Em 25 de julho, é comemorado o Dia Nacional do Escritor, data escolhida por conta da realização do 1º Festival do Escritor Brasileiro, promovido pela União Brasileira de Escritores (UBE), em 1960.
Para marcar a data e fomentar o debate em torno do atual cenário literário nacional, o Le Monde Diplomatique Brasil traz, ao longo de todo o mês, uma série de entrevistas com grandes nomes da literatura brasileira contemporânea.
A primeira entrevistada é a mineira Cidinha da Silva, vencedora do Prêmio da Biblioteca Nacional e autora de obras traduzidas para idiomas como o alemão, catalão, espanhol, francês, inglês e italiano. Ao longo da conversa, ela abordou temas como as ancestralidades, o mercado editorial, os recentes casos de censura a livros no Brasil e a literatura como instrumento de transformação social.
“Junto com tudo isso, com as formas de enfrentamento pela luta política e pelo exercício da crítica criativa, é necessário também garantir espaços para que nossa subjetividade se alimente e floresça, pois, se apenas lutarmos, é provável que adoeçamos. As flores insistem em nascer no cantinho do asfalto bruto e é preciso atentar a elas, à sua beleza e perfume. E cuidar delas, além de reverenciá-las”, disse.
Cidinha da Silva é escritora e doutora em Difusão do Conhecimento. Autora de 22 livros, entre eles os premiados “Um Exu em Nova York” e “O mar de Manu”. É cronista do jornal Rascunho. Seu livro mais recente é “Vamos falar de relações raciais? Crônicas para debater o antirracismo”, publicado neste ano pela Autêntica. Confira a entrevista na íntegra:
Seu livro “Tecnologias ancestrais de produção de infinitos” traz um profundo mergulho nas relações com as ancestralidades, especialmente na primeira parte, intitulada de “Carcará”. Qual a importância do tema para a sua obra e, principalmente, para repensar o Brasil?
A minha poética bebe das águas das ancestralidades, orixalidades e africanidades, é alimentada pela tensão e diálogo entre tradições (africanas, afro-brasileiras, afro-indígenas e afro-diaspóricas), e trafega por essas águas, ou seja, trata-se do líquido amniótico atlântico que me nutre e me dá caminho. Esta, a importância para o meu trabalho. Quanto aos sentidos das ancestralidades para repensar o Brasil, penso que a ideia pode e deve ancorar, principalmente, a pessoas negras e indígenas que descendem de tradições que as valoram. Creio que a compreensão ampla da ideia de ancestralidade pode firmar nossos pés nos lugares de onde viemos e pode nos ajudar a dar passos mais seguros para os lugares que nos esperam e que são nossos, a despeito do que a colonialidade e o racismo nos roubaram.
Suas crônicas trazem um olhar bastante atento a uma infinidade de temas, inclusive a política e os direitos humanos. Há dias em que a realidade nesses campos parece mais absurda que a própria ficção? Como lidar com momentos assim?
Uma das formas que escolho para lidar com o que você chamou de realidade absurda é escrevendo textos ficcionais e ensaios. Afora isso, a luta política é algo que não cessa, estamos em guerra e querem nos exterminar, somos alvo do racismo, do patriarcado, da lesbofobia, da transfobia. Junto com tudo isso, com as formas de enfrentamento pela luta política e pelo exercício da crítica criativa, é necessário também garantir espaços para que nossa subjetividade se alimente e floresça, pois, se apenas lutarmos, é provável que adoeçamos. As flores insistem em nascer no cantinho do asfalto bruto e é preciso atentar a elas, à sua beleza e perfume. E cuidar delas, além de reverenciá-las.
Em sua crônica “Vozes da bibliodiversidade na Flip e em outras festividades literárias”, escrita em 2017 e publicada em seu livro “O homem azul do deserto”, você diz “Oxalá, a literatura ‘fora dos radares’ siga ampliando a multiplicidade e a polifonia da literatura brasileira”. De lá para cá, isso tem acontecido?
De alguma forma, sim, mas não está nada garantido. Vemos, por exemplo, grandes editoras contratando pessoas negras que fazem curadoria de autoras/es, pesquisadoras/es, intelectuais negras e negros brilhantes, que serão orientados de maneira sutil, ou mais incisiva (a depender da potencialidade crítica e de ação de denúncia externa da bola da vez) a formatarem seu pensamento em invólucros comerciais e palatáveis para o público branco consumidor. Assim, essas editoras publicarão autoras e autores negros, desde que o pensamento esteja domesticado. Será adotada uma prática de (re)escrever o livro a partir de orientações comerciais, travestidas de zelo editorial, quando se tratar da obra de intelectuais negros vivos, ávidos para publicar em boas casas editoriais que contem com assessoria de imprensa e capilaridade na distribuição dos livros. Outros profissionais (brancos) têm suas obras publicadas com garantias integrais para forma e conteúdo. Ou seja, se você é uma autora ou autor negro, “baixe a cabeça, adeque-se à linguagem racialmente asséptica da minha empresa, eu te publico e você venderá milhares de cópias. É um bom negócio, acredite. Todo mundo ficará feliz”.
A recente censura de livros como “O Avesso da Pele” (Jeferson Tenório) e “Outono de Carne Estranha” (Airton Souza) exige da sociedade uma resposta imediata? Como dá-la?
