“Ciência gera desenvolvimento”: conheça uma das mais renomadas físicas brasileiras

Pesquisadora do Instituto de Física da UFRGS é entrevistada na série especial 8 de Março do BdF RS - Foto: Reprodução/Instituto de Física UFRGS

Para Márcia Barbosa, meio científico reflete sociedade patriarcal, na qual o papel da mulher não é ser liderança

Por Fabiana Reinholz e Katia Marko, do Brasil de Fato

Pesquisadora do Instituto de Física da UFRGS é entrevistada na série especial 8 de Março do BdF RS – Foto: Reprodução/Instituto de Física UFRGS

Ao se falar em mulheres na Física, um nome facilmente vem à cabeça: Marie Curie (1867-1934), física e química polonesa que ficou conhecida por suas contribuições sobre radioatividade. Albert Einstein se referiu a ela como, de todos os seres celebrados, o único que a fama não corrompeu.

Outros nomes que se destacam são de Elizabet Blackwell (1821-1910), física estadunidense que se tornou conhecida por ser a primeira mulher a praticar medicina nos Estados Unidos, fundadora da Universidade Médica da Mulher, e Maria Mayer (1906-1972), física teórica alemã que ganhou o Prêmio Nobel de Física por suas pesquisas sobre a estrutura do átomo.

No Brasil, Elisa Frota Pessoa e Sonja Ashauer foram as duas primeiras mulheres a se graduar em Física. Outro nome de destaque é Susana Lehrer de Souza Barros, descrita como pessoa sensível a questões sociais. A vida dessas e de tantas outras mulheres é retratada no livro Mulheres na Física, casos históricos, panorama e perspectivas.

Apesar dos nomes relevantes de mulheres nesse campo específico da ciência, ele ainda é um ambiente dominado por homens. “Na ciência como em outras áreas da vida, mulheres são poucas e em particular são poucas em posições de destaque. No caso da Física já somos poucas no ingresso. Hoje, no Brasil, as alunas de graduação são um pouco mais de 20% dos estudantes. E no topo da carreira somos 4%. Nas outras áreas, como Saúde e Biologia, as mulheres estão em pé de igualdade no ingresso, mas no topo não ultrapassam 25%”, ilustra a professora e pesquisadora Márcia Barbosa, do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ela é mais uma das mulheres entrevistada da série especial 8 de Março do Brasil de Fato RS.

Em um artigo publicado em 2013, “Mulheres na Física do Brasil: Por que tão poucas? E por que tão devagar?”, a professora, juntamente com Betina Stefanello Lima, afirma que são muitos os fatores socioculturais, ancorados no sistema de gênero, responsáveis pela subrrepresentação das mulheres nas áreas das ciências exatas e engenharias. “O desenvolvimento de habilidades e gostos por meio da divisão sexual dos brinquedos pode ser considerado um elemento essencial para a escolha de áreas de atuação”.

A filha de um militar eletricista e de uma dona de casa, que estudou toda a sua vida em escolas públicas, conseguiu alcançar de certa forma, os 25%. É atualmente diretora da Academia Brasileira de Ciências e membro da Academia Mundial de Ciências, e no mês de março foi eleita uma das 20 mulheres mais poderosas do Brasil em 2020, segundo lista divulgada pela revista Forbes.

Em tempos de ataques à educação, à ciência e diante da pandemia do coronavírus, Márcia ressalta o papel da ciência. “Hoje ninguém vive sem ciência, do GPS que usa teoria da relatividade, às radioterapias, à microeletrônica que controla dos celulares aos computadores. Tudo é ciência. Apesar disso, o mundo ignora a autoridade do conhecimento quando esta diz algo que desagrada o capital ou o fanatismo religioso. O resultado são cortes no financiamento da ciência. Quando, no entanto, as crises de saúde, os desastres provocados ou naturais surgem, todos correm para pedir socorro à ciência. Isto foi verdade na Zika, nos desmoronamentos, na H1N1 e é verdade agora com o coronavírus”.

