Cidade Fragmentada: existe espaço para mulher negra?

FONTEPor Aline da Silva Sousa, enviado para o Portal Geledés
Aline da Silva Sousa (Foto: Arquivo Pessoal)

Imaginemos um conjunto heterogêneo de pessoas inserido na dinâmica de um jogo de lego, onde as regras são ditadas por uma parcela mínima do grupo que é detentora de todo e qualquer poder de decisão referente ao jogo. Assim, cada peça tem seu lugar definido por essa minoria – que fixa suas prioridades como único caminho possível a ser trilhado – e, em contrapartida, as peças são inseridas de fato no tabuleiro pela parte mais numerosa do grupo – que não tem espaço para questionamentos e/ou sugestões. Feitas essas considerações, questiona-se: o resultado desse jogo é fruto do acaso ou é algo sistematizado com base em ideias desonestas que atendem aos interesses de um único lado da história? 

Fico com a segunda linha de raciocínio e aproveito para dizer que enxergo essa mesma lógica projetando as cidades atuais, considerando que estas são, via de regra, espaços físicos que têm seu funcionamento estruturado para receber tecnologias parasitárias de manutenção de poder que, por óbvio, exploram e segregam da forma mais violenta que se possa imaginar e sentir. Os espaços urbanos são construídos por nós, mas não para nós enquanto povo preto. E vale pontuar que esse projeto não começou ontem: ele tem raízes profundas que colaboram para a continuidade de legados concretos da escravidão, como nos ensina Lélia Gonzalez. Frente a esse contexto, gostaria de refletir aqui sobre as condições que permeiam a nossa condição enquanto mulher negra em meio a esse moinho que se tornou o espaço urbano.

Penso que, para a construção dessa reflexão, devemos partir do fato de que nós, enquanto povo preto, fomos arrancados de nossa terra natal. Assim como explicado por Carla Akotirene, a diáspora negra deu suor, lágrimas e sangue ao gosto do mar – acrescento ainda que foi nesse mar salgado que os nossos direitos, memórias, subjetividades e saberes naufragaram. Tivemos, então, a nossa dignidade sequestrada pelo colonialismo, fomos jogados em outro continente para entregar a nossa força de trabalho sem qualquer contrapartida coerente com a sustentação que fornecemos (tempos outros e hoje). Neste continente em que desembarcamos, todos os direitos são colocados em prateleiras que não estão ao nosso alcance, e para tentar alcançá-los temos que escalar um arranha-céu por dia (sem nenhuma garantia, equipamento ou treinamento prévio).

Tecendo algumas considerações sobre a nossa condição de mulher negra lançada nesse moinho e tendo em vista a gama de direitos que nos é negada, destino este espaço para comentar sobre o direito à cidade, já que, assim como no jogo de lego, fomos colocadas num espaço que não contempla todas as pessoas de forma igualitária – e não por acaso. Essa sistematização desencadeia no processo que Flávio Villaça define como a criação de dois “centros” da cidade por parte das classes dominantes, ou seja, um centro para elas e outro para os demais, gerando problemas para a outra cidade em ótica, a periférica. 

É importante destacar que sempre estive do lado de cá, experienciando cotidianamente que este é o lado desassistido pelas esferas de poder. Não temos caminho livre para acessar infraestrutura, segurança, educação, saúde, mobilidade, lazer, bem como qualquer outro direito básico. A realidade é que o lado de cá sempre teve que se virar nos trinta para garantir o mínimo necessário para sobrevivência (quando sobrevive); aqui sempre se acordou mais cedo para garantir o café na mesa do lado de lá; o lado de cá nasce sabendo que a instituição que deveria garantir segurança, via de regra, é a que traz terror… É o povo do lado de cá que acha bonito ouvir falar sobre saneamento básico mas que, tal qual caviar, não conhece, só ouve falar.

Do lado de cá, somos/conhecemos/vemos Carolinas, Pretas Raras, Suelis e Lélias que madrugam, correm contra o tempo, fazem de tudo para fugir do que as estatísticas rezam, servem os da casa branca, rezam para não ”fraquejar”, levantam umas às outras e que fazem um dia ter 28 horas para assim sobrar tempo para garimpar direitos, traçar estratégias de subversão da lógica imposta e sonhar com o dia em que doutores e doutoras serão “dos nossos” e residirão do lado de cá. Aqui, cada capelo levantado representa uma corrente rompida: é mais uma pessoa que, em teoria, vai conseguir acessar direitos negados até então.

