Há cinco anos, Preta Ferreira era presa sem provas por conta de sua atuação pelo movimento de moradia no centro de São Paulo (SP). Foram 109 dias detida até receber sua liberdade condicional. Desde então, ela ainda não foi ouvida pela Justiça.
A artivista, como se autodenomina, diz não estar preocupada com essa situação. Pelo contrário, todo esse processo tem sido o combustível para ela viver o momento de maior expressão de sua carreira artística.
Neste dia 25 de julho, Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha, Preta Ferreira lança a música Preta em Movimento, inspirada nos diálogos e visitas de Angela Davis. O clipe da canção conta, também, com um poema escrito por Conceição Evaristo para ela quando foi presa.
O lançamento acontece uma semana antes da estreia do musical Clara Nunes: a tal guerreira, concebido e protagonizado por Vanessa da Mata que tem Preta Ferreira como Nanã.
Essa mistura de acontecimentos reforça a postura que artivista vem adotando nos últimos anos, de unir sua militância com expressões artísticas.
“Nós somos da luta, mas porque a sociedade nos forja à luta. A sociedade não é bacana com as mulheres negras, então acho que essa data veio mais para reforçar essas mulheres e para dizer o quanto elas são especiais, o quanto elas são transformadoras”, conta Preta Ferreira em entrevista ao programa Bem Viver desta quinta-feira (25).
Preta Ferreira e Angela Davis tiveram o primeiro contato por conta da prisão, em 2019. Desde então elas seguem em contato e um novo encontro teria acontecido no último mês. Condições de saúde da intelectual estadunidense, porém, cancelaram a viagem ao Brasil.
“Eu estava muito nessa, de ‘ah, eu sou uma simples militante sem teto’. Mas ela [Angela Davis] tirou essas escamas nos meus olhos e me disse: ‘quando a mulher negra se movimenta, movimenta com ela toda uma estrutura’. E realmente a gente movimenta uma estrutura”, relata Preta Ferreira citando uma frase emblemática de Angela Davis que foi incluída na canção lançada nesta quinta.
Preta Ferreira é filha de Carmen Silva, principal líder do movimento de luta por moradia digna da ocupação 9 de julho, localizada no centro de São Paulo, que também já foi processada e inocentada. As duas integram o Movimento Sem Teto do Centro (MSTC), que no ano passado foi convidado para participar da Bienal de São Paulo.
“Ocupar sempre foi uma arte. Dar função social a espaços sempre foi arte e ocupar pela porta da frente, essa é a grande diferença, ocupar com diálogos”, disse Camen Silva ao Brasil de Fato na época.
“Carmen Silva, que é minha mãe, quando ela ocupa esses prédios para garantir a moradia, não é somente da família dela. A gente continua movimentando essa estrutura mesmo sendo irreconhecidas, né? A gente não tem um reconhecimento social, porque há criminalização, mas a gente faz. A gente materializa o direito constitucional para essas famílias”, defenda Preta Ferreira
A Ocupação 9 de Julho foi o local que recebeu o evento de lançamento da canção Preta em Movimento nesta quinta-feira.
Confira a entrevista na íntegra
A ideia de lançar a música neste 25 de julho vem sendo pensada há quanto tempo?
Eu pensei em fazer nessa data como homenagem para as mulheres. Esse lançamento estava previsto há muito tempo, mas eu acho que casou para essa data porque a gente queria fazer um clipe bem bonito pela história do movimento Black Panthers, assim como os movimentos sociais.
A mulher negra faz dez coisas ao mesmo tempo. E eu me deparei com essa questão quando eu me vi fazendo musical, pegando ônibus, sendo liderança de movimento social, cantora, atuando na política. Esse é o lugar que coloca nossos corpos, mas a gente também não perde a ternura. Então eu quis tratar a mulher preta de uma forma diferente do que a sociedade está acostumada.
Nós somos da luta, mas porque a sociedade nos forja à luta. A sociedade não é bacana com as mulheres negras. Acho que essa data veio mais para reforçar essas mulheres e para dizer o quanto elas são especiais e quanto elas são transformadoras.
A minha voz é um transmissora para que todas as mulheres se enxerguem quanto potência, para que elas se enxerguem nas suas particularidades, como guerreiras, como resistência. E também não esquecer da ternura que é a mulher preta.
A mulher preta é afeto, é carinho, é cuidado. Mas quem cuida dessa mulher preta? Porque só enxergam a gente nesse lugar de potência, de resistência. Mas a gente não pode esquecer que nós também precisamos, merecemos e temos direito a seremos amadas, a seremos cuidadas, a seremos respeitadas, principalmente.
E a música conta com participação de Angela Davis e Conceição Evaristo, certo?
A gente abre o clipe já direto com o poema que a Conceição [Evaristo] fez para mim em 2019, que é esse poema está no meu livro Minha carne: Diário de uma prisão. É a última página do livro.
Sobre essa troca com Angela Davis… agora em 2024 ela fez 80 anos, então eu fiz a tradução do que que era Angela Davis. Eu estudei muito, além de ter esse encontro com ela, eu sou uma estudiosa dos livros, dos ensinamentos que a professora deixa pra gente.