“Espero que o mundo e muito particularmente o Brasil compreendam que ciência gera desenvolvimento”, sentencia Barbosa.

Brasil de Fato RS: Gostaríamos de começar conhecendo um pouco da tua história e como surgiu teu interesse pela física, pela ciência.

Márcia Barbosa: Eu sou filha de um militar eletricista e de uma dona de casa que quando solteira foi secretária. Meus pais nunca cursaram a universidade, mas compreendiam muito bem a importância de estudar. Na medida do possível acompanhavam nossos estudos. Lembro que quando entramos no ensino médio a minha mãe voltou a estudar para poder nos acompanhar melhor em algumas matérias. Como ela tinha sido secretária sempre nos ajudava datilografando nossos trabalhos de colégio. Com o meu pai compartilhava o gosto por consertar coisas. Eu ficava observando, perguntando como o sistema elétrico funcionava. Moramos muitos anos em uma vila militar afastada do centro de Canoas e lá tínhamos liberdade de explorar a natureza, andar de bicicleta, subir em árvores, caçar cobra d’água…

Sempre estudei em escolas públicas. No final do ensino fundamental e no ensino médio estudei no Colégio Marechal Rondon onde tive professores muito dedicados. Morávamos então perto do colégio e à noite ajudava no laboratório da escola. Grande aventura aprender tanto sobre ciência.

Decidi então cursar Física que para mim era onde poderia fazer ciência. Entro na UFRGS onde me deparo com uma realidade bem diversa da minha escola. Os alunos vinham de escolas privadas onde tinham aprendido muitos conceitos que eu nunca vira. Além disso, as escolas privadas formam pessoas bem seguras e ambiciosas. Eu só queria aprender sobre a natureza.

Na Física éramos poucas mulheres, 8 meninas em 80 alunos. Percebi que a liderança na universidade era muito masculina. Fiz a graduação quando no Brasil havia uma ditadura militar. Eu me tornei uma militante, sendo a primeira mulher presidente do diretório acadêmico da Física. Atuei na representação discente onde percebi que mulheres eram transparentes.

Após o doutorado vou para a Universidade de Maryland onde atuei dois anos como pós-doutora. Uma grande experiência que me possibilitou conhecer pessoas com as quais colaborei por anos e me deram a noção da importância de uma carreira internacional.

Volto para o Brasil onde monto um grupo de pesquisa em água e onde atuo em aumentar a visibilidade das mulheres na ciência. Exerci muitos cargos nacionais e internacionais. Em 2013 ganhei o prêmio Loreal-Unesco de mulheres na ciência. A cada ano a Loreal e a Unesco escolhem uma mulher por continente. Em 2013 eu fui a escolhida pela América Latina. Foi uma excelente oportunidade para falar de ciência e da importância de termos mais mulheres na ciência. Sou hoje diretora da Academia Brasileira de Ciências e membro da Academia Mundial de Ciências.

Em março deste ano, você foi eleita uma das 20 mulheres mais poderosas do Brasil pela Forbes. Mas ainda pouco se fala sobre o papel das mulheres na ciência. Por que isso acontece na sua opinião?

Fiquei muito feliz ao ver que a Forbes reconheceu o poder da ciência ao eleger uma cientista para a lista. Na ciência como em outras áreas da vida as mulheres são poucas e em particular são poucas em posições de destaque.

No caso da Física já somos poucas no ingresso. Hoje no Brasil as alunas de graduação são um pouco mais de 20% dos estudantes e no topo da carreira somos 4%. Nas outras áreas como Saúde e Biologia as mulheres estão em pé de igualdade no ingresso, mas no topo não ultrapassam 25%.