Assim, entendendo que a cidade é intencionalmente fragmentada e que, estando no quarto de despejo, precisamos acessar outros pontos da cidade para trabalhar, estudar, fazer uso do limitado poder de compra que temos, bem como realizar outras atividades necessárias para atender ao chamado da dinâmica social, sinto que não temos outra opção senão oscilarmos feito um pêndulo de um canto a outro da cidade. Nesse sentido, considerando os problemas que enfrentamos no que diz respeito à mobilidade – direito que também migrou para a condição de mercadoria – esse transitar não traz boas companhias uma vez que, em resumo, ele é caro, inseguro, racista e sexista.

 Nós (sobre)vivemos num país onde os gastos com transporte superam os de alimentação no orçamento familiar (POF 2017-2018), onde a população negra é a que mais morre assassinada, onde o corpo feminino e negro é o mais assediado e alvo de roubos e furtos. Aqui vale dizer que nosso corpo experiencia as mais diversas formas de violência não só nas ruas, mas também em casa, nas instituições que frequentamos… A objetificação dos nossos corpos parece ser um acordo coletivo que só desconsidera as nossas próprias decisões e sentimentos. 

Nossa vivência diária nos diz ainda que nosso tempo é desimportante, já que, ao contrário de quem mora em lugares onde os direitos estão ao alcance das mãos, na condição de pêndulo, gastamos um tempo irrecuperável para enfrentar a missão de ir de um ponto a outro da cidade, faça chuva ou faça sol. E quais planos os poderes regentes traçam pensando em respeito ao nosso tempo? Logicamente nenhum. Afinal, os donos do capital já têm seu tempo poupado, uma vez que não “perdem” tempo preparando a própria comida, cuidando das próprias crias, limpando a própria sujeira ou tendo que se tornar uma atleta de alto rendimento para cruzar a cidade em tempo hábil. 

E já que a hora mais barata do mercado é a hora da mulher negra, quem se importa com esse fato? Quem se importa se fora do horário destinado para sugar nossa mão de obra nos sentimos engaioladas no fragmento de cidade onde fomos despejadas? Quem se importa com o medo, com a impotência e com o desejo de mudança que sentimos a cada despertar? Nós. Só consigo imaginar que ninguém além de nós, que acordamos cedo, corremos o dia inteiro, chegamos tarde, regramos moedas, orações e mais um punhado de coisas, tem a capacidade de subverter essa lógica imposta de forma tão violenta. 

Por fim, rememorando que Maya Angelou tem um poema que fala sobre o cantar de um pássaro engaiolado por liberdade e que Elza Soares nos lembra de que precisamos ser criadas para a liberdade, convido você, leitora, para fazer parte dessa orquestra que precisamos organizar para, enfim, anularmos as permanentes ausências que nos impedem de voar livre, tranquila e seguramente pelas cidades. Acredito que com uma subindo e puxando a outra o quadro pode mudar, pois, como dois e dois são quatro, sei que a cidade vale a pena e que a nossa liberdade não há de ser pequena. 

Sigamos juntas lutando pela construção de um espaço seguro para todas, todos e todes! Por fim, faço questão de colocar no meu texto que mulheres pretas sempre estiveram no comando do movimento que tem como missão desmantelar esse jogo de lego que conhecemos e implantar os saberes do bem viver! Que nossa fala ecoe e nossas demandas sejam respeitadas! Dias mulheres virão!


REFERÊNCIAS

AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. Pólen Produções Editorial LTDA, 2019.

GONZALEZ, Lélia. Cultura, etnicidade e trabalho. (1979) In: Primavera para as Rosas Negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa. Coletânea Organizada e editada pela União dos Coletivos Pan-Africanistas (UCPA). Diáspora Africana, 2018.

VILLAÇA, Flávio. Espaço Intra-Urbano no Brasil. Studio Nobel, 1998. 

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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