‘Cirurgia na rede pública é conquista, mas precisa melhorar’, avalia ativista trans

Símbolo transgêneros coloridos e de desenhados

Procedimentos de readequação sexual são oferecidos pelo SUS desde 2008, mas só 5 estabelecimentos têm serviços para população trans.

por Leda Antunes no HuffPost

Departamento de urologia na sala de operação
Getty Editorial – De acordo com informações do Ministério da Saúde obtidas pelo HuffPost Brasil, desde 2008 foram realizadas 526 cirurgias

Há pouco mais de 10 anos o SUS (Sistema Único de Saúde) passou a oferecer a cirurgia de readequação sexual para mulheres trans. Ao longo da última década, o chamado “processo transexualizador” do SUS foi evoluindo e, hoje, tem como objetivo oferecer, além dos procedimentos cirúrgicos, a assistência integral de saúde para toda a população transgênero, incluindo acompanhamento psicológico e a terapia com hormônios.

“O processo transexualizador foi uma conquista muito importante para a população trans, fruto da mobilização do movimento social, mas ele precisa ser melhorado”, afirma o ativista Alexandre Peixe dos Santos. Ele é o primeiro homem trans a realizar a cirurgia de histerectomia (retirada do útero) pelo SUS, em 2010.

Ainda hoje, a abrangência do atendimento ainda segue restrita, com apenas 5 hospitais fazendo o atendimento cirúrgico e 12 estabelecimentos de saúde habilitados pelo Ministério da Saúde para o acompanhamento ambulatorial para trans. Com exceção de Uberlândia, em Minas Gerais, todos ficam em capitais, e o serviço não é oferecido na região Norte.

Alexandre Peixe é coordenador do Instituto Brasileiro de Transmasculinidade (IBRAT) na região sudeste e esteve nas discussões iniciais que culminaram com a oferta do processo transexualizador pelo SUS. Ele conta que, junto com as ativistas Bárbara Graner, Andréa Stefani e Beth Fernandes, foi convidado pelo Ministério da Saúde, em 2005, para pensar em como deveria ser o atendimento às pessoas trans na saúde pública.

Três anos depois, o ministério publicou as portarias nº 1.707 e 547, que implementavam o processo transexualizador no SUS, ainda exclusivamente focado em habilitar serviços em hospitais universitários e na realização de procedimentos cirúrgicos em mulheres trans.

Somente em 2013, atendendo a reivindicações do movimento LGBT pela ampliação do atendimento, a saúde desta população passou a ser pensada de maneira integral. O processo foi redefinido e ampliado pela portaria 2.803 e passou a atender homens trans e a oferecer os serviços de atenção ambulatorial, como a terapia com hormônios e o acompanhamento psicológico.

De acordo com informações do Ministério da Saúde obtidas pelo HuffPost Brasil, desde 2008 foram realizadas 526 cirurgias no âmbito do processo transexualizador, que compreendem a readequação sexual (que adapta a genitália ao gênero da pessoa), mastectomia (retirada de mama), plástica mamária reconstrutiva, cirurgia de troca de timbre de voz, histerectomia e colpectomia (retirada da vagina). Isso não significa que 526 pessoas foram atendidas, porque uma mesma pessoa pode ter feito mais de um procedimento.

Pouca oferta e muita espera

Símbolo transgêneros coloridos e de desenhados

Os 5 hospitais universitários habilitados para fazer as cirurgias no Brasil estão localizados nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Goiânia, Porto Alegre e Recife – o último a receber a habilitação, em 2014.

A região Nordeste foi a que concentrou o maior número de procedimentos em 2018, segundo o ministério. Até setembro, foram realizadas 20 cirurgias referentes ao processo transexualizador e 1.189 procedimentos ambulatoriais a trans, incluindo o atendimento em Recife, João Pessoa e Salvador.

Para Alexandre Peixe, uma das razões que travam a expansão do atendimento é a falta de interesse de estados e municípios em reconhecer as necessidades da população trans. O governo federal financia o processo, mas cabe aos governos estaduais e municipais pedir a habilitação para poder fazer os procedimentos cirúrgicos e ambulatoriais nas suas unidades de saúde.

