técnico Social é como está na carteira de trabalho. Mas o que é ser técnico social em serviço de medida socioeducativa? Meio aberto? Que? Qual o objetivo desta função? Qual é o nosso papel? Faz mais de um ano que faço essa pergunta a mim mesma e a todos ao meu redor, e não porque não sei burocraticamente e concretamente meu papel, mas porque dentre todas as possibilidades de carreira na minha formação acadêmica fui escolher a de técnico social em serviço de medida socioeducativa em meio aberto. E sim, é uma escolha. É uma escolha trabalhar com políticas públicas quando as prioridades do governo não são as políticas públicas. É uma escolha trabalhar com a garantia de direitos dos adolescentes quando os adolescentes em conflito com a lei não são prioridade porque afinal, eles estão em uma fase da vida em que fazem escolhas entre o “bem” e o “mal” e se escolheram o mal é por conta e risco apenas deles. É uma escolha trabalhar com adolescente envolvido com a prática infracional quando está em pauta a redução da maioridade penal com a maioria favorável. É uma escolha trabalhar em serviços condenados ao fracasso por descaso público/político. É uma escolha trabalhar com o sofrimento de famílias e jovens ignorados pelo sistema, negados nas escolas, culpabilizados pela sociedade, pelo estado e pela academia. Sim, pela academia que quase não traz a tona esse debate. Mas também é uma escolha fazer desta experiência um bom encontro, um espaço de potência, um caminho de construção coletiva e de luta por direitos.

A rotina nos serviços de medida em meio aberto apresentam algumas atividades comuns a todos os serviços, e outras que variam a depender do envolvimento social e intelectual das equipes e das Organizações conveniadas. Essas atividades vão desde atendimento semanal, encaminhamentos para educação, saúde, assistência e mercado de trabalho (que por si só já configura um trabalho impossível de se concretizar na maioria dos casos), até articulações e parcerias com os equipamentos do território, mobilizações políticas, ações coletivas com os usuários, as famílias, os movimentos sociais, os equipamentos públicos e demais atores, além das articulações entre serviços e trabalhadores dos serviços de medida socioeducativa, o investimento em cuidado, acolhimento, formação continuada, enfim, as mais diversas ações que tem como objetivo a garantia de direitos com o respeito e a afetividade necessários para a execução de um trabalho ético.

Alguns casos atendidos por nós técnicos sociais mobilizam determinados conteúdos em nós que podem se apresentar de maneira sensibilizadora e potencializadora e, é de extrema importância que estas experiências não caiam em esquecimento e que sejam compartilhadas com a finalidade de dar visibilidade a estes acontecimentos, convidar a reflexão de todos os que são atravessados por esta realidade, e garantir a melhoria no atendimento, visando a autonomia dos jovens e adolescentes. 

Um caso em específico me convidou a este lugar de reflexão e produção: o serviço no qual trabalho há pouco mais de um ano recebeu durante o ano de 2018 dois irmãos com histórico de envolvimento em tráfico. Ambos não estavam cumprindo a medida com o desempenho esperado. Pouco frequentavam o serviço, e não aderiam aos encaminhamentos realizados pela equipe. A equipe então começou a buscar formas de se mobilizar na esperança de que os jovens cumprissem a medida imposta. Sendo assim, esta equipe se aproximou da família e intensificou as visitas domiciliares. Durante este período, outro adolescente com o mesmo endereço deu entrada no serviço de medidas. Era o primo. Ao realizar as visitas e atendimentos familiares foi possível identificar que três irmãos estavam envolvidos com o tráfico e os dois primos, vizinhos, também. Todos com medidas socioeducativas (meio aberto, fechado e semi liberdade). 

Após inúmeras discussões do caso com a equipe técnica interna, esta equipe realizou todos os encaminhamentos necessários. O problema é que não basta encaminhar. É preciso acompanhar e garantir o encaminhamento porque na prática, eles não acontecem na primeira tentativa e depende em sua maioria, da insistência dxs tecnicxs, da família e do adolescente/jovem. Sendo assim, esta equipe acompanhou esta família para atualização do cadastro no CRAS (Centro de Referencia da Assistencia Social), convidou a equipe da UBS (Unidade Básica de Saúde) a realizar visita domiciliar, tendo em vista que a casa da família fica na rua de trás da UBS e a equipe não tinha conhecimento algum sobre aquela família, além do fato de que a mãe dos três irmãos é portadora de deficiência física com grande dificuldade de mobilidade. Foi realizado também o encaminhamento para o PPCAM (Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte) devido à relação conflituosa e abusiva da polícia no território que, por diversas vezes invadiu a casa, humilhou e ameaçou a vida de todos os adolescentes da família. Durante todo o processo de encaminhamentos, foi necessária a reflexão e discussão de caso com o NPJ ( Núcleo de Proteção Jurídico Social e Apoio Psicológico) e CREAS de referência. Ou seja, o máximo de políticas públicas envolvidas.

Após todos os encaminhamentos para garantir o acompanhamento desta família em situação de vulnerabilidade social, foi possível pensar no encaminhamento escolar e inserção em programas vinculados a Secretaria de Direitos Humanos e a Secretaria do Trabalho para dois jovens desta família. Tal movimentação fez com que os adolescentes se aproximassem do serviço de medidas socioeducativas de maneira afetiva no qual foi possível desenvolver vínculo com toda a equipe (independente da constante troca de funcionários) e fez com que os dois irmãos conseguissem concluir suas medidas com os devidos encaminhamentos e acompanhamentos.

