Cidadania e Gente Negra no Brasil – uma incompatibilidade construída

FONTEAna Flávia Magalhães Pinto, enviado para o Portal Geledés

Para o bem e – por mais estranho que pareça – para o mal das pessoas negras, desde 13 de maio de 1888, passou-se a dizer aos quatro cantos que estava abolida a escravidão no Brasil. Nos primeiros dias, não faltaram manifestações de crença no início de uma “Nova Era”, tal como feito pelos integrantes da Revista Illustrada, em 19 de maio daquele ano: “Com orgulho, podemos levantar a cabeça e encarar as nações livres do nosso continente e do mundo e fraternizar com elas, pois a palavra escravo deixou, também, de ter significação, na língua que falamos”. Legalmente, todos os homens e mulheres eram pessoas livres, logo em condições de pleitear a cidadania brasileira. 

Revista Illustrada, n. 498, 19 de maio de 1888. Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.

Porém, as coisas não eram tão simples assim e precisamos admitir que o gesto de virar uma página não apaga as anteriores. Ou seja, a assinatura da Lei n. 3.353 pela princesa Isabel não tinha força para desmontar interdições à cidadania efetiva de gente negra, interdições que atravessavam e iam além da letra deste e outros textos da legislação nacional. Nesse sentido, além de falar dos problemas enfrentados no período que se seguiu à abolição, em que a força do racismo tem sido mais admitida, é preciso olhar para trás e observar como ao longo do século XIX foi sendo construída uma espécie de incompatibilidade entre indivíduos negros e a figura do cidadão pleno – uma prática fundamental para a naturalização da discriminação racial em diferentes épocas e de múltiplos sentidos. 

Se recuarmos algumas décadas, veremos que, a começar pelo estabelecido na Constituição Política do Império do Brasil, de 1824, não havia equivalência entre liberdade e cidadania. O primeiro parágrafo do artigo 6, que tratava sobre quem seriam os cidadãos da jovem nação, dizia: “São Cidadãos os que no Brasil tiverem nascido, quer sejam ingênuos, ou libertos, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por serviço de sua Nação”. Tendo optado pela manutenção da escravidão no momento da independência do país, em 1822, não foi por acaso que as elites políticas explicitaram no texto constitucional a obrigatoriedade de nascimento no Brasil para se poder desfrutar naturalmente o status de cidadão. Além de negar por princípio aos escravizados essa condição, a lei excluía também os libertos africanos de acessarem a cidadania brasileira quando eventualmente se livrassem do cativeiro. 

As razões para isso foram até mesmo registradas nos Anais da Assembleia Nacional Constituinte de 1823. A princípio, o texto previa a cidadania para todos “os escravos que obtiverem carta de alforria”. Contrário a essa redação, o deputado pela província do Ceará Pedro José da Costa Barros argumentou: “Eu nunca poderei conformar-me que a que se dê o título de cidadão brasileiro indistintamente a todo o escravo que alcançou carta de alforria. Negros boçais, sem ofício, nem benefício, não são, no meu entender, dignos desta honrosa prerrogativa; eu os encaro antes como membros danosos à sociedade à qual vêm servir de peso quando lhe não causem males”.

Outros compartilhavam do mesmo receio e sugeriram emendas para que a restrição fosse a mais eficiente possível. Por outro lado, havia aqueles constituintes que se mostravam favoráveis a reconhecer a cidadania de africanos libertos. Entre eles, estava José Maria da Silva Lisboa, o futuro visconde de Cairu, mas que fazia a defesa a partir de argumentos um tanto controversos. Em suas palavras: “Ter a qualidade de cidadão brasileiro é sim ter uma denominação honorífica, mas que só dá direitos cívicos e não direitos políticos, que não se tratam no capítulo em discussão e que são objeto do capítulo seguinte, em que se trata do cidadão ativo e proprietário considerável, tendo as habilitações necessárias à eleição e nomeação dos empregos políticos do império”. O debate parecia mesmo acalorado e Silva Lisboa ainda achou por bem recomendar que não dessem vazão ao que hoje poderíamos chamar de convicções racistas: “Deixemos, senhores, controvérsias sobre cores dos povos; são fenômenos físicos, que variam conforme os graus do equador, influxos do sol e disposições geológicas e outras causas muito profundas, que não são objetos desta discussão”.

