Comentários sobre a Carta de Juristas Negras na III Conferência Nacional da Mulher Advogada

O dia 06 de março de 2020 ficará marcado na história da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) como o dia em que mulheres negras se articularam para dar voz aos pleitos de equidade racial no Sistema OAB, defendendo a necessidade de uma política institucional que, interseccionando gênero e raça, rompa com as barreiras construídas pelas estruturas do machismo e do racismo.

A mobilização das mulheres negras em rede para atuação sociopolítica e jurídica não é fato inédito, uma vez que, tanto dentro quanto fora da institucionalidade, a realidade reivindica-nos racionalidade instrumental e comunicativa e estratégias ancestrais substanciosas, para que seja garantida existência, desenvolvimento, participação nas arenas decisórias historicamente defesas e não retrocesso das conquistas obtidas pelo protagonismo coletivo.

E, assim, a atuação coletiva comentada se deu no âmbito da III Conferência Nacional da Mulher Advogada (CNMA), com o tema Igualdade, Liberdade e Sororidade, que ocorreu em Fortaleza, nos dias 05 e 06 de março, e contou com a participação de mais de 2.600 mil inscritas, que se dividiram entre as dezenas de painéis, mesas redondas, workshops e oficinas, com a abordagem de diversos temas do direito, da política e da sociedade, resguardada a dimensão de gênero, tudo isso em ocasião vizinha ao Dia Internacional da Mulher, instituído pela ONU.

A tônica desta Conferência foi a reivindicação de espaços de poder e decisão para as mulheres advogadas, que demandam por mais atuação política e representatividade dentro da OAB. Os dados trabalham em favor desta reivindicação, afinal as mulheres representam quase 50% da advocacia nacional, segundo informações divulgadas e atualizadas pelo site do Conselho Federal da OAB (2019), mas essa proporção está longe de se materializar nos espaços decisórios da instituição. Para citar um exemplo, as mulheres ocupam apenas 20% dos cargos no Conselho Federal da Ordem (CFOAB) no mandato relativo ao triênio 2019-2021.

Mas, o diferencial dessa Conferência foi a atuação de um grupo de pouco mais de 20 mulheres negras, advogadas que certamente serão lembradas por sua articulação coletiva e estratégica para se fazerem vistas e ouvidas em um ambiente estruturalmente construído para a invisibilização das suas pautas e, também, de seus corpos desviantes. A OAB não nasce democrática, mas, sim, no auge da república velha e possui passagens destoantes de sua missão precípua declarada em Estatuto, Código de Ética e Regimentos, fortaleceu-se enquanto ambiente massivamente masculino – inclusive, devido ao estreito e obstaculizado acesso feminino à formação superior e ao exercício da advocacia – e aristocrático, ou seja, duplamente classista.

As juristas negras buscaram caminhar em grupo durante todo o evento e participar das atividades da Conferência preferindo as mesas em que houvesse participação de juristas negras e negros na qualidade de expositoras/expositores. Ainda que a representação em mesa fosse solitária, emergia (e transbordava) da plenária solidariedade. A decisão de andarmos juntas, aquilombadas, a despeito de sermos uma coletividade heterogênea, não foi tirânica, mas, natural, um resgate imemorial e cultivo de afetos negados – e ainda não totalmente recuperados – na violenta diáspora africana.

Era notório que, apesar da ausência de paridade étnico-racial nas atividades, muito provavelmente, o CFOAB jamais tenha tido em um evento de repercussão nacional, e cuja temática não fosse étnico-racial, a expressiva participação de palestrantes negras verificada na III Conferência Nacional da Mulher Advogada. Infelizmente, não é possível respaldar essa impressão estatisticamente, mas, tão somente, pelo valioso saber empírico: estávamos lá (isso não é comum, pois os custos envolvidos inviabilizam imersões análogas), nos vimos, fomos vistas e tudo isso com razoável recorrência. Assim, esperamos avançar ainda mais com o apoio de mais mulheres negras advogadas, de mulheres não negras e de homens, que reconhecem a igualdade como o verdadeiro quinhão da justiça social. Acreditamos que na IV Conferência Nacional da Mulher Advogada teremos um número exponencial de mulheres negras advogadas, comparado a essa edição, pois não arrefeceremos diante das intempéries.

