Defesa dos direitos das mulheres invade indústria do entretenimento e redes sociais, mas fenômeno divide especialistas
Por Bolívar Torres Do O Globo
Em uma pesquisa com seus leitores no final do ano passado, a revista “Time” incluiu “feminismo” na seleção de palavras que deveriam ser banidas da língua inglesa em 2015. A brincadeira pegou mal e uma das editoras da publicação, Nancy Gibbs, foi logo desfazendo o mal entendido: “Não temos nada contra o feminismo em si”, explicou a jornalista, “mas por que agora cada celebridade precisa se posicionar sobre como a palavra se aplica a eles, como um político declarando seu partido?”.
Nancy fazia referência a um fenômeno importante de 2014. Antes quase considerado um palavrão no mundo do entretenimento, o termo “feminismo” roubou a cena ao longo do ano, entrando definitivamente no vocabulário pop. Grandes figuras midiáticas perderam o medo de defender os direitos das mulheres e declararam publicamente sua adesão. Cantoras como Miley Cyrus e Taylor Swift militaram pelo movimento (a primeira chegou a se declarar “uma das maiores feministas do mundo”), a pergunta “Você é feminista?” se tornou recorrente em talk shows, e a reivindicação chegou até à ONU, onde a atriz Emma Watson foi ovacionada por seu discurso a favor da igualdade entre gêneros.
Nenhuma personalidade, contudo, explorou a pauta com mais contundência do que Beyoncé — ou, como é chamada agora, Queen Bey. Ao se apresentar em agosto no VMA, premiação organizada pela MTV com audiência de 8 milhões de pessoas, a cantora fez uma pose imponente diante da palavra “Feminist”, projetada em letras luminosas. Uma de suas músicas cita, inclusive, um texto da autora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, “Sejamos todos feministas”, que acaba de ser disponibilizado em e-book no Brasil pela Companhia das Letras. Já fazia tempo, aliás, que o bordão “Liberté, égalité, Beyoncé” (Liberdade, igualdade, Beyoncé, num trocadilho com o lema da revolução francesa) se espalhava em pichações de muros, cartazes de manifestações e estampas de camisetas.
Sessenta e cinco anos depois da publicação de “O segundo sexo”, de Simone de Beauvoir, o feminismo ganhou um novo tipo de visibilidade — e a contribuição das celebridades é difícil de ser negada. Segundo o Google Trends, que mostra os termos mais procurados na ferramenta, o número de buscas por “feminism” dobrou entre o início de 2013 e o final de 2014, com grandes picos durante o buzz provocado pelo discurso de Emma Watson e a performance de Queen Bey.
Só que essa nova militância, vendida em uma embalagem de glamour, purpurina e sensualidade, tem dividido feministas. Na internet, alguns ativistas mostraram descontentamento com a associação entre militância e marketing. Enquanto muitos desconfiam que as ideias do movimento podem ser diluídas ou edulcoradas pelo fenômeno, outros valorizam a sua difusão. Questionada sobre o assunto, a escritora, atriz e cineasta Lena Dunham, criadora do seriado “Girls”, respondeu: “Se o feminismo tiver que se tornar uma marca para promover mudanças, não vou reclamar”. Opinião compartilhada por Carla Rodrigues, professora de filosofia da UFRJ e autora de “Duas palavras para o feminino: hospitalidade e responsabilidade”.
— Hoje em dia, o que pode existir sem ser capturado pela estrutura capitalista? — diz Carla. — No Brasil o feminismo foi quase sempre uma palavra proibida entre mulheres famosas: era melhor dizer “sou feminina” e não “sou feminista”. Em termos marqueteiros, é preciso recondicionar a marca feminismo, a ideia de que ser feminista é algo negativo.
Para a escritora e jornalista Rosiska Darcy de Oliveira, membro da Academia Brasileira de Letras e autora de livros como “A libertação da mulher” (1975), o feminismo só está sendo usado como marketing porque tem ressonância na audiência.
— A cultura pop simplifica um tema complexo e ao mesmo tempo amplia o debate. Empobrece qualitativamente e enriquece quantitativamente, como sempre acontece com a massificação. O balanço pode ser positivo — avalia. — O feminismo não é uma religião nem uma ideologia, é a maneira de as mulheres buscarem liberdade e felicidade no seu cotidiano. Cada uma se apropria do tema à sua maneira. Cada mulher inventa o seu feminismo. Beyoncé põe na agenda de hoje, de modo estridente, um tema que muitos prefeririam ver ultrapassado e não foi. Continua na ordem do dia, é contemporâneo.
Autores do recém-lançado “Feminismo e política” (Boitempo), uma análise das principais contribuições da teoria política feminista produzida a partir dos anos 1980, os professores da Universidade de Brasília Luis Felipe Miguel e Flávia Biroli veem o fenômeno de forma positiva, mas lembram que nem todo burburinho é, necessariamente, revertido em atenção política. O feminismo das décadas de 1960 e 1970 teria promovido, segundo eles, mais avanços práticos nos direitos das mulheres do que a militância em tempos de Beyoncé.