E foi então que aconteceu algo muito presente nos serviços de medidas socioeducativas: a aproximação dos adolescentes e a frequência no espaço após a decisão judicial definir o encerramento da medida, conhecidos como pós medida. Após o cumprimento da medida os jovens compreenderam a finalidade do espaço e passaram a vê-lo como um local de referência e sempre que possível, estavam presentes no serviço, em algumas situações, mais de uma vez na semana e participando das atividades propostas no/pelo SMSE. 

A partir do cumprimento integral das medidas dos jovens, a irmã que recebeu a medida de semi liberdade e descumpriu por duas vezes passou a frequentar o serviço, solicitando encaminhamentos para escola e cursos como o de seus irmãos. A equipe acolheu a demanda e avaliou com a adolescente que o mais adequado naquele momento era regularizar sua situação com a justiça comparecendo ao Fórum. Apesar da orientação, esta equipe buscou respeitar o tempo da adolescente que já estava apresentando movimentos no sentido de regularizar sua situação, mas ainda não estava preparada para praticamente se oferecer para internação n Fundação Casa e, portanto, realizou diversos atendimentos com a adolescente com o intuito de oferecer todo o suporte necessário à sua decisão. Durante este período, a adolescente se envolveu nas oficinas de barbearia e participou de todas as atividades propostas até que decidiu que o melhor seria se apresentar a justiça. A adolescente em questão chegou ao SMSE no primeiro horário e aguardou por 4 horas até que fosse possível articular e organizar sua ida ao Fórum. Apesar de toda a angústia, a adolescente sustentou sua decisão a todo o momento mesmo ciente da possibilidade de internação e acompanhada apenas por sua irmã e duas técnicas do SMSE, a jovem se apresentou primeiro na defensoria pública no qual, foi elaborado um relatório de defesa e em seguida foi para audiência. Neste momento a única coisa que passava na minha cabeça era o sofrimento e a angústia que essa adolescente estava vivenciando por tentar encerrar este capítulo em sua vida que apesar de estar no passado, tinha consequências no presente e no futuro. A adolescente optou por não informar sua família sobre sua decisão (apenas sua irmã que à acompanhou) e fez uma carta de despedida para ser entregue ao namorado e a família. 

Na sala de espera para audiência, a adolescente decidiu informar sua família sobre a decisão de ir ao Fórum regularizar sua situação. Eis que a adolescente, que até o momento estava firme e resiliente, desabou a chorar. Foi possível ver o desespero em seu olhar. Neste momento pensei em todas as vezes em que ela não quis ir ao Fórum, nas vezes em que ela disse que não gostaria de se despedir porque dói, nas vezes em que ela pediu para passar o Natal e o Ano novo com a família que há tempos não conseguia com medo de ser apreendida a qualquer momento, ou pior, morta. E eu comecei a me questionar: porque escolhi esse trabalho? Qual é o meu papel neste momento? Será que é realmente só estar junto e sentir essa angústia com ela? Será que o que fiz até aqui foi o suficiente? Será que era pra ela ou pra mim todas as vezes em que disse a ela que amadurecer é sofrido e exige que você faça escolhas difíceis, renúncias impossíveis e sustente elas custe o que custar? 

Entramos na sala de audiência, as técnicas foram ouvidas, e questionadas, e analisadas sobre qual seria o destino mais adequado para aquela jovem que só queria deixar no passado aquilo que não faz parte do seu presente.

 A adolescente foi ouvida, sua irmã foi ouvida, Ministério Público, Defensoria Pública, e a sentença saiu. Novamente ela seria reconduzida a semiliberdade na Fundação Casa e com Prestação de Serviços à Comunidade (onde eu trabalhava) com pedido de reavaliação precoce para uma possível Liberdade Assistida.

Enfim, todos entenderam a grandiosidade da decisão da adolescente em se apresentar para internação e se responsabilizar por suas escolhas bem como a importância na continuidade do vínculo com o SMSE em meio aberto por todo o trabalho de acompanhamento realizado pelo serviço.

Ao responder as perguntas feitas pelo juiz e promotoria foi quando percebi que estava tudo ali, na ponta da língua. Eu não precisei inventar, não me enrolei, sabia exatamente o que precisava ser dito, e por que eu estava ali. E quando o promotor perguntou o que eu entendia que o meio fechado poderia oferecer para esta adolescente e a única palavra que veio na minha cabeça foi SOFRIMENTO, eu entendi tudo. Eu entendi porque eu estava ali. Eu entendi que eu já sabia o meu papel. Mas eu também entendi a minha escolha. Eu entendi que um trabalho bem feito oferece possibilidades. Eu entendi que saber o meu papel é importante em cada passo que se dá durante a execução da medida. E eu entendi que cada história que chega ao SMSE alcança uma parte de mim que se mobiliza como potência de vida, como acolhimento, mas também como indignação para aquilo que não está certo. E eu entendi principalmente que o meu objetivo é o usuário do serviço de medida, os(as) adolescentes e suas famílias. É poder enxergar cada adolescente como parte mas também como único, e que perde enquanto ser humano por ter se envolvido em infrações. E que sempre que eu puder ser uma referência positiva e um ponto de ancoragem para que os adolescentes ganhem esse mundão, eu serei. Porque eu escolhi ser potência nesta luta.

 

Paula Martinez – Psicóloga Social


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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