Reunindo-se durante o evento, esse grupo, formado por advogadas naturais das mais diversas regiões do país ensinou sobre o potencial transformador da união de mulheres negras em torno de um mesmo propósito. A várias mãos redigiram durante o evento “A Carta Aberta de Juristas Negras”, requerendo ao CFOAB a elaboração de um Plano Nacional de Ações Afirmativas, a ser construído com a ampla e efetiva participação da advocacia negra, e que preveja ações relevantes para a efetiva inclusão das advogadas e dos advogados negros no Sistema OAB. (https://peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=BR115303)

E foram essas várias cabeças pensantes e a soma de experiências diversas, que sistematizaram os pleitos mínimos da classe como, por exemplo, a inclusão do critério raça/cor para cadastramento e recenseamento da advocacia, de forma a explicitar qual o número real de advogadas e advogados negros no país, bem como a adoção de cotas de 30%, que interseccionem gênero e raça, aplicáveis aos mais diversos órgãos e atividades da Ordem, em todas as suas esferas – federal, seccional e subseções -, além de ações voltadas para a advocacia negra jovem e na defesa das prerrogativas.

No dia 05 de março, a Carta foi entregue ao vice-presidente da OAB Nacional, Dr. Luiz Viana Queiroz, representando o presidente Dr. Felipe Santa Cruz, que se comprometeu a dar andamento ao pleito. Na oportunidade, além das diversas juristas negras envolvidas na elaboração do documento, esteve presente a Dra. Silvia Cerqueira, presidenta da Comissão Nacional de Igualdade Racial da OAB, que também se comprometeu a ampliar o debate sobre as pautas no Encontro Nacional das Comissões de Igualdade Racial, que ocorrerá em maio do corrente ano, na cidade de Porto Alegre.

Foto: Bruno Gomes

Na sequência, a Carta foi lida por advogadas negras nos painéis e mesas redondas dos quais participaram. A primeira a ler o documento foi a Dra. Manoela Alves, presidenta da Comissão de Igualdade Racial da OAB-PE, que durante a apresentação dos projetos das Comissões da Mulher Advogada, no dia 06 de março, destacou a importância de cada um dos pleitos feitos pelas advogadas negras e finalizou a sua apresentação afirmando que: “seguiremos resistindo e na luta para que todos os espaços, inclusive o da OAB, possam gozar de uma democracia de fato, racial e de gênero”.

Destacada também foi a atuação da Dra. Marcelise Azevedo que, durante a leitura da carta, fez uma brilhante analogia sobre o tão discutido teto de vidro que impede as mulheres de ascenderem em suas carreiras. Segundo a conceituada advogada brasiliense, as mulheres negras lidam com uma realidade ainda mais gravosa em sociedade, havendo não um teto de vidro que as impedem de ascenderem a posições de poder, mas sim uma porta de vidro, que sequer as permitem adentrar em determinados espaços institucionais.

Também participou como palestrante a Dra. Chiara Ramos, que quebrou o protocolo, convidando ao púlpito todas as juristas negras que participaram direta e indiretamente da elaboração da Carta, de forma a evidenciar o trabalho coletivo que foi realizado conjuntamente. Em sua fala, a procuradora federal destacou a importância de unirmos esforços na luta contra o machismo e o racismo, citando importantes ações que antecederam a elaboração do documento, a exemplo da luta para realização do censo da advocacia, incluindo o critério raça/cor, que é encabeçada pela Dra. Maria Sylvia de Oliveira, presidenta da Comissão de Igualdade Racial da OAB-SP. Ao final da sua exposição, a palestrante, citando Ângela Davis, destacou a importância de atitudes antirracistas, esclarecendo que todas e todos possuem um lugar de fala na luta pela equidade e pela justiça social.