O avanço dos direitos, o enfrentamento dos preconceitos e retrocessos relacionados presentes nas políticas conservadoras e na ação das igrejas não necessariamente coincidem com sua mobilização por estrelas midiáticas — pontua Flávia. — Ainda assim, o fato de que o feminismo ganhe sentido positivo é importante, pode ser um fator para que mulheres e homens tenham estímulo para identificar-se publicamente como feministas.
Neste sentido, o ativismo das estrelas pop ajuda a desmistificar a ideia de que o feminismo é algo raivoso, “um machismo ao contrário”, avalia Miguel. Porém, ele alerta que a apropriação da agenda feminista é seletiva: sua estratégia é menos voltada para promover uma causa do que para promover uma imagem.
— Miley Cyrus pode reivindicar seu feminismo em entrevistas, mas o feminismo não se esgota no combate ao duplo padrão de moral sexual — argumenta Miguel. — Aliás, mesmo a persona pós-Disney de Cyrus é ambígua: pode-se dizer que ela apenas projeta a si mesma como objeto sexual, algo que é um alvo permanente da crítica feminista.
As militantes do feminismo pop não apenas se encaixam nos exigentes padrões de beleza da indústria de entretenimento como ainda usam a objetificação dos corpos perfeitos a seu favor. No Brasil, o caso de Valesca Popozuda é representativo. Ao expor o desejo das mulheres em suas letras, a funkeira foi alçada a ícone feminista e se tornou objeto de pesquisas acadêmicas (um exemplo conhecido é o trabalho “My pussy é o poder”, da blogueira e pesquisadora Mariana Gomes Caetano). A contribuição da cantora para a libertação sexual feminina, contudo, não é unânime. Segundo alguns críticos, as canções reafirmam a autonomia da mulher sobre seus desejos, mas em alguns casos representam o corpo como instrumento para a conquista de bens materiais.
— Acima de tudo, o importante é cada mulher se sentir bem com o seu corpo — rebate a cantora. — Nós somos donas do nosso próprio nariz, e por que não do corpo também?
Quanto à adesão das celebridades ao feminismo, Valesca diz que prefere não pensar em “apropriação”, e sim em “popularização”:
— Diversas artistas defendem a independência feminina, o sexo com prazer, a liberdade para escolher o próprio parceiro há muito tempo. É um movimento que cresce cada vez mais. E essa tem sido a verdade de muitas mulheres que fazem parte do meu público. Campanhas de marketing podem até ajudar a divulgar essa postura de controle da própria vida que as mulheres assumiram, mas é importante que seja uma verdade.
Ao exaltar o empoderamento das mulheres, as cantoras de funk influenciaram a linguagem de eventos feministas, como a versão brasileira da Marcha das Vadias, cujas palavras de ordem se apropriam dos hits libidinosos de Valesca ou Tati Quebra Barraco. Segundo Carla Rodrigues, é o reflexo de um feminismo mais aberto, pautado no dia a dia e nas experiências pessoais, e que não exige o comprometimento teórico do ambiente acadêmico. Segundo ela, já não é mais preciso ter “carteirinha de feminista”. Hoje, basta se declarar feminista para sê-lo.
— Para ser feminista no Brasil nos anos 1970 era preciso estar na universidade, frequentar os cursos. Mais tarde, com o surgimento das ONGs, a atuação no feminismo se deu pelas esferas institucionais — conta Carla. — Agora, a internet oferece uma possibilidade de autoexpressão, que ajudou na difusão do movimento. É um feminismo que surge fora dos âmbitos institucionais, como uma resposta à ideia de que tudo está bem, de que não há mais direitos para as mulheres conquistarem.
Não por acaso, o feminismo pop ganha força no momento em que se consolida uma nova geração de ativistas conectados. Fundadora do site “Think Olga”, que lançou no ano passado o “Chega de fiu fiu”, uma campanha contra o assédio às mulheres nas ruas, a jornalista Juliana de Faria acredita que as redes sociais foram fundamentais no renascimento do feminismo nos anos 2000. A internet também teria ajudado a promover um feminismo mais ligado ao cotidiano e próximo da realidade das pessoas.
O feminismo pode ser o que quer que as pessoas façam dele, desde que condizente com suas bases. Nesse caso, acredito que seja legítimo ele se tornar uma mensagem mais palatável, bem-humorada, fácil — lembra Juliana.
A jornalista não vê problemas na associação entre ativismo e mainstream. Pelo contrário: ela acredita que é preciso “enfrentar o academicismo e derrubar os muros que isolam o conhecimento teórico do cotidiano”:
— Não deveríamos agir como se o feminismo estivesse protegido por uma redoma, com acesso permitido apenas aos intelectuais. Quando relacionam um suposto empobrecimento do feminismo derivado do apoio de mulheres celebridades ao movimento, não posso deixar de me perguntar se não há um certo machismo nessa associação. Impossível não pensar que exista aí sim a ideia equivocada de que mulheres que trabalham com o corpo, que usam da sua sexualidade, que às vezes cantam sobre trivialidades da vida, que gostam de moda e de beleza não possam ser feministas, pois seriam fúteis. Não é engraçado perceber que a maioria das coisas associadas com futilidades são entendidas socialmente como femininas?
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