Casa de acolhimento tenta sobreviver na pandemia

Artigo produzido por Redação de Geledés

Em 38 anos, mais de 100 pessoas, entre elas egressos do sistema penal e crianças com mães nas prisões, já passaram pela casa de acolhimento de Francisca Regina Siplício, em Ferraz de Vasconcelos; nem a ameaça do coronavírus a fez parar 

Existem pessoas que não têm como fazer o isolamento social, indicado pela Organização Mundial de Saúde como medida de prevenção da covid-19. É o caso de Francisca Regina Siplício, de 56 anos, que há 38 anos criou uma casa de acolhimento para abrigar pessoas em situação de vulnerabilidade social, incluindo dependentes químicos e egressos do sistema penal no bairro do Cambiri, em Ferraz de Vasconcelos, no interior de São Paulo.

Francisca não acredita mais nos políticos, mas aposta em  projetos que podem salvar vidas. Por isso, todos os dias, ela transforma o itinerário de pessoas da sua região ao oferecer abrigo e apoio psicológico. “As pessoas aqui do bairro os enxergam com preconceito, mas eu não os vejo assim. Eu faço o possível para que eles consigam se reerguer. Eu ofereço apoio emocional e os faço enxergar que não estão sozinhos”, diz. 

Por ser aposentada, Francisca não entrou na lista do governo federal com direito a receber o auxílio emergencial. Como fonte de seu sustento e das 18 pessoas que vivem atualmente em sua casa de acolhimento, ela conta com os R$ 600,00 da aposentadoria somados ao pouco dinheiro que tira da reciclagem, feita através do trabalho de catadora. “No início (da pandemia), recebemos muita ajuda com cestas básicas, mas as dívidas foram se acumulando. Aqui em casa usamos um pacote de arroz por dia”. conta.

A pandemia não só ajudou a escancarar a desigualdade social como a aprofundou. De acordo com o relatório “Quem Paga a Conta?”, publicado pela Oxfam, os bilionários da América Latina aumentaram a fortuna em US$ 48,2 bilhões durante a pandemia.“O povo que entra na política não liga para o nosso país e todo mundo está se acabando”, opina Francisca, ao comentar a ausência de um olhar acuado para estas populações.  

Histórico de acolhimento

Francisca recebeu em casa sua primeira criança em situação de vulnerabilidade quando tinha apenas 18 anos. Posteriormente, outras seis que eram filhas de mulheres que estavam no cárcere também foram para lá. Uma das moradoras, chamada de Índia, é egressa do sistema penal e mora na casa com os seus seis filhos até hoje. Condenada a cinco anos, ela lutou durante anos para largar o vício em drogas. “Ela havia me dito que precisava dos filhos para se reerguer. Através do registro de nascimento, eu passei a investigar e ir em busca deles. Fui recolhendo-os um a um. Um estava no Itaim, outro em São Mateus e assim por diante, lembra. Apenas um filho de Índia não conseguiu ser resgatado, pois foi adotado ainda bebê no hospital. 

Todos os adultos que moram na casa trabalham como catadores de recicláveis. De segunda a sábado, eles acordam às 4h da manhã e perambulam pelas ruas até às 11h à procura de material. À tarde, eles limpam tudo e às 18h descansam para recomeçar no dia seguinte. Durante a pandemia, os preços do ferro e do papelão aumentaram, o que ajudou melhorar um pouco a renda da casa. 

Os mercados da região também começaram a doar alimentos que estão próximos de vencer a validade. Durante o trabalho, os moradores também acabam resgatando animais de rua que vão para a casa. Isso sem contar um lago para os patos, horta comunitária e um chiqueiro para os porcos. As crianças construíram uma casa na árvore em uma parte do quintal e lá brincam livremente. Todos têm uma vida confortável e dizem estar felizes por viverem em união. 

Na image, Francisca mostra seus recicláveis após a limpeza

Francisca não sabe dizer o número exato de quantas pessoas já passaram pela sua casa, mas a estimativa é de mais de 100. Nas datas comemorativas, muitos deles telefonam, a chamam de “mãezona”, e a agradecem pela ajuda. 

A novidade é que três crianças que ela ajudou a criar vão ganhar oficialmente seu sobrenome no registro de filiação. São elas Giliard, Camila e Jonathan. Os três chegaram na casa bem pequenos, sendo que Jonathan, hoje com 14 anos, era ainda um bebê de colo. 

Um dos integrantes mais recentes é um homem que estava em uma casa de recuperação da região e passou a viver no local ao lado do seu filho de oito anos. Em um mês, ele já largou a maior parte dos vícios. 

“Espero que os nossos governantes deem mais atenção aos usuários de drogas. Eles são doentes e precisam de tratamento, de um acolhimento. Essa pedra do crack vai acabar com a humanidade. Isso também é uma pandemia que os governos não estão observando”, alerta. 

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