Se avançarmos na leitura da Constituição, notaremos que, tal como tinha sido anunciado na fala de Silva Lisboa, os libertos nascidos no Brasil não foram previstos entre aqueles que poderiam exercer plenamente os direitos políticos, como consta no artigo 94. De todo modo, outros entraves poderiam ser acionados para dificultar que homens pretos e pardos nascidos livres disfrutassem a cidadania em plenitude. Sendo assim, não se pode dizer que não existiram interdições legais à cidadania orientadas por valores raciais, afetando amplos setores da sociedade brasileira. Aliás, no início do século XIX, o Brasil respondia pelo maior contingente de pessoas negras livres e libertas das Américas, mesmo havendo uma intensa entrada de africanos escravizados via tráfico transatlântico. Portanto, as barreiras instituídas na Constituição de 1824 informam que nem todos que aqui viviam e trabalhavam eram bem-vindos para serem cidadãos no Brasil. 

Convém frisar que essas subdivisões serviam para criar hierarquias entre a gente negra. Escravizados estavam totalmente fora do jogo da cidadania. Africanos libertos eram apátridas se não conseguissem se naturalizar de acordo com as condições sugeridas no artigo primeiro, parágrafo quinto. Brasileiros libertos tinham uma cidadania oficialmente parcial. E sujeitos negros livres de vários tons de pele teriam que se assegurar de que os costumes da exclusão não alcançassem sobretudo os homens, já que as mulheres também eram praticamente carta fora do baralho. Havia pressupostos legais mal disfarçados que embasavam esse cenário de precariedade da liberdade de gente africana e seus descendentes que se arrastaria por séculos. 

Com o avançar das décadas, o quantitativo da população negra livre e liberta foi se tornando ainda mais expressivo. De acordo com o Recenseamento Geral do Império de 1872, para cada dez pessoas pretas e pardas, quatro ainda eram escravizadas. As outras seis, ou seja, a maioria, já viviam nessa aglomeração de livres e libertos que faziam a vida de muitas cidades como Salvador, Recife, Rio de Janeiro, São Paulo, São Luís, entre outras que foram até reconhecidas como cidades negras. Para essas pessoas era importante acabar com a escravidão não apenas como um gesto de solidariedade para com os ainda escravizados. A universalização da liberdade era um passo importante para garantir que as promessas de cidadania ou vida digna tivessem chance de ser uma realidade para a maioria. Não podemos esquecer que, além de constrangimentos em situações de convívio social, muitas foram as pessoas negras libertas ou nascidas livres que foram vítimas de reescravização ou escravização ilegal no Brasil, mesmo sendo isso um delito previsto no Código Criminal do Império

Um exemplo que tem se tornado bastante conhecido é do abolicionista Luiz Gama, que foi submetido à escravidão após seu pai o vender aos dez anos de idade, recuperou sua liberdade oito anos depois e a partir daí passou a se dedicar a libertação de centenas de homens, mulheres e crianças por meio de ações na Justiça. A propósito, ele me parece uma excelente porta de acesso aos debates sobre racismo e cidadania no Brasil. Ao contrário do que o vício de pensar as trajetórias de gente negra livre como exceções desconectadas da realidade da maioria, Gama conviveu com, influenciou e foi influenciado por outros indivíduos negros, livres, letrados e bons de luta por justiça e liberdade no século XIX, como demonstro no livro Escritos de Liberdade: literatos negros, racismo e cidadania no Brasil oitocentista

Fato curioso, em diferentes contextos, eu deparei com esses indivíduos reivindicando o respeito ao artigo 179 da Constituição, sobretudo no que fala da obrigatoriedade de valorizar os cidadãos tão somente com base em seus talentos e virtudes. Isso aparece em todos os jornais da imprensa negra seja antes, seja depois da abolição. E também em jornais abolicionistas, em especial aqueles liderados por jornalistas negros como a Gazeta da Tarde, fundada em 1880 por José Ferreira de Menezes, advogado negro e amigo de Luiz Gama e José do Patrocínio. Este último assumiria o periódico após a morte de Menezes em 1881 e daria continuidade à iniciativa e à luta. 

