Cientistas criticam ausência de prioridade a pobres e negros na vacinação contra Covid-19

FONTEPor Ana Lucia Azevedo*, do O Globo
A pensionista Sebastiana Amaral, de 70 anos, gostaria que os vizinhos em Bangu, no Rio, que, ao contrário dela, também têm comorbidades, fossem vacinados logo contra o vírus (Foto: Hermes de Paula / Agencia O Glob / Agência O Globo)

A vacinação contra a Covid-19 acentuará ainda mais a nossa desigualdade social e racial. Isto ocorre porque pobres e negros, apesar de mais vulneráveis à pandemia por uma série de fatores, não foram diferenciados no Plano Nacional de Imunização — ou seja, continuarão mais expostos ao vírus que o restante dos brasileiros. Diante disso, cientistas defendem que esta parcela da população seja incluída entre as prioridades do PNI.

Um estudo inédito do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e da UFRJ mostra que trabalhadores negros no Brasil correm risco 39% maior de morrer de Covid-19 do que os brancos. Já um trabalho publicado na revista britânica Public Health revela que brasileiros com educação superior (e brancos são 70% do total neste importante indicador de renda) correm risco 44% menor de serem vítimas fatais do vírus.

— Os pobres, em especial os negros, são obrigados a se expor mais, adoecem mais e morrem mais de Covid-19 no Brasil. Por isso, é justo e necessário que haja uma prioridade para eles. Isso é totalmente factível de realizar — afirma Roberto Medronho, professor de epidemiologia da UFRJ, coordenador do estudo em parceria com o IPEA e propositor da ideia de que os negros pobres sejam incluídos em grupos prioritários.

A profissional de saúde Raimunda Nonata, 70, se prepara para ser vacinada com a CoronaVac em sua casa, tornando-se a primeira quilombola imunizada no Quilombo Marajupena, no município de Cachoeira do Piriá, no Pará (Foto: TARSO SARRAF / AFP – 19/01/2021)

No Brasil , enfatiza o acadêmico, o pobre é quase sempre negro. São negros 75,2% da camada com menor renda da população, segundo o IBGE. Também são negros dois terços dos desempregados.

Pandemia atinge os brasileiros de forma desigual (Foto: Editoria de Arte)
Pandemia atinge os brasileiros de forma desigual (Foto: Editoria de Arte)
Pandemia atinge os brasileiros de forma desigual (Foto: Editoria de Arte)

Já a pesquisa “Fatores sociodemográficos associados à mortalidade por Covid-19 em hospitais do Brasil” (tradução livre do inglês) publicada este mês na Public Health mostra que entre os brasileiros hospitalizados, negros têm maior taxa de mortalidade (42%) que brancos (37%). Além disso, têm menos acesso a recursos.

— A Covid-19 afeta os brasileiros de forma diferente. Os negros pobres correm um risco maior e isso é evidente nos dados — afirma Fernando Bozza, coordenador do estudo e pesquisador da Fiocruz e do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR).

Outro estudo da UFRJ mostra que quanto maior a desigualdade e população negra um município brasileiro tiver, mais casos de Covid-19.

— É eticamente justificável que profissionais de saúde e de segurança sejam priorizados. Eles precisam de proteção, mas é a imunização da população socialmente mais vulnerável que protegerá toda a sociedade — salienta Medronho.

Exemplo mexicano

A desigualdade também fica evidente em dados analisados pelas pesquisadoras da UFRJ Ligia Bahia e Jessica Pronestino para o estudo “Alerta Covid IDEC-Oxfam-Anistia Internacional-Inesc”. Eles mostram que a letalidade da Covid-19 em negros internados na UTI chega a 79%, e é de 56% nos brancos.

— Já tivemos políticas de saúde voltadas à nossa realidade social, mas não é o que vemos agora — diz Bahia. — O Brasil deveria seguir o México, que usou critérios socioeconômicos na vacinação.

