Combater o racismo é lei no Rio de Janeiro

Que seja a sexta o dia para quem quiser vestir branco. Que seja o domingo o dia de cultos e missas. Que haja giras e círculos de oração. Que haja fios de contas nos pescoços de uns e crucifixos nas mãos de outros. Mas, que nunca, jamais, haja sangue ou fogo

FONTEPor Mônica Francisco, da Revista Forum
Mônica Francisco (Foto: Divulgação/ Rithyele Dantas)

Enfrentar toda forma de discriminação e preconceito é responsabilidade de toda sociedade dita civilizada. Trago em minha trajetória o combate veemente às chagas que atormentam todes aqueles que fazem escolhas por este ou aquele segmento de fé. No âmbito do Legislativo, lugar que ocupo há pouco tempo, primamos (somos um coletivo) por criar legislações que promovam a inclusão e combatam as diversas formas de discriminações.

Recentemente, duas leis relacionadas às religiões de matriz africanas foram sancionadas; a Lei 9251/2021 que determina o tombamento por interesse histórico e cultural do Estado o Terreiro de Joãozinho da Goméia – construída em diálogo com as herdeiras/herdeiros espirituais de João Alves Torres Filho e com o Ministério Público Federal – e a Lei 9259/2021 que torna 27 de março Dia Estadual de Conscientização contra o Racismo Religioso — Dia Joãozinho da Goméia.

Antes da sanção, a jornalista Flavia Oliveira ao comentar (na Rádio CBN) o projeto de lei, aprovado na Alerj, que buscava estabelecer o dia 27 de março como o Dia Estadual de Conscientização contra o Racismo Religioso, destacou que a proposta, sobretudo em defesa dos povos de terreiro, que vêm sendo atacados de diversas formas e maneiras por evangélicos fundamentalistas e intolerantes, fora escrito por uma pastora evangélica. Eu, Mônica Francisco, mulher negra, de favela, pastora, ativista da diversidade e do respeito religioso.

Eu, que fiz minha escolha religiosa a partir da fé evangélica, reconheço a importância das religiões de matriz africana como marca fundamental na história de negras(os) descendentes de pessoas escravizadas nesse país.

Eu, pastora evangélica, reconheço a resistência e o conforto que nosso povo encontrou na manifestação da sua religiosidade, da sua fé ancestral, no reconhecimento dos seus antepassados que inspiravam (e inspiram) a luta pela sobrevivência – e mais do que isso, a luta por uma vida digna e plena, com todas as reparações históricas que nos devem, pela opressão, pelo açoite e pela chibata.

É inadmissível que no estado do Rio de Janeiro, como é inadmissível em qualquer lugar do país, que pessoas ditas evangélicas, aliadas a políticos que se denominam senhores da fé evangélica, junto com supostos pastores e líderes que impulsionam o ódio e a intolerância, ousem queimar terreiros, seus templos e imagens acreditando que isso significa vencer o mal e os demônios.

Esses ditos evangélicos, inclusive, desconhecem a própria história, quando católicos indignados com a presença dos crentes em suas cidades, desde o fim dos anos de 1800, incendiaram igrejas, expulsaram missionários, não permitiram enterros de não católicos em seus cemitérios e não reconheceram o matrimônio realizado pelos sacerdotes evangélicos, determinando que os filhos(as) dessas uniões fossem chamados de pagãos.

Talvez esses católicos acreditassem estar vencendo o mal, da mesma forma que certos “cristãos” fazem hoje. Demonizar a religião do outro por não se reconhecer nela é uma prova da barbárie que vivemos, distantes de um mundo mais justo e plural. O outro sempre visto como inimigo, para que se prevaleça sobre ele.

Volto a dizer, é inadmissível que terreiros sejam queimados. A influência do discurso de ódio travestido de neopentecostalismo sobre os comandos do tráfico de drogas, bem como sobre as milícias, não tem permitido a liberdade dentro de territórios e comunidades. A título de uma batalha espiritual – assim como nas cruzadas – impedem que as pessoas andem com seus fios de contas, com suas roupas brancas e façam seus rituais.

Ciente do que é ser filha da liberdade conquistada pelo muito sangue negro que mancha o chão do nosso país, eu – pastora evangélica – reconheço que somos todas(os) chamados à liberdade.

Por isso, com convicção da liberdade que me move apresentei na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, tanto o projeto que torna o dia 27 de março o Dia Estadual de Conscientização Contra o Racismo Religioso – Dia Joãozinho da Goméia – quanto o projeto de tombamento, como patrimônio histórico e cultural – o local onde funcionou o Terreiro da Goméia, onde Joãozinho foi pai de santo por 25 anos, e hoje é um legado para os seus descendentes.

Joãozinho nasceu na Bahia em 27 de março de 1914. Esse é o motivo para o Dia de Conscientização ser 27 de março. Ele veio para o Rio de Janeiro em 1951, onde se estabeleceu em Duque de Caxias, obtendo grande projeção pelos trabalhos que realizava no terreiro que abriu, o Terreiro da Goméia, e pelo seu posicionamento em defesa do povo negro.

A sanção significa uma vitória, que já nos é garantida pela Constituição Federal: a da liberdade religiosa, com o Estado protegendo a todas as expressões religiosas.

Que seja a sexta o dia para quem quiser vestir branco. Que seja o domingo o dia de cultos e missas. Que haja giras e círculos de oração. Que haja fios de contas nos pescoços de uns e crucifixos nas mãos de outros. Mas, que nunca, jamais, haja sangue ou fogo, para destruir o que é sagrado para o outro. É no respeito que vamos construir a democracia.

*Mônica Francisco é pastora, deputada estadual (PSOL) e vice-presidente da Comissão de Combate às Discriminações e Preconceitos de Raça, Cor, Etnia, Religião e Procedência Nacional da Alerj.

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