Carta aos brasileiros: somos de fato um país acolhedor aos estrangeiros?

FONTEPor Jamil Chade, do UOL
Manifestantes pedem, na Barra da Tijuca, justiça pelo assassinato do congolês Moïse Mugenyi Kabagambe (Foto: LORANDO LABBE/ESTADÃO CONTEÚDO)

Fomos criados escutando vários mitos. O de que somos o país mais alegre do mundo é apenas um deles. Há também o da democracia racial, que ajudou a prolongar a opressão sobre uma população inteira.

Outro que permeou o imaginário coletivo é o de que somos um país acolhedor.

“Qualquer um pode ser brasileiro”, diz, com orgulho e batendo no peito, um patriota desavisado.

Mas eventos recentes revelam uma realidade bem diferente, ao ponto de a própria ONU constatar que não passa de um mito.

Em abril do ano passado, uma carta de 16 páginas enviada ao governo por dez relatores especiais da ONU desmontava essa tese de um país de braços abertos.

O texto era direcionado à presidência de Jair Bolsonaro. Denunciava uma série de violações de direitos humanos em políticas públicas em que as vítimas eram imigrantes e refugiados, principalmente africanos, haitianos e venezuelanos.

Muito além de constatar problemas profundos nas políticas públicas de um governo de extrema direita, o texto alertava para outro fenômeno: a xenofobia na sociedade.

Estamos alarmados com os relatos de que a discriminação racial sistêmica e a violência racista contra migrantes, refugiados e requerentes de asilo foram exacerbadas nos últimos anos

Relatores da ONU

Os relatores ainda se dizem “profundamente preocupados” com a discriminação estrutural contra essa população, além da xenofobia contra migrantes, refugiados e requerentes de asilo africanos.

“Alguns migrantes africanos e haitianos no Brasil tornaram-se vítimas de violência física e simbólica no país. Nos últimos 20 anos, tem havido múltiplas manifestações de racismo e xenofobia, incluindo:

  • assassinatos e prisões arbitrárias de africanos e haitianos;
  • o incêndio de residências universitárias que apoia os migrantes africanos;
  • e expressões públicas de sentimentos racistas e xenófobos, incluindo discursos de ódio e grafites contra a presença de migrantes africanos em cidades brasileiras.”

O grupo apontava para atos generalizados de discriminação por parte de atores privados. “No norte do Brasil, principalmente nos estados de Roraima e Amazonas, têm ocorrido manifestações de xenofobia em larga escala, perpetuadas por membros da comunidade local. Isso inclui insultos, intimidação, ameaças, discurso de ódio público e violência física, incluindo homicídio.”

Refugiados sem teto e mulheres migrantes grávidas podem ter uma maior vulnerabilidade a essas formas de xenofobia e violência.

Segundo eles, o ambiente xenófobo significa que migrantes e refugiados não se sentem seguros buscando apoio de hospitais, escolas e outras instituições públicas. Em alguns locais, os atos contra essa população ainda ganham um componente racista.

A região Sul do Brasil tem experimentado racismo e xenofobia através da hostilidade pública contra haitianos, senegaleses e outros migrantes negros.

No ano passado, o congolês Moïse Kabagambe, de 24 anos, foi morto no Rio de Janeiro. Seus parentes lembravam que ele fugia de um país em guerra.

Mais recentemente, as pessoas que chegaram ao país, após serem evacuados de Gaza, tiveram de pedir proteção ao Estado, diante da avalanche de ataques nas redes sociais e ameaças.

No Brasil, quase todos nós viemos de algum lugar. Seja de forma escravizada ou na busca de uma vida nova. Acolher, portanto, não é apenas uma obrigação legal.

Nós poderíamos ser eles. Nós fomos eles. Nós somos eles.

Saudações democráticas,

Jamil Chade

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