Com licença, quero falar somente com homens negros

Vecteezy

Sentada na sala da minha casa, de 50 metros quadrados, tive uma visão. Ela foi tão real que precisei parar o que estava fazendo para escrever. E, vou escrever como se a cena tivesse se passando agora, viva, diante de mim, com todas as emoções e reações que a realidade pode revelar.

Cena 1– Convido homens negros para uma conversa numa sala. São vários, são muitos, eles aceitam com curiosidade. Sou eu e eles, mais ninguém. Pensei em chamá-los no privado, pois, não quero que ninguém encarne o papel de advogado de defesa ou acusação, como acontece todas as vezes que tento dirigir-me a eles. Quando não são mulheres negras “maternando”, são mulheres brancas e homens brancos praticando racismo. Não aceito outros convidados, somente eles e eu.  

Sentamos na sala, em círculo, para que ninguém tenha a impressão de tratar-se de palestra proferida por uma mulher ou uma aula, nada que possa insinuar uma relação vertical. No ar, um clima de desconfiança e curiosidade.  Começo a falar:

-Queria muito conversar com vocês sobre gênero. Mais precisamente sobre as desigualdades de gênero.

Uma parte deles se levanta e se dirige até a porta. Eu não posso impedi-los de partir e, com tristeza, acompanho os passos. Outros titubeiam em acompanhar o grande grupo ou ficar. Alguns ensaiam se levantar, mas permanecem sentados. Outros, vendo o movimento de saída, simplesmente acompanha. Tenho a impressão que alguns ficaram por curiosidade ou para desafiar-me, provar que estou errada, antes mesmo de continuar a conversa. Eu olho-os nos olhos. Tento pedir por confiança através deste olhar. Quero dizer que não estou ali para acusar ou para imputar mais dor numa existência que eu sei ser dura, desumanizada. Mas, visto que ambas as partes sabem, não quis começar por ali. 

Cena 2– A sala é de um silêncio ensurdecedor, algumas pernas balançam inquietamente. Alguns dedos fazem um barulho repetitivo na cadeira, querendo acabar com a atmosfera, onde todos, inclusive eu, espera por algo que não sabe se vai vir.

Abro enfim a boca. Fecho-a com receio de perder a outra parte do grupo e ficar ali, sozinha, entre aquelas paredes, rodeada de cadeiras vazias. Mas, é o preço a pagar. Eu quis me apresentar sozinha para que não pensem ser um complot, um complot feminista, uma guerra dos sexos manipulada pelos colonizadores. 

Eu tomo coragem e pergunto. Pergunta difícil, não sei como irão reagir.

– Se vocês não lucram com o Patriarcado, porque não renunciam ao machismo advindo dele?

A outra metade sai da sala. Alguns levantam com sorriso nos lábios, incrédulos por serem perturbados com uma pergunta dessas. “Não viemos aqui para ouvir isto”, “achei que fosse algo que dizia respeito a todos nós, não coisas de mulheres”, “de novo com este papo?” “Tá de brincadeira, né?”, “Você fala como se fosse branca”, “Olhe bem para ela, é branca, sim”. Ouço as acusações em silêncio. Qualquer coisa que eu disser, pode piorar as coisas. Estou só, eu sei que estou, mas continuo a olhar para a frente enquanto deixam a sala. Não abaixo a cabeça, olho em direção da porta e ela se fecha depois de um barulho estrondoso. Alguém queria anunciar a saída com honrarias e glórias. 

Desanimo, olho para o teto. Nada de novo me passa pela cabeça. Eu não tinha um plano B. Eu só queria conversar sobre desigualdades de gênero. Queria falar disso entre nós. 

De repente olho para o lado, onde os meus olhos não tinham alcançado, tal a minha concentração do movimento verso a porta. Um deles ficou. Um deles ficou. Inacreditável. Quase desabo de emoção. Fico nervosa, pois a pergunta era aquela mesma e, em base à conversa, talvez surgissem outras. Eu não tinha uma lista, como se fizesse uma pesquisa ou um interrogatório. Eu tinha uma única pergunta. E, àquela altura do campeonato, ela se fora. 

O homem negro ao lado olha-me, seguro de si. Eu olho-o também. Diante dele, estou fragilizada. Ele também parece estar, pois não demonstra defesa, nem ataque. Ele me encara. O que eu tenho a fazer? Tive uma ideia. Refazer a pergunta. E, se ele sair, estarei sozinha. O que tem de tão grave nisso? Pensei.

Cena 3-

– Se você não lucra com o Patriarcado, porque não renuncia ao machismo?

Ele olha-me pausadamente. Não tem pressa em responder. Aproxima-se, pois a sala ficou grande demais para nós dois. E, já instalado, começa a falar…

A visão termina aqui.


Fabiane Albuquerque é doutora em sociologia, autora dos livros Cartas a um homem negro que amei (Editora Malê) e Ensaio sobre a raiva (Editora Patuá).


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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