A censura acontece em vários níveis nos sistemas autoritários, como exemplo, tive um livro aprovado no mesmo certame de “O avesso da pele” (PNLD Literário 2020), trata-se do livro de contos premiado pela Biblioteca Nacional em 2019, “Um Exu em Nova York”. Ele foi censurado por técnicos bolsonaristas logo depois de ter sido selecionado após avaliação rigorosa da banca, em outras palavras, ele foi alijado da lista de livros enviada às escolas de todo o país para escolha dos títulos que comporiam seu acervo. À época, esgotamos todas as instâncias internas de recursos, obtivemos respostas estapafúrdias, inclusive, a citação de trechos que supostamente feriam o edital e não eram do meu livro, foram extraídos de outra obra. Naquele momento, concordei com a decisão da editora de não judicializar o caso (mantenho a concordância).
Outro exemplo de censura a este mesmo livro, “Um Exu em Nova York”, ocorreu pelo veto aplicado pela livraria oficial de um evento literário, alegando desinteresse em expô-lo na maior feira de livros da cidade de São Paulo (2024). A livraria acolheu dois outros títulos meus da editora Pallas, mas recusou aquele, mesmo diante da insistência do pessoal técnico da editora, que argumentou o quanto se tratava de um livro premiado, reconhecido e de alto poder de circulação, que, para completar, vende mais do que os outros dois títulos somados.
O livro pode ter sido obstado por algum/a funcionário/a fundamentalista, pela livraria que também pode ter uma orientação política contrária às matrizes africanas, por um pressuposto da curadoria de que aquele não seria um título bem recebido, considerando o racismo religioso (identificam Exu com religião) enraizado na cultura brasileira. Não sabemos quem foi o agente da censura, o fato é que o livro foi censurado e, se eu não contasse essa história a vocês, ninguém saberia. A censura também se esgueira pelos cantos não iluminados.
Em relação à resposta da sociedade a esse estado de coisas, me parece que a insurgência organizada é o caminho, por meio de ações concretas e coordenadas que não se percam no brilho dos holofotes da sociedade do espetáculo. O combate à censura precisa ser sistêmico (além dos casos pontuais que ganham destaque). São necessários: persistência, objetivos e metas nos processos de luta, mais que estardalhaço midiático que gera o sub(super) produto do aumento da venda de livros.
Em 25 de julho é comemorado o Dia Nacional do Escritor. Na atualidade, o que os autores e as autoras mais têm a celebrar no país? E com o que eles e elas devem se preocupar?
São fatores de celebração, a meu ver: o crescimento do interesse pelos livros e a formação de um circuito de trabalho remunerado para escritoras e escritores por meio das festas e feiras literárias nos 20 anos mais recentes. Os clubes de leitura e a oxigenação que têm promovido na ideia de leitura individual de um livro, que passa a ser feita de maneira coletiva, e por meio dessa prática tem alçado o campo da leitura a um lugar de vetor de socialização significativo. A autoria de mulheres, pessoas negras e indígenas tem crescido e se consolidado. Essa primeira gestão do governo federal, pós fim-do-mundo, tem retomado políticas públicas importantes e criado outras de valorização de escritoras/es, professoras/es, e do livro, leitura, literatura e bibliotecas. A ideia de bibliodiversidade na formação de acervos de bibliotecas públicas, escolares e comunitárias vem se firmando.
Quanto aos elementos geradores de preocupação, não sei sobre os/as colegas, mas eu me preocupo com a profissionalização da carreira de escritora/or; não me filio à construção romantizada dos papéis sociais da literatura e de quem escreve, me interessa decodificar o funcionamento do mercado editorial em seus aspectos variados e hierárquicos. Creio que devemos nos preocupar com políticas públicas que deem sustentação ao mundo do livro.
Em sua opinião, qual escritor ou escritora merece maior atenção de leitores, leitoras, editoras e da crítica especializada no Brasil?
Olha, tem muita gente que gosto, vou citar alguns nomes de escritoras. Na prosa: Zainne Lima (SP), Taiasmin Onhmacht (RS), Lília Guerra (SP), Paloma Franca Amorim (PA), Helena Silvestre (SP), Vanda Machado (BA) e Triscila Oliveira (RJ).
Na poesia: tatiana nascimento (DF), Lívia Natália (BA), Dinha (CE), Maré de Matos (MG) e Zainne Lima (SP).
Qual foi o melhor conselho que você já recebeu no meio literário? E o pior?
O melhor veio de uma amiga, Nô Homero, em Porto Alegre (2005). Eu conversava com ela sobre sonhos de escrita e sobre a orientação pragmática que queria dar a eles, a tensão entre sonho e pragmatismo e aquela tensão me angustiava. O bom conselho recebido foi para deixar a preocupação sobre o que fazer com os textos depois de tê-los escritos. Naquele momento, na avaliação dela, eu deveria me ocupar apenas da escrita. Foi um conselho valioso.
Os piores conselhos vieram de leitores críticos de livros meus antes de serem publicados. O primeiro foi de um escritor que, ao ler o original da novela “Os nove pentes d’África”, passou ao largo de uma cena que todos os demais leitores críticos acharam ruim (passei a desconfiar de toda a leitura que ele fez).
O segundo foi de uma pesquisadora que, ao ler o original de meu livro de contos, “Um Exu em Nova York”, deu de rescrever um dos contos e ofereceu uma série de opiniões sobre o “funcionamento das relações de amor”, à guisa de discordância do enredo do conto “Lua cheia”. De maneira respeitosa, argumentei que tinha a sensação de que ela dava orientações a mim, que gostaria de dar (e não podia) aos poetas vivos, detentores de linguagem truncada e até mesmo tosca, objeto de sua pesquisa.
O que move sua escrita?
O meu desejo de criar mundos e de apresentá-los a quem tiver interesse em me ler. A alegria que os processos de escrita de ficção me proporcionam.