Durante a Conferência outras juristas negras e mulheres negras de outras áreas de conhecimento integraram os painéis, foram expositoras, palestrantes e contribuíram com discursos proeminentes, dentre as quais registramos, exemplificadamente, Maria Sylvia de Oliveira, Cláudia Luna, Zelma Madeira, Renata Deiró, Silvia Cerqueira, Ana Carolina Querino, Ana Patricia Dantas Leão, Helena Delamonica, Cristiane Damaceno e Francene D´Aguiar. O painel intitulado “O papel do homem na promoção da igualdade de gênero” contou com a participação do jornalista negro Ismael dos Anjos e do jurista negro Samuel Vida. Outro destaque de relevo foi a Conferência Magna de Encerramento, cuja conferencista foi a filósofa E mulherista africana Katiuscia Ribeiro, professora de Filosofia Jurídica na Escola de Magistratura do Rio de Janeiro/EMERJ.

Ao final do evento, a Presidenta da Comissão Nacional da Mulher Advogada, Dra. Daniela Borges, em respeito à construção do coletivo de mulheres advogadas negras releu a carta com as reivindicações elencadas, seguindo-se à leitura da Carta de Fortaleza – Ceará, atinente a III Conferência Nacional da Mulher Advogada, quando verificamos que o documento absorvera parte das demandas apresentadas pelas Juristas Negras, transmutando os pleitos das mulheres advogadas negras em pleitos de todas as mulheres advogadas, encaminhados na forma de recomendações de políticas a serem adotadas pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

A Comissão Nacional da Mulher Advogada, em observância ao Plano Nacional de Valorização da Mulher Advogada, instituído pelo Provimento nº 164, de 2015, que prevê uma série de políticas para a mulher advogada, iniciou um levantamento com recorte de gênero destinado à construção do perfil das mulheres que advogam no Brasil, considerando as peculiaridades regionais. Mas, entendemos que a falta de um censo sobre a advocacia brasileira, com recortes específicos para gênero, raça, etnia, deficiência, idade, diversidade sexual, dentre outros recortes, dificulta a análise de dados sobre todas essas especificidades e obsta as possibilidades de pensar políticas específicas para cada grupo dentro do sistema OAB, órgão essencial à justiça. Atualmente, apenas a OAB BA possui o componente racial inserido em seu cadastro de advogadas e advogados (2019), mas, a entidade não promoveu um recenseamento, o que serviria de estímulo à atualização de sua base cadastral para fins de conhecimento do perfil da advocacia territorial.
O Provimento nº 164, de 2015, em seu artigo 2º, inciso, VI, prevê “a construção de uma pauta de apoio à mulher na sociedade”, tendo focos principais:

a) a igualdade de gêneros e a participação das mulheres nos espaços de poder; b) o combate à violência doméstica, incluindo assistência às vítimas; c) o apoio a projetos de combate ao feminicídio e a outras violências contra a mulher; d) a defesa humanitária das mulheres encarceradas; e) a defesa e a valorização das mulheres trabalhadoras rurais e urbanas; f) a defesa e a valorização das mulheres indígenas; g) o combate ao racismo e à violência contra as mulheres negras; h) o enfrentamento ao tráfico de mulheres; i) a mobilização contra a banalização da imagem da mulher na mídia publicitária. (grifo nosso)

Conforme se deduz no texto do Plano Nacional de Valorização da Mulher Advogada, a temática racial tem sido disputada entre atores e atrizes sociais diversos, dentro e fora da Ordem. O combate ao racismo também tem sido pautado interna corporis, contudo, há carência de efetividade aos programas e normativas.
A OAB precisa fazer a sua lição de casa, iniciando por confrontar o racismo e promover a inclusão dentro de sua própria instituição, reconhecendo a existência étnico-racial nos seus quadros e criando políticas que efetivem a atuação da advocacia negra, com especial atenção às advogadas negras. Por isso reafirmamos a importância do movimento de articulação promovido pelas juristas negras para efetiva inclusão e reconhecimento da advocacia negra.