“Na ciência como em outras áreas da vida as mulheres são poucas e em particular são poucas em posições de destaque” / Foto: Reprodução/Instituto de Física UFRGS

Por que tão poucas? Liderança é algo visto como masculino. Há um estudo muito interessante realizado com crianças que mostra que aos 7 anos meninas já identificam inteligência como atributo masculino e esforço como atributo feminino. Pessoas simplesmente esforçadas não se tornam líderes. É preciso acreditar que se está trazendo algo excepcional.

Da mesma forma, no imaginário das pessoas somente indivíduos excepcionalmente inteligentes seguem carreiras das áreas de exatas, como na Física. Como as mulheres não se veem como inteligentes, não seguem estas carreiras.

Precisamos urgentemente trabalhar as jovens para elas terem a percepção de que podem ser inteligentes. Precisamos mudar a visão social sobre as mulheres. Eu proponho começar eliminando os corredores cor-de-rosa que separam brinquedos “de menina” de brinquedos “de menino”. Os brinquedos rosa são destituídos de aventura.

Dia 22 de março é o Dia Mundial da Água. Como pesquisadora do assunto, qual tua avaliação da atual situação da água no mundo?

Hoje uma de cada seis pessoas no mundo vive em uma região com stress hídrico (menos água do que o necessário para a subsistência da população). Em 2030 este número poderá chegar a uma em cada duas pessoas. Quem alerta sobre isto é a ONU.

Os países europeus, por exemplo, não têm água suficiente para produzir a comida. Eles compram de nós. Precisamos entender que os recursos hídricos mundiais são finitos. Com o crescimento da população mundial teremos a cada dia menos água potável para cada habitante do planeta.

Precisamos aprender a recuperar a água, evitar a sua contaminação e fazer um uso responsável para a mesma. Para isso, necessitamos de educação, de ciência e de novas tecnologias.

Estás desenvolvendo uma pesquisa sobre a dessalinização da água. Como está esse processo?

Sou física teórica, ou seja, eu trabalho no início, na conceptualização do projeto. Neste sentido, nossos desenvolvimentos precisam de muito tempo para se transformarem em uma tecnologia que possa ser adquirida na loja da esquina. O meu grupo de pesquisa desenvolve modelos computacionais que simulam um filtro de um material muito fino com furos nanométricos para separar a água do sal.

“Nossos desenvolvimentos precisam de muito tempo para se transformarem em uma tecnologia que possa ser adquirida na loja da esquina” / Foto: Reprodução/Instituto de Física UFRGS

A água adora fluir em furos pequenos, mas o sal, por gostar de estar rodeado de água, não gosta de entrar em furos tão pequenos.

Para entrar em um furo nanométrico (do tamanho de um fio de cabelo se cortarmos sua espessura 60 000 vezes) o sal precisa se separar da água e o sal não faz isto. Então usamos esta propriedade estranha da água gostar de furos pequenos para desenhar este filtro. Hoje no Instituto de Física da UFRGS já existe um grupo experimental coordenado pelo professor Gabriel Soares que está tentando produzir este material que modelamos via computador.

O futuro da dessalinização está nestes nanomateriais.

Tu disseste em outra entrevista que nos anos 1970 quando ingressastes na faculdade havia oito mulheres em um universo de 80 homens, e que fostes a única mulher a se formar. Como uma ativista e defensora das mulheres na ciência, como tu vês a participação das mulheres atualmente?

Sou ativista desde que me conheço por gente. Nos anos 70, 80 e 90 as mulheres naturalizavam o preconceito. Era a nossa forma de sobreviver. Estávamos lutando por um lugar nas posições de poder. Hoje as jovens têm uma luta complementar. Elas lutam por seu direito a ser. É a geração do meu corpo, minhas regras.

Estou com esperança, pois a luta por equidade avança. Precisamos ainda provocar as nossas jovens para adentrar no mundo da tecnologia e quebrar os estereótipos.

“Precisamos ainda provocar as nossas jovens para adentrar no mundo da tecnologia e quebrar os esteriótipos” / Foto: Reprodução/Instituto de Física UFRGS

Nesse especial do 8 de Março, vemos que em muitas profissões a predominância ainda é de homens brancos, profissões feitas por homens. Na ciência tivemos avanços? Muitas mulheres desistem da carreira?