A gente tinha que encontrar agora, de novo, no mês passado, mas infelizmente a Angela pegou Covid e teve que voltar para os Estados Unidos. E essa troca era justamente para falar desse encontro atual.
Porque, quando a Angela veio me visitar, ela veio justamente pela prisão injusta que eu sofri. E ela se colocou muito disponível a me ajudar no que ela pudesse.
Eu ainda me encontro presa, praticamente, pois estou de liberdade condicional. A gente aguarda a data do julgamento. O processo ainda não acabou.
E isso diz muito sobre a perseguição aos movimentos do Black Panther, sobre a perseguição aos movimentos sociais no Brasil. Isso diz muito sobre o período ditatorial que a gente viveu aqui no Brasil.
Eu estava muito nessa, de “ah, eu sou uma simples militante sem teto”. Mas ela [Angela Davis] tirou essas escamas nos meus olhos e me disse, “quando a mulher negra se movimenta, movimenta com ela toda uma estrutura”.
E realmente a gente movimenta uma estrutura. Eu, enquanto líder de movimento social, não estou brincando com a vida das pessoas,nem com direito constitucional a moradia das pessoas.
Acabamos de entregar 125 unidades de moradia do antigo Hotel Cambridge, então isso é movimentar as estruturas.
Carmen Silva, que é minha mãe, quando ela ocupa esses prédios para garantir a moradia, não é somente da família dela. A gente continua movimentando essa estrutura mesmo sendo irreconhecidas, né? A gente não tem um reconhecimento social, porque há criminalização, mas a gente faz.
A gente materializa o direito constitucional para essas famílias
O que podemos esperar do musical Clara Nunes: a tal guerreira?
Eu posso dizer que vocês vão se emocionar muito, que está bem bonito. Jorge Farjalla permeia por um mundo incrível. É um diretor muito maravilhoso, que traz coisas que eu antes não me perguntava: será que isso é possível? Ele faz a gente não somente acreditar, mas faz a gente realizar.
Vanessa da Mata não é só idealizadora, mas também vai trazer Clara Nunes. Ela é Clara Nunes e tem tudo a ver. A história de Clara Nunes, o samba, as mulheres, como as mulheres viviam aquela época.
Eu não vou ficar dando muita spoiler, até mesmo porque eu não posso. Dia 2 de agosto, estreia o musical Clara Nunes: A tal Guerreira”.
Eu sou cover de Nanã que é uma das personagens principais. Esse é o meu primeiro musical e eu tô muito feliz assim porque logo de cara já peguei um papel desse para encarar.
Estar no musical para mim foi muito importante porque foi transformador. Eu superei muitos limites. Eu nunca tinha feito um musical, nunca tinha parado para pensar que era possível estar no musical.
Teve um estalo que te fez perceber que era preciso juntar a arte com a militância?
Eu sou artista desde criança, e eu sempre tive certeza de que eu sempre soube que eu era artista. Mas a luta me impedia ao mesmo tempo que ela me dava gatilhos para estar na arte.
Quando eu vim para São Paulo, eu sofria na década de 90, eu sofria muito preconceito. Xenofobia… eu morava em praias de ocupação.
Então, o que eu fiz? Eu resolvi fazer uma festa junina e convidei toda a escola e o entorno para participarem dessa festa. Através daí eu descobri o poder da arte e militância. Isso foi em meados de 2000, 2001. E a partir daí, eu não parei mais.
Quando eu saí da prisão, eu saí com um livro e um disco escrito
Mas o que virou a chavinha mesmo foi o filme Era o Hotel Cambridge de Eliane Caffé, que foi gravado na ocupação Cambridge, quando era ocupação.
Então esse filme, além de rodar um mundo todo falando sobre a história dos movimentos sociais, me mostrou que é possível a gente fazer arte mostrando a realidade, não o que a mídia tradicional sempre mostrou dos movimentos sociais ou das nossas histórias.
Qual que é a tua atual situação em relação a essa prisão injusta que aconteceu em 2019?
Agora que eu vou ser ouvida, né? Fazer uns cinco anos e eu nunca fui ouvida, eu só fui jogada numa masmorra sem ter direitos de defesa, de ser ouvida.
Durante esses cinco anos eu estou ouvindo muitas coisas dentro do Ministério Público, mas nada que nos criminalize, nem as pessoas que nos prenderam.
Então eu gostaria muito de ser ouvida, porque eu sou um atuante da Justiça brasileira, eu sou um atuante contra as injustiças sociais. E isso mostra que não é prendendo lideranças de movimentos sociais que vamos solucionar o problema da moradia.
Não é criminalizando os movimentos sociais que vai solucionar esse problema, isso é um problema político. E quem tem que responder por isso são as oportunidades políticas e não as lideranças de movimentos sociais.
Porque se os movimentos sociais existem, é justamente pela ineficácia dos governantes.
Eu saí da prisão gritando a minha inocência e eu continuo aqui em liberdade, gritando a minha inocência. Essa música diz muito sobre isso.
Eu sou aliada da liberdade. Você pode me prender, pode me jogar na masmorra como me jogaram, e eu voltei de lá cheia de ar e vontade de fazer política e agora está na hora de exercer.