Os efeitos concretos da Carta Aberta das Juristas Negras já se fazem presentes na incorporação de algumas das suas reivindicações na Carta de Fortaleza (http://s.oab.org.br/arquivos/2020/03/ba435ead-bb3c-4a31-978b-a1192936c1a4.pdf) . documento oficial que sintetiza os compromissos assumidos pelas mulheres advogadas na concretização do Estado Democrático de Direito, quais sejam: “(…) 9 – Garantir a participação no sistema OAB para a mulher advogada, levando em consideração suas diversidades: jovens, idosas, negras, indígenas, pessoas com deficiência e outras; 10 – Obrigatoriedade da inclusão no requerimento da inscrição do bacharel em Direito nos quadros da OAB da autodeclaração de raça; 11 – Inclusão de advogadas negras proporcionalmente ao quadro de inscritas das respectivas Seccionais; (…)”

Pode parecer pouco diante do quadro de urgência das demandas das advogadas negras, mas, a partir daí, é possível abrir o debate sobre a necessidade de um Plano de Ações Afirmativas para a Advocacia Negra como um imperativo de justiça.

A OAB, bem como as demais instituições que compõem o sistema de justiça brasileiro, não podem continuar silenciando sobre uma das mais nocivas consequências do racismo estrutural, qual seja: o racismo institucional, que hoje se discute em escala mundial, sobretudo, após a proclamação pela Organização das Nações Unidas (ONU) da Década Internacional de Afrodescendentes (2015 a 2024), que tem como tema “Povos Afrodescendentes: reconhecimento, justiça e desenvolvimento”. Essa iniciativa da ONU conclama a todos para envidar esforços para participação plena e igualitária de afrodescendentes em todos os aspectos da sociedade.

A própria Constituição Federal quebra o pacto de silenciamento racial, criminalizando a prática do racismo. Após intensa luta dos movimentos negros no Brasil, as/os constituintes reconheceram que não seria possível a concretização de um Estado Democrático de Direito sem o enfrentamento do racismo estrutural. E não apenas por uma questão de reparação histórica pelas atrocidades cometidas durante e após o sistema escravagista, mas por uma necessidade de maior eficiência do sistema de justiça nacional.

A OAB Federal, cuja natureza sui generis não descaracteriza seu nascedouro e sustentáculo na sociedade civil, conquanto organização da sociedade civil e entidade de classe que é, está pronta a constituir novas ferramentas para que alcancemos formalmente e materialmente paridade de gênero e equidade racial.
Nós vivemos em uma sociedade caracterizada por uma pluralidade de autodescrições fundadas em diversas racionalidades parciais conflitantes, sendo o dissenso elemento estrutural, haja vista que toda observação tem um ponto cego. Pluralidade é, portanto, sinônimo de eficiência, pois quanto mais pessoas negras, indígenas, com identidade e orientação sexual diversas, oriundas de classes sociais distintas, com deficiência, de diferentes faixas etárias ocuparem espaços nos órgãos que compõem o sistema de justiça, mais ampliado será o horizonte de visão e mais adequadas serão as respostas do sistema jurídico às complexas demandas da sociedade.

Chiara Ramos, Procuradora Federal, Co-fundadora da Abayomi Juristas Negras e Membra da Comissão de Igualdade Racial da OAB/PE.

Maíra Vida, Conselheira Seccional da OAB BA; Presidenta da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa e Membra da Comissão de Direitos Humanos da OAB BA.

Maria Sylvia de Oliveira, Conselheira Seccional da OAB SP; Presidenta da Comissão de Igualdade Racial da OAB/SP.

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