Hoje no Brasil, somos 50% de graduadas e doutoras se somarmos todas as ciências, mas mesmo nas ciências biológicas estamos longe de 50% na liderança. Nunca tivemos uma ministra de Ciência e Tecnologia, no máximo substitutas temporárias. Nunca tivemos uma presidente do CNPq ou uma presidente da Academia Brasileira de Ciências. Esta é a hora da virada.

Quando te interessastes pela Física tinha algum referencial feminino?

O meu referencial feminino era como para muitas jovens a Marie Curie. Ela ganhou dois prêmios Nobel, foi uma mulher de grande expressão, ajudou no esforço de guerra. Apesar de tudo que fez nunca foi membro da Academia Francesa de Ciências. Só teve salário ao ficar viúva e quando se apaixonou por um colega casado a sociedade foi cruel com ela. Mesmo para mulheres geniais, a vida não era fácil.

Fale um pouco sobre o machismo presente no meio científico.

Estamos finalizando um estudo na UFRGS onde mostramos que o assédio moral, comentários inadequados por docentes no meio acadêmico são muito comuns. O meio científico reflete a sociedade patriarcal onde o papel da mulher não é ser liderança ou ser inovadora. A mulher é ainda vista como coadjuvante.

“Estamos finalizando um estudo na UFRGS onde mostramos que o assédio moral, comentários inadequados por docentes no meio acadêmico são muito comuns” / Foto: Reprodução/Instituto de Física UFRGS

Como fazer para que a voz das mulheres seja ouvida nesse campo?

Temos que ser unidades. Sempre peço para colegas que se tiverem oportunidade de indicar alguém para algo pensem: será que não há uma mulher adequada para o cargo? Pensar faz maravilhas.

Além disso, sejamos unidas para enfrentar as constantes interrupções de homens quando estamos falando e debatendo (maninterrupting), a ousadia de alguns homens de explicar os temas nos quais nós somos especialistas (mansplaining) ou mesmo quando nos manipulam tentando interpretar nossa revolta contra o preconceito atribuindo isto a uma histeria feminina (gaslighting).

Professor Marcia Barbosa (Brazil), 2013 Laureate for Latin America, L’Oréal-UNESCO Awards For Women in Science, “For discovering one of the peculiarities of water which may lead to better understanding of how earthquakes occur and how proteins fold which is important for the treatment of diseases.”

Além da questão de gênero, há também a questão racial no meio, como está a presença de mulheres negras e homens negros na ciência? Predominância, na questão de gênero é de mulheres brancas (caso famoso das três cientistas negras que trabalharam na Nasa).

Raça é um tema adicional. Sequer temos dados confiáveis sobre o percentual de mulheres na ciência. Há pesquisadoras brasileiras incríveis como a professora Katemari Rosa da UFBa que tem se dedicado a entender como atuar.

Precisamos estimular desde as séries iniciais meninos negros e meninas negras a compreender que ciência é um lugar de todos e todas.

Em tempos de ataques às universidades, e com reflexo na produção científica, como analisas o contexto, principalmente em tempos de coronavírus?

Hoje ninguém vive sem ciência, do GPS que usa teoria da relatividade, às radioterapias, à microeletrônica que controla dos celulares aos computadores. Tudo é ciência.

Apesar disso, o mundo ignora a autoridade do conhecimento quando esta diz algo que desagrada o capital ou o fanatismo religioso. O resultado são cortes no financiamento da ciência.

Quando, no entanto, as crises de saúde, os desastres provocados ou naturais surgem, todos correm para pedir socorro à ciência. Isto foi verdade na Zika, nos desmoronamentos, na H1N1 e é verdade agora com o coronavírus.

Espero que o mundo e muito particularmente o Brasil compreendam que ciência gera desenvolvimento.

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Katia Marko e Vivian Fernandes

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