Chacina do Jacarezinho: ‘A gente não merece viver em um cenário de guerra’

FONTEPor Jéssica Moreira, da Folha de S.Paulo
Ruas de Jacarezinho após serem lavadas de sangue (Reprodução Instagram Joel Luiz)

O dia 6 de maio ficará registrado na história do Brasil como uma quinta-feira sangrenta. Como se não bastasse todas as dores e dificuldades que a pandemia evidencia, os moradores de Jacarezinho, na zona norte do Rio de Janeiro (RJ), amanheceram sob intenso tiroteio, invasão às suas casas, celulares confiscados e a morte de pelo menos 25 pessoas.

Nas redes sociais, fotos e vídeos denunciam que aquilo que o Estado do Rio de Janeiro chamou de operação foi uma verdadeira chacina. Além das 25 mortes registradas oficialmente, a população acredita que houve ainda outros homicídios.

O advogado Joel Luiz, nascido, crescido e militante de Direitos Humanos em Jacarezinho, caminhou com dor pelas ruas de sua infância. “Andamos pelo Jacaré, entramos em quatro, cinco, seis casas, todas com a mesma dinâmica: casas arrombadas, tiros de execução […] O menino morreu sentado em uma cadeira. Ninguém troca tiro sentado em uma cadeira, isso é execução. Isso é barbárie”, afirmou o advogado em vídeo em sua conta no Instagram.

A ação da polícia durou mais de 9h. Foi a mais letal da história da polícia do Rio, segundo dados da ONG Fogo Cruzado. A operação foi realizada pela DPCA (Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente), com o apoio da CORE (Coordenadoria de Recursos Especiais).

“Mataram 25 pessoas ou mais. Isso acabou com o tráfico de drogas? Isso vai acabar com o tráfico de drogas? A partir de amanhã não vai ter mais drogas sendo vendidas nas vielas do Jacarezinho porque 25 pessoas foram mortas?, questionou Joel.

Para o advogado, o que presenciou hoje deixa claro a inexistência da democracia. “Isso aqui não é democracia. Definitivamente, isso aqui não é a democracia que se fala nos livros, que a gente aprende na faculdade, que falam no Jornal Nacional […]. Isso aqui não é nada do que a gente pensa sobre o que é viver em sociedade”, disse.

“É muito cruel você passar na rua onde você brincou, onde sentou com os amigos, tomou cerveja, você viveu a vida e ver uma dezena de marcas de tiro na porta de um bar, na loja de cosméticos. Balas e balas no chão, cartuchos”, lamentou o advogado. “Ninguém merece isso. Não estamos aqui falando em nome de A, B ou C. Só falando que isso aqui é cenário de guerra e a gente não merece viver em um cenário de guerra. Não é justo você entrar em seu território e ver cenário de guerra. Ver casas arrombadas. Que Dia das Mães essas pessoas vão ter?”.

Em nota oficial , as organizações, coletivos e ONGs locais também mostraram sua indignação. “Em meio a uma pandemia que matou 410 mil pessoas, 45 mil só no Rio de Janeiro, ocorreu a operação mais letal da história do estado, sob a justificativa de proteger ‘os direitos fundamentais de crianças e adolescentes e demais moradores que residem nessas comunidades”.

No perfil de Joel nas redes sociais, há diversos vídeos de moradores e moradoras contando suas versões sobre a história de hoje. A imagem que vai marcar essa quinta-feira é a das paredes e piso de salas, cozinhas e escadas respingado sangue. Não só uma, mas muitas delas, escancarando uma realidade que mata de muitas formas as favelas.

Em um vídeo, uma moradora guia a pessoa com a câmera e mostrando os pingos de sangue pela escada. No fim das escadas, o cômodo cheio de sangue. “Filma, filma”, a mulher pede, como em um pedido de socorro e também registro daquilo que não basta mais ser apenas verbalizado. São imagens muito duras e difíceis de ver e de aceitar em qualquer circunstância.