“O problema é que muitas cidades e estados não querem fazer o processo. Tem todo um protocolo para que o estabelecimento seja habilitado a fazer a cirurgia, não é qualquer hospital que vai fazer. E muitos estados e municípios, por não respeitarem a questão trans, não tomam essa iniciativa”, denuncia.

Com isso, os estabelecimentos que oferecem os serviços acabam não conseguindo receber novos pacientes e tem longas filas de espera.

No Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco, em Recife, 60 mulheres trans e 20 homens trans aguardam a cirurgia. O HC opera por ano aproximadamente 10 pessoas.

Outras 70 pessoas aguardam na fila do Hospital Universitário Pedro Ernesto, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, que não aceita pacientes novos desde 2011. A situação é semelhante no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, onde a fila de 70 pessoas está fechada para novos pacientes e a espera pela cirurgia é de 3 anos.

Outro problema no processo, para o coordenador do Ibrat, é o tempo de acompanhamento exigido antes da cirurgia. Pelas regras do Ministério da Saúde, a pessoa trans que deseja fazer qualquer um dos procedimentos cirúrgicos do processo transexualizador precisa ser acompanhada por médico e psicológo por, pelo menos, 2 anos. A idade mínima é de 21 anos para fazer a cirurgia e de 18 anos para a terapia com hormônios.

“O tempo de 2 anos é preconceituoso, na minha leitura. Não é uma pessoa que vai me dizer quem eu sou, eu sei quem eu sou”, critica Alexandre.

Primeira histerectomia pelo SUS

Alexandre Peixe foi o primeiro homem trans a realizar a cirurgia de histerectomia pelo SUS, em 2010, quando tinha 26 anos, antes mesmo de essa identidade passar a ser contemplada pelo processo transexualizador, em 2013.

O serviço foi garantido após o então promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal Diaulas Costa Ribeiro encampar seu pedido para fazer o procedimento. “Eu fiz um manifesto dizendo para o Ministério Público que era  transfobia negar a histerectomia e a mastectomia para homens trans. Questionei por que a cirurgia continuava com caráter experimental para uma certa população, sendo que era realizada cotidianamente. Por que mulheres cisgênero podiam fazer a cirurgia e homens trans não?”, conta o ativista.

A retirada do útero foi realizada no Hospital Estadual Pérola Byington, em São Paulo, devido a uma parceria com o Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Transexuais do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids-SP, criado naquele mesmo ano.

A pior coisa do mundo é a pessoa olhar para tua cara, te ver com barba, tudo, te chamar de senhor, e abaixar um pouco olhar e falar ‘desculpa, senhora’ só porque você tem mamas.

“A histerectomia foi fundamental. É muito complicado você ser um homem e menstruar. Se eu tivesse feito antes, eu não teria engravidado de um estupro ‘corretivo’ e ‘coletivo’ que eu sofri aos 19 anos”, conta. A filha de Alexandre tem hoje 27 anos. “Eu não quis fazer o aborto”, diz.

Somente 6 anos depois, em 2016, Alexandre conseguiu fazer a mastectomia, que considera ter sido ‘libertadora’. “O dia que eu fiz a cirurgia foi o dia que eu nasci novamente. A pior coisa do mundo é a pessoa olhar para tua cara, te ver com barba, tudo, te chamar de senhor, e abaixar um pouco olhar e falar ‘desculpa, senhora’ só porque você tem mamas”, desabafa.

O ativista teme que, ao invés da ampliação, o processo de redesignação sexual sofra cortes no novo governo. “Estamos na expectativa com muita angústia. Ele pode ser derrubado a qualquer momento porque é uma portaria”, afirma.

Alexandre lembra do recolhimento da cartilha sobre saúde e prevenção voltada para homens trans no início do ano. Após a polêmica, o documento voltou a ser disponibilizado no site do ministério nesta semana, segundo a Folha de S.Paulo. “É um indicativo de que as coisas não vão ser fáceis, mas vamos continuar mobilizados para que não haja retrocesso.”

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