Elas promovem atividades lúdicas e lançaram catálogo com reflexões sobre infância com enfoque racial: “Nunca existiu esse lugar de valorização de cultura negra dessa maneira”.
Por Ana Ignacio, do HUFFPOST BRASIL
Tudo tem um significado e uma origem. As palavras. As brincadeiras. Os costumes. A cultura. Com isso em mente, elas iniciaram um trabalho que junta – e fortalece – todas essas questões. Já começa com o nome do projeto. Dúdú Badé. “Significa caçar em bando preto. E a ideia foi essa”, explica Ana Caroline da Silva, 26 anos, produtora cultural e arte educadora. Ela, sua irmã Amanda Cristina da Silva, 26 anos, nutricionista, e Odara Dèlé, 29 anos, socióloga, fazem parte desse bando. Um trio que usa todos os seus aprendizados e vivências para valorizar e difundir ainda mais suas origens.
O trabalho começou com uma atividade que inspirou o nome do projeto: uma caça ao tesouro. O grande objetivo do grupo é falar com crianças sobre questões raciais e sobre ancestralidade negra de forma lúdica. Assim nasceu o coletivo, que oferece atividades multidisciplinares e itinerantes há três anos. Juntas, as meninas querem atuar na infância. “Entendo que é um período importante de desenvolvimento para a criança e é necessário que ela tenha alguns elementos ancestrais para fortalecer a identidade, a autoestima”, conta Odara.
[A infância] é um período importante de desenvolvimento e é necessário que ela tenha alguns elementos ancestrais para fortalecer a identidade, a autoestima.Odara Dèlé
Para o grupo, ter esse recorte de raça é importante para mostrar para as crianças que a cultura e os costumes da sociedade vêm de muitos lugares, como diz Amanda. “Você tem vontade de mostrar para as outras crianças que existe uma cultura negra, sim, e que tem que ser valorizada e que é tão boa quanto a que é passada para a gente que é a cultura branca.” Com esse foco, o grupo desenvolve atividades de culinária, contação de histórias e brincadeiras. “Todas as atividades a gente pensa em valorizar a infância e valorizar as perceptivas de olhar para o continente africano e entender que é um continente e não um país, perceber que tem uma diversidade, mostrar para as crianças que é um pouco do que são elas, da história delas, da ancestralidade, da identidade mesmo”, completa Ana Caroline.
As três contam que cresceram em famílias que sempre se entenderam como negras. Na casa de Amanda e Ana Caroline isso sempre foi forte, mas elas relatam que não havia esse lugar de valorização. “Não tinha essa afirmação e esse recorte, essa necessidade de tratar como uma criança especificamente negra”, lembra Amanda. Ana Caroline também pontua essa questão. “Sempre teve esse diálogo, mas nunca existiu esse lugar de valorização de cultura negra dessa maneira. Pensar em uma questão identitária nunca foi uma pauta”.
Todas as atividades a gente pensa em valorizar a infância e valorizar as perceptivas de olhar para o continente africano, mostrar para as crianças que é um pouco do que são elas, da história delas.Ana Caroline
Para Odara, dentro de casa esse espaço era bastante forte. Mas ela notou que nos locais onde estudava e trabalhava não tinham essa mesma postura. “Quando chegava às instituições onde eu estava, não via esses referenciais e a partir daí, como educadora, percebi que minha função deveria ser trazer esses referenciais e referenciais positivos porque muito do que tinha da população negra na escola, na minha infância, era só sobre escravidão ou falar da miséria do continente, de Aids, aquela coisa pesada, vários estigmas. Talvez essas ações [do coletivo] seja algo que eu não tive quando criança e vem da necessidade das crianças negras e não negras perceberem quais são as importâncias das contribuições afrobrasileiras”.
E elas querem isso. Contribuir e informar da maneira mais natural possível, sem estigmas e visões pré-estabelecidas. “Dá para perceber que as crianças ficam felizes de saber de questões que elas não sabiam antes. Elas conseguem interagir mais quando você traz brincadeiras africanas, elas compreendem o que você está falando e por ser algo mais lúdico, elas já têm outra percepção do conteúdo”, explica Odara. “E a gente se diverte junto, me sinto uma criança com eles”, completa.
Você tem vontade de mostrar para as outras crianças que existe uma cultura negra, sim, e que tem que ser valorizada e que é tão boa quanto a que é passada pra gente que é a cultura branca.Amanda Cristina
Para as três, o trabalho com infância e com cultura e a raça negra é natural. Todas desenvolvem outras atividades que se relacionam com essas questões. Ana Caroline é co-fundadora e co-gestora do centro cultural Quilombo Terça Afro – que promove também o Tercinha Afro, voltado para crianças. “O projeto discute questões raciais a partir de rodas de conversa e na nossa sede a gente tem várias atividades, cursos e eventos pensando na cultura negra. No Tercinha Afro temos livros, oficinas de brinquedos , sempre pensando nesse lugar de representatividade e lugar de fala da criança.”
Amanda é nutricionista e tem especialização em nutrição infantil e faz mestrado com foco em saúde da população negra, também com recorte em infância. “Faço essas pesquisas com o recorte racial tratando a desigualdade social no sentido de quando a gente fala de nutrição e saúde a gente não faz esse recorte e trata a população como se fosse toda a mesmo e não é. Cada um tem suas especificações e necessidades diferentes e busco diminuir essa iniquidade racial.”
Odara é educadora e idealizadora de um aplicativo de celular que ensina o kimbundo, o Alfabantu.”É uma das línguas mais faladas em Angola e teve muito contribuição aqui no Brasil, muitas palavras vieram do kimbundo. É interessante, porque a partir das palavras as crianças vão para o continente, para Angola e aprendem uma série de coisas de geografia, vai para outras partes.”
Elas conseguem interagir mais quando você traz brincadeiras africanas, elas compreendem o que você está falando e por ser algo mais lúdico, elas já tem outra percepção do conteúdo.Odara Dèlé
Assim, as três realmente uniram forças e saberes no coletivo. E os resultados vão além do trabalho com as crianças. Em 2016 e 2017 o coletivo realizou duas edições do seminário Omo Erê que reuniu especialistas para debater temas como literatura infantil, oralidade e musicalidade com enfoque étnico-racial. “Os seminários ligaram a gente com professores, pessoas que estão discutindo o assunto e tivemos uma devolutiva muito bacana e eles começam a enxergar outras possibilidades para trabalhar na sala de aula e a partir disso ele tem outros meios, conseguem ver outras referências de livro, música, dança, outras formas de trabalhar que não seja falar de doença.”, diz Amanda.
Começam a enxergar outras possibilidades para trabalhar na sala de aula, conseguem ver outras referências de livro, música, dança, outras formas de trabalhar que não seja falar de doença. Amanda
Fora isso, em junho deste ano o grupo lançou um catálogo que resgata e reúne o que foi discutido nos seminários. O catálogo Omo Erê está disponível na internet. “Está lindo!” garantem e comemoram elas, felizes da vida com a publicação, orgulhosas mesmo de ver o que foi produzido. O material é resultado de muito trabalho e discussões e agora está pronto para ser explorado. E a expectativa não poderia ser outra. Um território livre para ser (re)conhecido por cada vez mais gente. “Que o Dúdú alcance outros locais que não seja só São Paulo, alcance mesmo o mundo. Nosso intuito é esse”, espera Ana Caroline.
Elas sabem que tem muito tesouro no caminho.