Abolicionistas negros. Ilustração de autoria de Victor Epifânio, 2015.

Denunciar o desrespeito à lei, apesar de frágil, era um recurso que se fazia necessário porque frequentemente, como noticiado nos jornais, eram registrados casos de violação dos lares de cidadão de cor, manipulação de processos seletivos para que não fossem nomeados homens negros aprovados em concursos públicos, exclusão e destruição de espaços escolares, constrangimentos em ambientes públicos da vida política e cultural etc. Esse somatório de arbitrariedades justificou o engajamento de muita gente negra nas múltiplas frentes abolicionistas que foram se criando, para além dos termos propostos pelas elites. 

Foi assim que irmandades religiosas, associações operárias, grupos escolares, de artistas e outras coletividades também protagonizaram iniciativas abolicionistas, no plural. O melhor dimensionamento dessa agitação, que incluiu, certamente, movimentações promovidas por gente ainda escravizada, nos permite perceber como a assinatura da Lei Áurea pela princesa Isabel foi apenas um episódio de uma luta ampla, na qual os sujeitos envolvidos forjaram projetos variados de futuro. 

No jogo de forças político-econômicas em que os nossos tinham uma série de desvantagens, a abolição teve seus desdobramentos conduzidos por sujeitos que transformaram pessoas negras livres de muitas gerações, libertas e até então escravizadas em simplesmente “negros e mulatos”. Esse nivelamento por baixo promovido via racismo fantasiado de uma cordialidade que não se sustentava nem na fachada autorizou a fixação de todos nós no lugar do “eterno descendente de escravo”. O escravo do mundo livre, aquele que não é plenamente humano, não é plenamente livre, nem plenamente cidadão. 

Foi por isso que eu iniciei esse artigo dizendo que simplesmente afirmar que a escravidão está extinta no Brasil tem servido para promover o bem e ao mesmo tempo o mal das pessoas negras. A reedição de promessas de liberdade e cidadania e o seu não cumprimento tem feito com quem até mesmo percamos nossa capacidade de compreender que nem todo mundo sonhou o que vimos acontecer no pós-abolição e que o avanço desenfreado da violência muitas vezes foi contido porque houve a resistência dos descontentes. Descontentes que tinham nome e sobrenome, pele negra de vários tons, cabelos de variadas texturas, gêneros, orientações sexuais distintas e diferentes sotaques. 

 

Assista ao vídeo da historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto no Acervo Cultne sobre este artigo:

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao conteúdo previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC)

Ensino Fundamental: EF08HI12 (8º ano: Caracterizar a organização política e social no Brasil desde a chegada da Corte portuguesa, em 1808, até 1822 e seus desdobramentos para a história política brasileira); EF08HI15 (8º ano: Identificar e analisar o equilíbrio das forças e os sujeitos envolvidos nas disputas políticas durante o Primeiro e o Segundo Reinado); EF08HI19 (8º ano: Formular questionamentos sobre o legado da escravidão nas Américas, com base na seleção e consulta de fontes de diferentes naturezas); EF08HI20 (8º ano: Identificar e relacionar aspectos das estruturas sociais da atualidade com os legados da escravidão no Brasil e discutir a importância de ações afirmativas); EF09HI03 (9º ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados).

Ensino Médio: EM13CHS102 (Identificar, analisar e discutir as circunstâncias históricas, geográficas, políticas, econômicas, sociais, ambientais e culturais de matrizes conceituais (etnocentrismo, racismo, evolução, modernidade, cooperativismo/desenvolvimento etc.), avaliando criticamente seu significado histórico e comparando-as a narrativas que contemplem outros agentes e discursos); EM13CHS502 (Analisar situações da vida cotidiana, estilos de vida, valores, condutas etc., desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade, preconceito, intolerância e discriminação, e identificar ações que promovam os Direitos Humanos, a solidariedade e o respeito às diferenças e às liberdades individuais).

 

Ana Flávia Magalhães Pinto

Professora do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB), Coordenadora da Regional Centro-Oeste do GT Emancipações e Pós-Abolição da Anpuh; E-mail: anaflaviahist@gmail.com; Instagram/Twitter: @anaflaviahist

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 
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