Uma delas é uma senhora negra, que pede para não mostrar o rosto. Sua voz narra o inenarrável, a dor e indignação de uma mãe querendo informações sobre o corpo de um filho:

“Eles  apontaram a arma para mim de fuzil no meu rosto dizendo que eu tinha que morrer, só porque eu fui falar com eles, fui perguntar onde o corpo do meu filho estava. Meu filho morreu hoje, eles chegaram atirando. Eles são umas pestes”, diz a senhora em vídeo que pode ser visto aqui.

A CIDADE DA POLÍCIA

Desde 2013, o bairro do Jacaré abriga a Cidade da Polícia, um espaço da Polícia Civil do Estado do RJ, que comporta 15 delegacias especializadas, onde estão cerca de 3 mil agentes. A comunidade vive a aflição de estar sempre muito perto dos policiais.

“De um lado você está na Cidade da Polícia e você atravessa a rua e está no Jacarezinho. Isso mostra um pouco da complexidade da dinâmica da cidade do Rio de Janeiro. Que é essa cidade repartida ao meio”.

Quem conta isso é Seimour Souza, coordenador do Lab Jaca e do NICA (Núcleo Independente e Comunitário de Aprendizagem). Conhecedor dos desafios e potenciais da comunidade, hoje Seimour ouviu os mais dolorosos depoimentos da boca daqueles que ele convive diariamente no Nica ou nas entregas de cestas básicas diante da pandemia.

“A palavra que resume o dia de hoje é medo. Medo do que aconteceu, medo de denunciar. As pessoas não querem falar. Tiveram pessoas assassinadas dentro de suas próprias casas e não querem falar, não querem ser identificadas, conta.

“É algo inominável pra gente. No cotidiano e na gramática do genocídio que a gente vive isso é só mais uma peça no mosaico do extermínio da população negra”, afirma Seimour. “O mundo, o Brasil, a cidade do Rio de Janeiro segue naturalizando isso como se fosse justificável em alguma medida o assassinato de 24 pessoas, 25 incluindo o policial.”

#CHACINADOJACAREZINHO

Por volta das 12h, a população saiu pelas vielas da comunidade pedindo justiça e, à noite, realizaram um tuitaço pedindo justiça com a hashtag #ChacinadoJacarezinho. “São as mulheres negras que choram a morte dos seus filhos. Feliz Dia das Mães pra quem?”, escreveu em um dos tweets o Instituto Marielle Franco.

Eliane Vieira, integrante do Coletivo Mães de Manguinhos, diz que “o braço armado do Estado não pode sair por aí assassinando as pessoas como se fossem seres supremos que decidem a vida e a morte”.

Moradora de Manguinhos, próximo ao local da chacina, Elaine conta que as pessoas estão apavoradas. “Por medo da madrugada e por saber que a qualquer momento tudo pode acontecer”, diz.

Ela conta que as Mães de Manguinhos e demais movimentos organizados do Rio estão cobrando dos respectivos órgãos uma resposta nesse momento. “Não é possível que uma chacina dessa ainda seja encarada como operação”

“Exigimos explicações e questionamos: como o Estado pretende atuar no território depois dessa chacina? Como recuperar o trauma das milhares de pessoas que foram submetidas ao terror policial? Como os familiares das vítimas serão amparados? Quais os mecanismos institucionais de prevenção às ações como as que vivenciamos no dia de hoje? Esperamos respostas”, aponta também a nota oficial das organizações locais.

“Ser um militante negro contra o genocídio no Brasil faz com que a gente se questione não ‘se a gente vai ser assassinado, mas quando quando e como. Esse dilema que a gente tem que enfrentar”, diz Seimour .

ATO

Nesta sexta-feira (7) acontece ato às 17h da tarde, no G.R.E.S Unidos do Jacarezinho, contra as violações ocorridas no Jacarezinho. O ato está sendo organizado pelas organizações locais: LAB Jaca, NICA (Núcleo Independente e Comunitário de Aprendizagem), IDPN (Instituto de Defesa da População Negra), Associação de moradores do Jacarezinho, Cafuné na Laje, G.R.E.S Unidos do Jacarezinho, Jcré Facilitador, Jacaré Basquete e ONG Viva Jacarezinho. Clique aqui para mais informações.

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