Imunizando sua população desde dezembro contra a Covid-19, o México iniciou a aplicação de vacinas entre idosos das periferias de suas metrópoles. Especialistas dizem que ainda é cedo para avaliar os efeitos desta priorização.

Os novos estudos confirmam o trabalho realizado na primeira onda da pandemia pelo Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde da PUC-Rio e divulgado em julho. Segundo o estudo, negros sem escolaridade tiveram taxa de mortalidade de 80,35%; nos brancos com nível superior ela era de 19,65%. O percentual de mortes foi maior entre negros de todas as idades e níveis de escolaridade.

A médica Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil, também se preocupa priorizar acesso ao grupo mais exposto devido a condições de vida:

— A população negra tem mortalidade mais elevada e não apenas os quilombolas, que mesmo assim só foram incluídos após muita discussão. Estamos numa situação muito ruim, mas guardo um lado otimista, que vê a sociedade sendo forçada a se mexer para garantir seus direitos.

Negra e de baixa renda, Sebastiana Amaral, de 70 anos, está no grupo de maior risco da pandemia da Covid-19. Fechada em sua casa na Vila Aliança, em Bangu, zona oeste do Rio, com o neto e o marido de 57 anos, ela vem tomando cuidados como o distanciamento social e uso de máscara. Sem comorbidade, no entanto, ela sugere que a frente da fila em sua comunidade seja formada por outros vizinhos:

— Quem é pobre e tem diabete, ou é hipertenso, acho que deve se prevenir primeiro — diz a pensionista que durante a pandemia chegou a depender de cestas básicas doadas pelo projeto SOS Favela da ONG Viva Rio para manter a família.

A pneumologista e pesquisadora da Fiocruz Margareth Dalcolmo, colunista do GLOBO, salienta que é preciso não deixar que a falta de acesso às vacinas perpetue a desigualdade que fez a população pobre do Brasil pagar com a vida o alto custo da pandemia.

— Em março, alertei que essa pandemia deixaria escancarada a obscena desigualdade do Brasil. Espero que em dois meses tenhamos vacinação maciça e a parcela mais vulnerável da população não seja, de novo, negligenciada. Pobres e negros devem estar entre as prioridades — diz Dalcolmo.

Rafael Galliez, professor de Doenças Infecciosas e Parasitárias da UFRJ, observa que em países como o Reino Unido cientistas discutem priorizar pobres e negros.

— A vulnerabilidade dessas pessoas é imensa e começa dentro de casa. Elas são uma clara prioridade. Mas no Brasil sequer temos expectativa de um número mínimo razoável de vacinas — diz Galliez.

A desigualdade é o destaque do primeiro Boletim Observatório Covid-19 da Fiocruz de 2021, que traça um panorama da pandemia no Brasil.

“Embora a pandemia afete a população do país como um todo (…) os que possuem condições de vida e trabalho mais precários (…) ou sofrem injustiças por questões de gênero e raça, vivenciam de modo mais acentuado os impactos imediatos da pandemia e se tornam mais vulneráveis aos seus impactos de médio e longo prazo”, diz o boletim.

O pesquisador Daniel Villela, um dos autores do boletim, diz que os efeitos do coronavírus são modulados pelas condições socioeconômicas. Ele observa que, embora seja complexo priorizar uma parcela tão grande da população, é possível fazer filtros — cadastrados em programas sociais do governo, por exemplo.

A mesma opinião tem o pesquisador da USP de Ribeirão Preto Domingos Alves, do portal Covid-19 Brasil. Ele chama a atenção para o fato de que a maior exposição e a falta de acesso à saúde faz com que entre os negros a mortalidade pelo vírus seja maior entre os mais jovens. Alves está convicto que se houver vontade política, é possível vacinar por critérios socioeconômicos:

— Há os cadastros do Bolsa Família, do auxílio emergencial, por exemplo. Não faltam meios técnicos, faltam vacinas e vontade política no país.

Procurado pela reportagem para comentar possíveis mudanças nas prioridades do PNI, o Ministério da Saúde não respondeu.

* Colaborou Jan Niklas

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