No dia 23 de junho de 2016, participei de um momento mágico, daqueles que precisaremos de muito tempo para conseguir elaborar seu significado, sua importância. Refiro-me a uma fantástica roda de conversa com diversas Autoras Negras (maiúsculo proposital). Realizada no Terreiro Contemporâneo, no Centro do Rio de Janeiro, a atividade contou com Conceição Evaristo, Cristiane Sobral, Débora Almeida, Elaine Marcelina, Esmeralda Ribeiro, Lia Vieira, Mel Adún, Mirian Alves e muitas outras mulheres negras que com sua vasta produção afirmam, em termos próprios, que o texto escrito pode ser o que quisermos que ele seja.
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Em círculo, aprendi com Esmeralda Ribeiro que para Mulheres Negras, a palavra representa nossa “navalha”. E é de posse desta “palavra-navalha” que registro minha indignação frente à ausência de Autoras Negras na programação oficial da FestaLiterária Internacional de Parati 2016.
Em um país de maioria negra e de mulheres, portanto de maioria de Mulheres Negras, é um absurdo que o principal evento literário do país ignore solenemente a produção literária de mulheres negras como Carmen Faustino, Cidinha da Silva, Elizandra Souza, Jarid Arraes, Jennifer Nascimento, Livia Natalia e muitas outras. Que naturalizando o racismo, a curadoria considere que fez sua parte convidando autoras da raça Negra que infelizmente não puderam aceitar o convite. A não procura de palnos a, b, c diante destas supostas recusas relaciona-se à falta de compromisso político da FLIP com múltiplas vozes literárias nacionais e internacionais, conforme destacou a literata negra Cidinha da Silva, autora de Sobre-viventes, lançado este ano pela Editora Pallas.
Este silenciamento do nosso existir em uma feira que se reivindica cosmopolita, mas está mais para Arraiá da Branquidade, insere-se no passado-presente de escravidão, no qual a Mulher Negra é representada, vista e tratada como um corpo a ser dissecado. Um pedaço de carne que está no mundo para servir. Um objeto a ser estudado e narrado pelo outro branco. Foi assim com Maria Firmina dos Reis, Mulher Negra do Maranhão, autora de Úrsula, o primeiro romance abolicionista da história do Brasil, datado de 1859 e que, embora reeditado pela Editora Mulheres em 2004, mantém-se desconhecido da maioria das pessoas.
Imagem de Maria Firmina dos Reis, s/d.
Repetiu-se com Carolina Maria de Jesus, uma Mulher Negra. Mineira de Sacramento, a autora de Quarto de despejo: diário de uma favelada, de 1960, migrou para São Paulo onde trabalhou como empregada doméstica e catadora de papel. Carolina, que considerava “a favela o quarto de despejo da cidade”, priorizou em sua pena a humanidade e o cotidiano das pessoas negras. Uma leitura indispensável para se compreender a história das desigualdades de gênero, raça e classe no Brasil. O sucesso de Carolina e a visibilidade de sua obra, traduzida para dezenas de línguas como o japonês, não possibilitou que a intelectual tivesse sua condição de escritora respeitada, haja vista ter morrido pobre e esquecida pela opinião pública. A narrativa do biógrafo de Clarice Lispector acerca de Carolina como uma “empregada doméstica” “tensa e fora do lugar” representa de forma violenta e emblemática o confinamento das Mulheres Negras às representações racistas.
Numa foto, ela [Clarice] aparece em pé, ao lado de Carolina Maria de Jesus, negra que escreveu um angustiante livro de memórias da pobreza brasileira, Quarto de despejo, uma das revelações literárias de 1960. Ao lado da proverbialmente linda Clarice, com a roupa sob medida e os grandes óculos escuros que a faziam parecer uma estrela de cinema, Carolina parece tensa e fora do lugar, como se alguém tivesse arrastado a empregada doméstica de Clarice para dentro do quadro. Ninguém imaginaria que as origens de Clarice fossem ainda mais miseráveis que as de Carolina. (Benjamin Moser. Clarice. Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2011.)
Clarice Lispector e Carolina Maria de Jesus em sessão de autógrafos em livraria. Rio de Janeiro, anos 1960.
Em nome deste passado-presente, que também é acionado nas lamúrias da casa-grande frente à tortuosa regulamentação do trabalho doméstico, somos rechaçadas toda vez que assumimos papeis que para nós não foram pensados. No mercado editorial, que segue definindo a autoria como um lugar masculino e branco. Na academia, onde nossas pesquisas são desqualificadas como militantes (como se isso fosse um problema!). Nos editoriais de moda, que insistem em nos violentar com modelos brancas blackfaces. No confinamento à favela, à escravidão e ao trabalho doméstico nas telenovelas, salvo exceções que mais confirmam regras do que apontam para transformações. No desrespeito à nossa arte, como temos acompanhado na tentativa racista de boicote ao trabalho de Elza Soares.
O fato da organização da FLIP não assumir como prioridade indispensável a participação de escritoras negras nos cinco dias de evento faz parte do pacote de falas, movimentos e ações conservadoras que têm marcado a macro política nacional. O fato das 17 mulheres convidadas para o palco principal da feira serem brancas é parte de uma mesma obra. Um livro da supremacia branca, que se divide em muitos capítulos estruturados a partir das articulações entre racismo, machismo e transfobia. A composição ministerial do governo de Michel Temer, onde paira a exclusividade de homens brancos, cisgêneros, heterossexuais. As perdas irreparáveis como os cortes no Programa Bolsa Família. A criminalização do aborto. A extinção da Secretaria de Políticas para as Mulheres, da Secretaria de Políticas para a Promoção da Igualdade Racial assim como da dos Direitos Humanos. Se antes tínhamos pastas autônomas, hoje nossas pautas ficam sob a chancela do Ministério da Justiça e Cidadania, que historicamente tem tratado as Mulheres Negras como objeto da lei através de categorias desumanizadoras como, por exemplo, “mãe de menor”. Em meio a todo este cenário de retrocessos que atingem de forma drástica as Mulheres Negras do Brasil, a FLIP, ao nos invisibilizar como autoras e produtoras de conhecimentos significativos constitui-se como o epílogo deste livro que bem poderia se chamar Lições do Brasil Antidemocrático.
Em uma Feira Literária Internacional que em 2016 traz como tema a “mulher”, sem no entanto considerar a pauta prioritária dos movimentos transfeministas e feministas negros acerca das diversas experiências que definem o que é ser mulher, vemos-nos obrigadas a retomar a pergunta de 1851 da abolicionista afro-americana Soujourner Truth: “e não sou eu uma mulher?” Em um país em que 93,9% dos autores são brancos e 72,7% homens, a feira que podia representar um contraponto, posiciona-se na linha “mais do mesmo”, comunicando para seu público que o ato de ler e escrever não é para o nosso bico. Como uma Mulher Negra, pesquisadora da escrita e da história das Mulheres Negras, eu encerro com Esmeralda Ribeiro: “ser invisível quando não se quer ser” (…) mas “a brincadeira agora é outra”. Somos humanas. Somos diversas. Somos visíveis. E como autoras e donas de nossas próprias histórias faremos valer a luta ancestral para que nossa palavra seja impressa, ouvida e respeitada.
Esmeralda Ribeiro no lançamento do Cadernos Negros 27 do Quilombhoje, dez. 2004.
Giovana Xavier – feminista negra, professora da Faculdade de Educação, coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras/UFRJ e co-idealizadora da Campanha #vistanossapalavraflip2016 com Janete Santos Ribeiro.